“O cobarde morre mil mortes. O bravo, por uma vez apenas.”
Caio Júlio César
A intrépida, caótica, épica, quezilenta e imparável existência de Caio Júlio César (100 a.C – 44 a.C.) é impossível de condensar num exercício telegráfico e, por isso, vamos dividi-la em duas partes. A primeira, refere-se aos primeiros 51 anos da sua vida, e termina na célebre travessia do Rubicão. A segunda descreverá os seus 5 últimos anos, que incluem a guerra civil, a imposição da ditadura e as circunstâncias do seu assassinato.
Como todos os artigos que o Contra irá publicar sobre os primeiros imperadores romanos, este texto tem como principal fonte a obra de referência de Suetónio, “Os Doze Césares”.
Das origens ao tribunato.
Júlio César nasceu no seio de uma família patrícia, os Júlios, que afirmavam ser descendentes de Ascânio, filho do lendário herói homérico Eneias, que por sua vez era, segundo a mitologia romana, filho da deusa Vénus.
Os Júlios, à altura do nascimento de César, não eram muito influentes politicamente em Roma, ainda que, no século anterior, membros desta família tenham conseguido altos cargos na República. O pai, também chamado Caio Júlio César, governou a província da Ásia, e sua tia Júlia era casada com o general Caio Mário, uma das figuras políticas mais importantes em Roma naquela época. Sua mãe, Aurélia Cota, era um dos membros mais influentes na família. Pouco é sabido sobre a infância de César. A sua história, como é contada por Suetónio e outros historiadores, começa realmente aos 16 anos, quando fica orfão de pai.
Pouco tempo depois da morte do pai, casou com Cornélia, filha de Cina, quatro vezes cônsul, de quem teve uma filha, Júlia. Cina era inimigo declarado do draconiano ditador Lúcio Cornélio Sula (também conhecido como Sila), que controlava com instinto facínora o poder na Roma destes anos. César vê-se obrigado a fugir da capital, para não ser submetido ao tratamento terminal que Sula oferecia aos seus adversários políticos – e aos familiares deles. Mas pouco tempo depois, é chamado à presença do ditador, que o perdoa, se bem que tenha afirmado posteriormente que “em César há mais que um Mário”, adivinhando porventura a ambição, a coragem e a astúcia do jovem que tinha poupado à espada.
Apesar do perdão, César não se sente seguro com Sula no poder. Prefere por isso afastar-se de Roma e alistar-se no exército, como de qualquer forma seria natural para um fidalgo sem grande influência ou riqueza, servindo sob o comando de Marco Minúcio Termo na Ásia e Servílio Isáurico na Cilícia. César comportou-se com distinção, tendo sido agraciado com a coroa cívica pelas suas acções no cerco de Mitilene. Colocado numa missão diplomática na Bitínia destinada a assegurar o apoio da frota de Nicomedes IV às pretensões do império, permaneceu um longo período na corte desse rei, de tal forma que surgiram rumores de que se envolveu com ele num caso amoroso, acusação que sempre negou.
Ao saber da morte de Sula, em 78 a.C., regressa a Roma, só para saber que a sua herança tinha sido confiscada. Alugou uma casa modesta em Suburra, um bairro pobre da cidade, tornou-se advogado para ganhar a vida e ficou conhecido pelo seus dotes oratórios, amplificando a boa retórica dos discursos com uma voz poderosa e a teatralidade gestual própria de um tribuno nato. Ganhou notoriedade por processar ex-governadores acusados de extorsão ou corrupção, defender o sufrágio do povo e restaurar a autoridade tribunícia.
Entretanto conspira contra Cornélio Dolabella e Lépido, que trinta anos mais tarde serão seus aliados na Guerra Civil.
Durante uma travessia do mar Egeu, César foi sequestrado por piratas e feito prisioneiro. Quando estes manifestaram intenção de exigir 20 talentos de prata como resgate, insistiu que exigissem 50, já que um valor modesto mancharia o seu nome e reputação. Avisou porém, com a sobranceria que lhe era característica, que depois de pago o resgate e caso fosse libertado voltaria para os matar a todos. Acto continuo, o dinheiro foi pago, César foi libertado, recrutou uma frota e perseguiu, capturou e supliciou os piratas, como havia prometido durante o cativeiro. Como um sinal de “clemência”, degolo-os logo depois de terem sido crucificados.
Depois de ficar viúvo da sua primeira mulher, desposa Pompeia, a filha do poderoso Quinto Pompeu. Acaba por se divorciar dela, depois de convencer o Senado a realizar um inquérito sobre o seu comportamento adúltero. O inquérito deu-lhe razão, apurando, para gáudio das más línguas e da turba mimética de Roma, que o amante Clódio entrava regularmente nos aposentos de Pompeia vestido de mulher.
Neste período foi eleito tribuno militar e depois questor, iniciando assim a sua carreira política.
Aventuras e desventuras de um conspirador.
Destacado para as províncias da Bética e da Lusitânia, é intensamente perturbado por um sonho em que violava a sua mãe e, tendo ficado deveras impressionado por uma estátua de Alexandre o Grande que contemplou num templo dedicado a Hércules, decidiu voltar a Roma, antes de terminado o mandato para o qual tinha sido nomeado, com a intenção de procurar uma oportunidade para realizar gloriosos empreendimentos.
Regressado, é eleito edil e depois pretor. Conjura entretanto um golpe de estado que implicava o assalto armado ao senado, o assassinato de vários dos seus membros e a instauração de uma ditadura liderada por Crasso, o mais rico dos romanos, com quem César tinha feito amizade e que lhe prometera, em troca da sua assistência na rebelião, uma prestigiada chefia militar. Perante a recusa à última hora de Crasso em executar o plano, César muda de estratégia: ganha a simpatia do povo com jogos, caçadas, obras públicas, cosmética urbana e outras liberalidades, tentando por todos os meios diminuir o poder e a influência da aristocracia. Conspira contra figuras iminentes do regime como Marco Bíbulo, Caio Rabírio, Lúcio Véttio Judex, Quinto Cúrio e Nóvio, para desgraça ou encarceramento destes.
Dada a sua metodologia despesista, vê-se constantemente perseguido por credores e escapa-se para uma posição, conseguida de improviso, como governador da Espanha Ulterior, onde se tinha desencadeado uma rebelião nativa contra a presença romana. Pacificada a província com relativa facilidade e rapidez, pretende, de novo, voltar a Roma antes de terminado o ciclo temporal adstrito ao cargo que desempenhava e, de forma a ultrapassar as dificuldades burocráticas decorrentes dessa precipitação, abdica do triunfo. Regressado a Roma é eleito cônsul, reconcilia Quinto Pompeu com Marco Crasso e cria assim o Primeiro Triunvirato.
Propondo uma redistribuição das terras públicas, pela força se necessário, para beneficiar os mais pobres, o Triunvirato recorre à intimidação pelas legiões, que ocupam as principais artérias de Roma. Bíbulo declarou que os presságios eram desfavoráveis e tentou anular a nova lei, mas foi afastado do senado por homens armados a mando de César e forçado a aposentar-se. O senador não foi o único que sofreu com a repressão. Qualquer um que mostrasse oposição às ideias do Triunvirato era preso.
Tendo subornado Vécio para que inventasse acusações contra alguns dos seus adversários políticos, acaba por o mandar envenenar, quando conclui que a trama não estava a correr de acordo com os seus planos.
Para ganhar a Gália casa com Calpúrnia Pisão, filha do poderoso senador Lúcio Calpúrnio Pisão Cesonino, e oferece em matrimónio a filha Júlia a Pompeu, muito mais velho que ela. Repudiando Servílio Cipião, que não muito tempo antes o ajudara contra Marco Bíbulo, Júlio desmultiplica-se em alianças e inimizades destinadas à prossecução do seu objectivo. É bem sucedido nas suas manobras e, com a ajuda de Crasso e Pompeu, o senado concede-lhe o governo dos territórios da Gália romana (norte de Itália e sul de França), proporcionando-lhe o comando de quatro legiões. O seu mandato de governador seria de cinco anos, durante os quais teria imunidade processual. Mas vai passar a próxima década pelejando, acumulando vitórias, riqueza e poder nestes e noutros territórios, expandindo o império até regiões que Roma nem sequer planeava conquistar.
A Gália como trampolim.
Quando parte para a Gália, César estava atolado em dívidas, mas como governador podia ganhar muito dinheiro, especialmente através da extorsão decorrente das expedições militares. O seu objectivo porém não se esgotava de todo na acumulação de riqueza, sendo determinante para a sua ambição a prossecução de feitos gloriosos nos campos de batalha e a extensão territorial do império, que lhe traria ganhos políticos e o respeito do povo.
Profundamente dividida e instável, e habitada por tribos com vocação guerreira, que no passado já haviam derrotado Roma em combate, mas que se entretinham sobretudo a guerrear entre si, a Gália não romana era vulnerável. O pretexto para a incursão das legiões cesarianas surgiu quando tribos nativas aliadas de Roma foram derrotadas por rivais, apoiados por guerreiros germânicos, na batalha de Magetóbriga. César usou o receio de que estas tribos tentassem migrar para regiões próximas da península Itálica para justificar a acção militar. Com as quatro legiões que tinha ao seu dispor, complementadas por duas outras recrutadas nos territórios sob o seu controlo, derrotou estas tribos na fronteira do império.
Em resposta às actividades de César, as tribos do norte da Gália mobilizaram-se. O general romano encarou o facto como um movimento agressivo e, depois de uma batalha inconclusiva, dedicou-se a derrotá-las uma por uma. Enquanto isso, a XIII Legião conseguiu avançar até o extremo norte da Gália, chegando à margem oposta à Bretanha.
Na primavera de 56 a.C., o Triunvirato fez uma reunião de emergência. A situação em Roma era tensa e a aliança política de que César dependia estava em perigo. A Conferência de Luca renovou a tripla aliança e concedeu mais cinco anos de mandato a César como governador das províncias e dos territórios conquistados. Enquanto isso, a tomada do norte da Gália havia sido completada, embora algumas bolsas de resistência permanecessem (foi precisamente nesses focos de rebelião que persistiram irredutíveis entre 56 a.C e 51 a.C que Goscinny e Uderzo se inspiraram para criarem a célebre série de banda desenhada “Astérix”)
Em 55 a.C., César repeliu uma invasão de tribos germânicas na Gália, construiu a primeira ponte sobre o rio Reno e avançou pelo território germânico, mas teve que recuar nesse Verão, de forma a esmagar uma rebelião na Bélgica. Acusando os bretões de interferência na Bélgica e no norte da Gália, lançou uma invasão da Bretanha. A inteligência recolhida sobre estas regiões desconhecidas era pobre e equívoca, e apesar de ter conquistado uma base costeira, não conseguiu avançar mais profundamente no território britânico, decidindo retornar à Gália para passar o Inverno. Voltou no ano seguinte, melhor preparado e com mais tropas. Conquistou territórios e fez alianças, regressando à Gália quando uma revolta, decorrente de más colheitas, eclodiu no coração dos territórios conquistados.
Em 53 a.C., depois de apenas cinco anos de guerra, quase toda a Gália, Bélgica e partes da fronteira com a Germânia estavam sob controle militar romano. Embora, na verdade, os gauleses constituíssem uma força formidável, as suas divisões internas garantiram a vitória de Júlio César, que soube explorar com astúcia essas fragilidades, enquanto potenciava os pontos fortes de suas próprias tropas. Ainda assim, os gauleses tentariam uma última vez anular o jugo romano. Vercingetórix, chefe da tribo dos Arvernos, liderou-os em revolta. Provando ser um comandante competente, derrotou as legiões invasoras em alguns confrontos. Porém, César trouxe reforços e forçou o recuo do principal exército gaulês. Os romanos empurraram Vercingetórix para a cidade fortificada de Alésia, cercaram-no, repeliram os reforços que tentaram furar o cerco e derrotaram-no. O comportamento galante e determinado de Júlio César no decorrer desta batalha é lendário, embrenhando-se com valentia no confronto e contribuindo decisivamente, graças a uma carga de cavalaria que liderou, para o seu desfecho favorável a Roma.
Apesar do conflito ter prosseguido, na forma de guerrilha, pelos dois anos seguintes, a conquista da Gália foi assegurada com a rendição de Vercingetórix e das suas forças em Alésia. O historiador Plutarco estima que o número de gauleses mortos ultrapassou o milhão, além de outro milhão de pessoas terem sido feitas escravas. Os romanos subjugaram mais de 300 tribos e destruíram pelo menos 800 cidades. É pertinente sublinhar que Júlio César cometeu genocídio em vastas áreas do norte da Gália e da Bélgica, destruindo por vezes aldeias inteiras e exterminando a totalidade de certas tribos mais renitentes ao seu domínio.
Do fim do Triunvirato à travessia do Rubicão.
Enquanto César estava na Bretanha, a sua filha Júlia, mulher de Pompeu, morreu no parto do seu primeiro filho. César tentou revitalizar a aliança com Pompeu ao oferecer a sua sobrinha-neta em casamento, mas a proposta foi recusada. Pompeu preferiu casar-se com Cornélia Metela, filha de Metelo Cipião, um dos maiores adversários de César no senado. Em 53 a.C., Crasso foi morto na Batalha de Carras, durante a mal sucedida invasão romana do Império Parto. A sua morte marcou o fim do Triunvirato e o falecimento de Júlia foi o ponto de ruptura entre César e Pompeu. A República estava agora à beira de uma nova guerra civil. Pompeu, com apoio unânime da aristocracia conservadora, foi nomeado pelo senado como o único cônsul.
Após oito anos de guerra, a resistência gaulesa contra a ocupação romana estava extinta. A região permaneceria como parte do Império Romano pelos próximos quinhentos anos. César faria fortuna vendendo milhares de pessoas à escravidão, além de também vender bens e produtos saqueados das cidades da Gália. Como ele previra, a sua conquista ofereceu-lhe mítica reputação militar e veneração por parte do povo romano. O exército que comandou também passou a idolatrar o seu líder, que soube mostrar coragem no campo de batalha, duplicar o soldo aos legionários e garantir terras férteis aos veteranos.
Magnânimo com os seus aliados e implacável com os seus adversários, gostava de dividir para reinar, adoptando tácticas de guerra psicológica que amplificavam a divisão já existente entre as tribos gaulesas. Por algumas vezes oferecia riquezas a certos líderes tribais, só para que outras tribos não contempladas com as mesmas prodigalidades acabassem por atacar aqueles que tinham sido beneficiados com os favores de César.
Ao longo dos anos em que esteve envolvido nas campanhas da Gália, da Bretanha e da Germânia, Júlio César provou apenas por três vezes o sabor da derrota: na Bretanha, por causa de uma tempestade, na Gália, em Gergóvia, e nos confins da Germânia. Nos dois últimos casos, o general não comandava directamente as suas tropas.
Em 50 a.C., o mandato de Júlio César como governador tinha terminado, extinguindo-se assim sua imunidade processual. O senado, liderado por Pompeu, ordenou que César dispensasse as suas legiões e regressasse a Roma. Sem essa imunidade que desfrutava como magistrado, o general temia ser processado pelos senadores e condenado pelos seus inimigos. Pompeu e a aristocracia romana acusavam-no de insubordinação e traição. César concluiu que não tinha opção a não ser lutar pelos seus direitos.
A lei e a tradição militar interditavam que qualquer general proveniente dos territórios ocupados pelo império entrasse na península Itálica escoltado pelas suas legiões. Em janeiro de 49 a.C., trazendo consigo apenas uma legião, a XIII, chega à margem norte do Rubicão e hesita. Mas inspirado por um jovem de estatura e beleza extraordinária, que atravessava o rio tocando com uma trombeta uma marcha extremamente motivadora, decide-se à travessia, com estas palavras:
“Partamos para onde nos chamam os deuses e a injustiça dos nossos inimigos. A sorte está lançada.”
Tem 51 anos.
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