Bem-vindos ao Império Romano. Faz-se aqui e agora o anúncio de um conjunto de textos biográficos dedicados aos primeiros imperadores romanos, que serão publicados durante os próximos meses e que têm por fundamento bibliográfico aquele que é o documento central sobre o assunto: Os Doze Césares, de Caio Suetónio Tranquilo.
Suetónio, que teve a sorte de viver entre os anos 69 a.C. e 160 d.C., em que reinaram alguns dos chamados “bons imperadores”, e que foi contemporâneo de apenas dois dos césares que biografou – Tito Flávio e Domiciano – decidiu-se a contar a mais solene, hedionda, folhetinesca, pornográfica, facínora, visceral, triunfante, amargurada, extravagante e épica rábula alguma vez contada: as dos doze primeiros líderes romanos depois da queda da República.
Há que alertar a paciente audiência que a ideia historiográfica dos tempos de Suetónio não é a que é hoje. O autor raramente cita a origem das suas revelações, confia abundante e preferencialmente na proverbial má língua e é muitas vezes impossível verificar a veracidade das suas afirmações. Ainda assim, influenciou de tal maneira a ideia que temos de Roma e dos romanos, que a sua grande novela biográfica serve muito bem para doutoramentos contemporâneos e o seu estilo narrativo e conceptual é ainda hoje copiado por toda a gente. Desde o eterno e nevocentista Edward Gibbon ao muito-Século-XX Robert Graves, encontramos frequentemente Suetónio em referências de erudição académica e notas de rodapé, e a adopção textual e contextual da prosa suculenta do grande mestre Tranquillus é recorrente.
Seja como for, o ContraCultura, no seguimento deste projecto de documentar a história dos 12 césares, irá recorrer a outras fontes antigas, como Tácito, talvez o mais importante e credenciado historiador romano, e a autores modernos, como Robert Graves, que apresentaram versões documentais ou ficcionais da vida destas famosas – ou infames – figuras.
Mas começando pelo princípio. A forma de governo de Roma iniciou-se pela instauração de uma República oligárquica, governada por dois cônsules eleitos anualmente, apoiada por um colégio de senadores e esfaqueada no ano de 44 a.C. com o assassinato do ditador Júlio César, cujos herdeiros mergulharam o império numa sangrenta guerra civil para depois, com o triunfo de Octávio Augusto, ser iniciada a gloriosa e esquizofrénica massa genética dos primeiros imperadores.
Caius Suetonius Tranquillus nasceu um século e tal depois destes acontecimentos, improvavelmente numa cidadela romana em África – Hippo Regius – no território a que hoje chamamos Argélia, sendo filho de um nobre da Ordem Equestre (segunda casta em poderes e privilégios logo depois dos senadores), que cumpriu serviço militar no exército vencido de Otão, na guerra civil dos Quatro Imperadores.
Suetónio foi um biógrafo reputado. Antes dos 12 Césares, as suas obras referiam-se à vida quotidiana de Roma, à política, à oratória e à vida de escritores famosos, incluindo poetas, historiadores e gramáticos. Alguns desses livros sobreviveram, parcialmente, mas a maior parte perdeu-se nas estantes da eternidade.
Suetónio era amigo íntimo do senador e escritor Plínio, o Jovem, que o descreve como “calmo e estudioso, um homem dedicado à escrita”. Plínio ajudou-o a comprar uma pequena propriedade e intercedeu junto do imperador Trajano para que concedesse a Suetónio imunidades fiscais normalmente concedidas a um pai de três filhos, o ius trium liberorum, embora o intelectual não tivesse nenhuns. Suetónio pode ter servido na equipa de Plínio quando este era governador imperial (legatus Augusti pro praetore) da Bitínia e do Ponto (norte da Ásia Menor) entre 110 e 112. No reinado de Trajano, foi director dos arquivos imperiais e, mais tarde, secretário do imperador. Mas no auge da sua carreira acabou porém por ser demitido por Adriano, em resultado de um alegado caso romântico com a imperatriz Vibia Sabina.
E este é o momento em que as opiniões se dividem. Dado que “Os Doze Césares” foi escrito nesse exílio, terá sido realizado contra as expectativas de Adriano ou, na esperança de redenção, terá Suetónio concedido a uma visão do passado que encaixava nas narrativas do regime?
É que Adriano, muito mais que um imperador, um engenheiro, um militar ou um filósofo, era um político. Um político como todas as nações deveriam querer ter um. E com certeza que pensou na sua posteridade. E pode assim ter influenciado a narrativa do seu secretário privado no exílio.
A questão permanece em aberto.
Pagão dos sete costados, Suetónio foi até um dos primeiros historiadores de Jesus Cristo, e, da mesma maneira que Constantino definiu a cristandade como ainda a entendemos hoje, este foi substantivamente o homem que nos deu a ideia geral de como viviam de forma nobre e obscena, sanguinária e apaixonada, os grandes césares que vampirizaram para sempre a análise das elites e do exercício do poder: Júlio César, Octávio Augusto, Tibério, Calígula, Cláudio, Nero, Galba, Otão, Vitélio, Vespasiano, Tito Flávio e Domiciano.
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Primeiro texto da série “Biografias dos Primeiros Césares” sai amanhã, 19 de Junho.
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