Nos anos 90, era comum ridicularizar o governo por ser tecnologicamente atrasado.
Todos nós estávamos a ter acesso a coisas fabulosas, incluindo a Web, aplicações, ferramentas de pesquisa e redes sociais. Mas os governos a todos os níveis estavam presos ao passado, utilizando mainframes IBM, bobines anacrónicas e grandes disquetes.
Por essa altura pensava-se que a administração pública nunca alcançaria as glórias e o poder dos mercados privados. O novo sector tecnológico norte-americano tinha um espírito libertário. Não se importavam com o governo e os seus burocratas. Não tinham lobistas em Washington. Eram as novas tecnologias da liberdade e não queriam saber do velho mundo analógico e burocrático. Dariam início a uma nova modernidade de poder popular.
Aqui estamos nós, trinta anos depois, com provas documentadas de que aconteceu precisamente o contrário. O sector privado recolhe os dados que o governo compra e utiliza como instrumento de controlo. O sistema passou de burocrático a tecnocrático. Em Washington há quem determine o que se faz em Silicon Valley. E vice-versa.
Os engenheiros da Califórnia desenvolvem algoritmos acordados por uma combinação de agências governamentais, centros universitários, corretores de Wall Street, organizações activistas e grandes corporações, que constituem hoje a bolha opressiva dos poderes instituídos. Os ideais libertários foram substituídos pelo ganância, pelo elitismo, pelo niilismo ideológico e pelo conformismo corporativo.
Onde é que está o dinheiro?
Todas as grandes empresas que outrora se mantinham afastadas de Washington possuem agora um palácio gigante em Washington D.C. ou nos seus arredores, e arrecadam milhares de milhões em receitas governamentais.
Eis a nova sede da Google em Reston, Virgínia (subúrbios de Washington):
E este é “Quartel General 2” projectado pela Amazon, em Arlington, Virgínia (do lado oposto do Potomac, mas a não mais que 5 quilómetros do Capitólio):
O governo tornou-se agora um grande cliente, se não o principal cliente, dos serviços prestados pelas grandes empresas de tecnologia e de redes sociais. São anunciantes, mas também grandes compradores do produto principal: informação.
De acordo com um relatório da Tussell, a Amazon, a Microsoft e a Google são os maiores fornecedores do governo federal. A Amazon aloja os dados da Agência de Segurança Nacional, com um contrato de 10 mil milhões de dólares, e recebe centenas de milhões de outros governos.
Não sabemos quanto é que a Google recebeu do governo dos EUA, mas é certamente uma parte substancial dos 694 mil milhões de dólares que o estado federal distribui anualmente em contratos.
A Microsoft também tem uma grande quota de contratos com o governo. Em 2023, o Departamento de Defesa dos EUA concedeu o projecto Joint Warfighter Cloud Capability ao consórcio Microsoft, Amazon, Google e Oracle. O contrato tem um valor de até 9 mil milhões de dólares e fornece ao Departamento de Defesa serviços em nuvem. É apenas o começo. O Pentágono está à procura de um plano sucessor que será maior.
Na verdade, nem sequer se sabe a extensão total deste projecto, mas é gigantesco. Sim, estas empresas fornecem os serviços normais ao consumidor, mas o cliente principal e decisivo é o próprio governo.
Consequentemente, a velha ideia de um autismo tecnológico das agências governamentais já não existe. Actualmente, o governo é o principal comprador de serviços tecnológicos e é também um dos principais impulsionadores das tecnologias de estupidez artificial. Washington e Silicon Valley dançam a mesma valsa, e se uma das partes se imobilizasse, a orquestra parava de tocar.
Trata-se de um dos segredos mais bem guardados da vida pública americana, evitado pelos principais meios de comunicação social. A maioria das pessoas ainda pensa nas empresas tecnológicas como rebeldes da livre iniciativa. Nada podia estar mais longe da verdade.
A mesma situação existe, naturalmente, para as empresas farmacêuticas. Esta relação é ainda mais antiga e é ainda mais estreita, ao ponto de não haver uma verdadeira distinção entre os interesses do organismos federais de saúde, como o CDC, e as grandes empresas farmacêuticas.
Análogo processo ocorre com a imprensa, que só sobrevive hoje no Ocidente à custa de subsídios e incentivos governamentais. Mas essa é outra conversa.
A preferência do consumidor não importa.
Neste quadro, poderíamos também identificar o sector agrícola, que tanto nos EUA como na Europa está a ser paulatinamente dominado por cartéis que aniquilaram a agricultura familiar. São os planos governamentais, em Washington e Bruxelas – e os correspondentes subsídios massivos – que determinam o que é produzido e em que quantidade. Como Estaline gostava de fazer.
Não é por causa dos consumidores que a Coca-Cola integra uma substância assustadora chamada “xarope de milho com alto teor de frutose”, que as barras de chocolate e bolos têm o mesmo veneno e que há milho na gasolina. Isto é inteiramente o produto de agendas e orçamentos governamentais.
Num mercado liberal (no sentido clássico do termo) que privilegie a livre iniciativa, a concorrência e o escrutínio baseado na performance e focado no consumidor, a regra é que o cliente tem sempre razão. Trata-se de um sistema maravilhoso, por vezes designado por “soberania do consumidor”. O seu advento na história, que data talvez do século XVI, representou um tremendo avanço em relação ao velho sistema de guildas cartelistas do feudalismo e certamente um grande passo em relação aos despotismos antigos. Desde então, foi o grito de guerra da economia de mercado. Podemos até argumentar que esse modelo foi, em última análise, o principal motor das rupturas políticas que transformaram os regimes no ocidente, como Revolução Inglesa de 1640-88, a Revolução Americana de 1765 e a Revolução Francesa de 1789.
O que acontece, porém, quando são os governos que se tornam os clientes principais e até dominantes?
O ethos das empresas privadas altera-se. A empresa deixa de estar primordialmente interessada em servir o público em geral e passa a servir os seus poderosos senhores nos corredores do poder político, tecendo gradualmente relações estreitas e formando uma classe dominante que na verdade conspira contra o público.
O fim de um binário.
Antigamente, chamava-se a isto “capitalismo de compadrio”, o que talvez descreva alguns dos problemas de pequena escala. Tratamos neste texto, porém, de um outro nível de realidade que precisa de uma nomenclatura completamente diferente. O termo preciso e adequado é corporativismo, uma ideia que triunfou na Europa dos anos 30 e um sinónimo de fascismo, que regressou em força e infectou a generalidade dos sistemas económicos, políticos e sociais do Ocidente no século XXI.
O corporativismo é um sistema ideológico específico, não é capitalismo nem socialismo, mas uma forma de transformar as empresas privadas numa indústria cartelizada que serve principalmente o Estado.
O velho binário do sector público e do sector privado – amplamente assumido por todos os principais sistemas ideológicos – foi extinto. Os dois sectores tornaram-se tão indistintos que a sua diferenciação já não faz sentido. E, no entanto, não estamos preparados, nem ideológica nem filosoficamente, para lidar com este novo mundo com qualquer tipo de discernimento intelectual.
É evidente que percorremos um longo caminho desde os anos 90.
Do corporativismo monetário à tirania total.
Quando, em 1913, assistimos ao advento nos Estados Unidos de uma parceria público-privada particularmente flagrante, através da constituição da infame Reserva Federal, em que os bancos privados se fundiram numa frente unificada e concordaram em servir as obrigações de dívida do governo federal em troca de garantias de resgate, seria ainda assim difícil prever que essa génese do corporativismo monetário continua a incomodar a nossa existência até aos dias de hoje, tanto ou mais do que um outro compadrio público-privado de invenção americana – o complexo militar-industrial.
Mas em que é que é o corporativismo actual é diferente dos cartelismos do passado? É diferente em grau e alcance.
A máquina corporativa gere agora os principais produtos e serviços da nossa vida, incluindo a forma como obtemos e consumimos informação, como trabalhamos, como realizamos operações bancárias, como fazemos compras, como somos tratados pelos sistemas de saúde, como contactamos amigos e familiares, como nos expressamos e, até, como pensamos.
O mega-conglomerado de governos, empresas, órgãos da comunicação social e universidades faz a gestão de toda a nossa vida, nos seus 360º, e tornou-se a força motriz da inovação e do design dos produtos e um instrumento de vigilância dos aspectos mais íntimos das nossas vidas, incluindo informações financeiras e dispositivos de escuta que instalámos voluntariamente nas nossas próprias casas.
O estado corporativo tornou-se o principal curador e censor das notícias e da nossa presença no fórum público. Está em posição de dizer quais as empresas e produtos que têm sucesso e quais os que falham. Pode eliminar aplicações num instante se não gostar do que estão a fazer. Pode ordenar a outras aplicações que adicionem a voz de qualquer cidadão a uma lista negra, com base em opiniões políticas. Pode ordenar até à mais pequena empresa para cumprir mandatos abstrusos ou enfrentar a morte por ameaça judicial. Pode capturar qualquer indivíduo e torná-lo um inimigo público com base apenas numa opinião ou acção contrária às prioridades do regime. Pode congelar contas bancárias a elementos dissidentes.
Em suma, este corporativismo – em todas as suas iteracções – é a fonte central do despotismo actual.
Covid: um ensaio para o que temos agora.
O corporativismo teve o seu primeiro ensaio a sério com os confinamentos de 2020, quando as empresas tecnológicas e os meios de comunicação social se juntaram às campanhas de confinamento e vacinação, e milhões de pequenas empresas foram destruídas, para gáudio das grandes superfícies comerciais, que prosperaram como distribuidoras de produtos aprovados, enquanto vastas faixas da força de trabalho foram consideradas não essenciais e colocadas na dependência da segurança social.
Esta foi a primeira manifestação holística do estado corporativista, com os sectores empresariais totalmente submissos às prioridades do regime e os governo totalmente dedicadso a recompensar os seus parceiros industriais em todos os sectores que estivessem de acordo com a prioridade política do momento.
Porém, o gatilho para a construção da vasta maquinaria que governa as nossas vidas vem de longe, e deriva do crescente poderio financeiro dos governos, que foi espoletado pela crescente e voraz tributação dos contribuintes, justificadas por políticas de raíz socialista. Sendo os estados as entidades mais ricas da sociedade, é apenas natural que as empresas se rendam a esse poder consumidor.
Certamente, cabe às empresas venderem a todos os compradores dispostos a adquirir os seus produtos e serviços, mesmo que isso inclua governos. Em todo o caso, como é que isso pode ser evitado? A contratação pública com empresas privadas tem sido a norma desde tempos imemoriais. Não há nisso qualquer prejuízo. Em princípio, porque entretanto descobrimos precisamente um prejuízo enorme: a morte das lógicas de mercado liberais, que tinham trazido a prosperidade a milhares de milhões de pessoas, a obliteração das liberdades e das garantias constitucionais, e a transformação das sociedades em projectos ideológicos unívocos, de carácter totalitário.
O que fazer?
Não estamos nem perto de compreender as implicações do triunfo do corporativismo. A questão transcende totalmente os velhos debates entre capitalismo e socialismo. De facto, não é disso que se trata.
O enfoque nessa questão pode ser teoricamente interessante, mas tem pouca ou nenhuma relevância para a realidade actual, em que o público e o privado se fundiram completamente e se intrometeram em todos os aspectos das nossas vidas, com resultados totalmente previsíveis: declínio económico para muitos, riqueza para poucos, fascismo para todos.
É também por isso que nem a esquerda nem a direita, nem os democratas nem os republicanos, nem os capitalistas nem os socialistas, parecem estar a abordar claramente o momento em que vivemos.
A força dominante na cena mundial é hoje o tecno-corporativismo, que se intromete na alimentação, nos medicamentos, nos meios de comunicação, nos fluxos de informação, nas nossas casas e até nos instrumentos de vigilância que trazemos no bolso.
As empresas já não são verdadeiramente privadas e o estado já não é verdadeiramente público. Há uma oligarquia que domina os vários vectores de poder nas sociedades e que trabalha para diluir as diferenças entre o público e o privado, o certo e o errado, a liberdade e a tirania, a realidade e a ficção.
Aceitar este facto do ponto de vista intelectual é o grande desafio do nosso tempo. Lidar com o fenómeno do ponto de vista jurídico e político parece ser uma tarefa muito mais difícil. O problema complica-se porque o sistema corporativo empenha-se até em esmagar a dissidência a todos os níveis da sociedade.
O que podemos e devemos fazer é desobedecer. Evitar consumir produtos e serviços dos grandes conglomerados corporativos. Rejeitar os seus canais de propaganda. Inviabilizar os lucros de entidades que são nossas inimigas. Esquecer o embuste do voto útil e votar em partidos dissidentes. Não ter medo de dizer não.
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