Há uma tendência confortável — e ideologicamente conveniente — de tratar o antissemitismo nazista como uma aberração irracional, uma explosão súbita de ódio num mundo essencialmente são. Essa leitura, embora sedutora para a consciência contemporânea, é superficial. A perseguição sistemática dos judeus na Alemanha nazista não foi uma ruptura inexplicável no curso da história, mas a culminação lógica das contradições internas da modernidade europeia. Como George L. Mosse demonstrou em Toward the Final Solution, a virada moderna do antissemitismo, a partir do século XIX, está intrinsecamente ligada à crise das identidades nacionais e ao advento de uma política de massas fundada na biologia e na exclusão. A modernidade, ao prometer emancipação, racionalidade e progresso, gerou também suas próprias ansiedades corrosivas: medo da dissolução das fronteiras sociais, do colapso das hierarquias tradicionais, da fragmentação do corpo nacional. E foi nessa atmosfera de pânico cultural que o judeu moderno, o “outro interno”, foi construído como o símbolo por excelência da ameaça.
O antissemitismo racial, muito antes de Hitler, já havia se consolidado como uma linguagem política de exclusão na Europa moderna, como analisado por Enzo Traverso em A História Desfigurada e por Shulamit Volkov em Germans, Jews, and Antisemites. Ele não surgiu de ódios arcaicos, mas de racionalizações novas, científicas e administrativas, profundamente entrelaçadas à construção das identidades nacionais. A Alemanha do pós-Primeira Guerra Mundial ofereceu o cenário ideal para a explosão desse ódio.
Na Alemanha do pós-Primeira Guerra Mundial, esse antissemitismo encontrou um terreno particularmente fértil. A derrota de 1918, as imposições humilhantes do Tratado de Versalhes, a hiperinflação devastadora de 1923, o colapso econômico e o desemprego em massa corroeram as estruturas de solidariedade social. A República de Weimar, analisada por Detlev Peukert (The Weimar Republic: The Crisis of Classical Modernity), revelou-se incapaz de estabilizar a nação, criando uma atmosfera de desespero e vulnerabilidade, onde a necessidade de encontrar culpados era quase instintiva. Nesse ambiente de ruína, os judeus — tradicionalmente fortes no comércio, na indústria e no setor financeiro — passaram a adquirir propriedades, empresas e ativos a preços ínfimos, aproveitando as oportunidades abertas pelo colapso do aparato produtivo. Como destaca Peter Fritzsche em Germans into Nazis, essas aquisições, perfeitamente legais e muitas vezes vitais para a sobrevivência de setores econômicos inteiros, foram percebidas pela população alemã não como atos de reconstrução, mas como uma forma de invasão interna: uma nova expropriação realizada não pelas potências estrangeiras, mas por uma minoria vista como invasora. Assim, formou-se o ressentimento profundo: o judeu passou a ser identificado não apenas com a derrota militar e a degradação cultural, mas também com a perda concreta do sustento, da terra e da dignidade do povo alemão.
A imagem do judeu como inimigo assumiu contornos paradoxais. Simultaneamente, eles foram acusados de representar o capitalismo apátrida e o bolchevismo revolucionário, o cosmopolitismo dissolvente e o tribalismo separatista. Seriam, ao mesmo tempo, os grandes responsáveis pelas reparações de guerra impostas à Alemanha, os banqueiros que comandavam as nações liberais e os fundadores filosóficos da maior ameaça aos valores ocidentais: o comunismo. Nenhuma contradição os inocentava; ao contrário, as múltiplas máscaras do preconceito apenas tornavam a perseguição mais fácil de justificar, como observa Saul Friedländer. Essa maleabilidade do ódio antissemita permitiu que o judeu se tornasse o símbolo universal de tudo que deveria ser combatido.
Essa percepção foi reforçada pelo fato de que os judeus, preservando tradições próprias e mantendo sua identidade cultural distinta, eram vistos como uma “cultura dentro da cultura”. Sua resistência à completa assimilação — uma característica de força e continuidade histórica — era, no entanto, interpretada no contexto nacionalista como sinal de parasitismo: o judeu, um corpo exógeno, alimentando-se da fraqueza do organismo nacional. A propaganda nazista explorou esse imaginário com precisão quase cirúrgica, como nota Ian Kershaw em Hitler: 1889-1936 – Hubris, associando o “inimigo judaico” à degeneração moral, à corrupção política e à catástrofe econômica.
O mecanismo político de criação de um inimigo externo visível — que Hannah Arendt analisa de forma magistral em Origens do Totalitarismo — foi essencial para a estratégia de consolidação do regime nazista. Em sociedades fragilizadas, a guerra contra um inimigo comum gera coesão interna: em vez de um país dividido por interesses divergentes, a Alemanha poderia se unir em torno do ódio ao judeu. O antissemitismo, portanto, não foi apenas uma paixão ideológica; foi um instrumento de engenharia política.
Peter Fritzsche analisa como a memória da guerra e a experiência do colapso econômico foram narrativamente reescritas para identificar os judeus como sabotadores internos, cúmplices das potências estrangeiras e agentes da degeneração cultural. A própria figura do judeu tornou-se uma metáfora das contradições da modernidade: simultaneamente cosmopolita e tribal, capitalista e revolucionário, corrupto e insurreto. Essa plasticidade do ódio, como mostrou Saul Friedländer, permitiu que o antissemitismo se adaptasse a diferentes públicos e necessidades políticas, moldando-se às ansiedades específicas de cada classe social.
A construção do judeu como “inimigo interno” foi profundamente moldada por uma estética política moderna. George L. Mosse identificou como o nacionalismo alemão — e particularmente seu braço völkisch — elaborou imagens idealizadas de pureza racial, de harmonia orgânica entre o povo e a terra, contrapondo-as à figura do judeu, associado à desordem, ao nomadismo, à corrupção urbana. Ernst Nolte, em Three Faces of Fascism, mostrou como o fascismo alemão, diferentemente de suas variantes latina ou francesa, buscou aniquilar o “outro” como pré-condição para a redenção nacional: o judeu não era apenas um rival político ou cultural; era uma ameaça existencial que precisava ser eliminada para restaurar a ordem.
O antissemitismo moderno não era apenas crença ou preconceito — era política de Estado em potencial, latente na própria racionalidade administrativa da modernidade. Hannah Arendt destacou como as práticas de governança colonial prepararam o terreno para a desumanização interna: a lógica que tratava populações colonizadas como dispensáveis podia ser aplicada, com devastadora consequência, ao “outro” doméstico. Na Alemanha nazista, essa lógica foi metodicamente implementada. Como analisam Richard J. Evans (The Coming of the Third Reich) e Christopher Browning (The Origins of the Final Solution), o antissemitismo passou da marginalização simbólica à codificação legal nas Leis de Nuremberga, da violência paramilitar à perseguição aberta na Noite dos Cristais, e finalmente à planificação industrial da morte no projeto da Solução Final.
O que distingue o Holocausto de outras perseguições históricas não é apenas sua escala ou brutalidade, mas sua racionalidade burocrática. Raul Hilberg, em The Destruction of the European Jews, descreve o funcionamento quase impecável da máquina administrativa do extermínio: a emissão de decretos, a organização dos transportes, a catalogação das vítimas, tudo feito por funcionários que viam a si mesmos como meros executores de normas racionais. Laurence Rees, em The Holocaust: A New History, argumenta que o processo de radicalização não foi uniforme, mas fruto de decisões contingentes, impulsionadas por um sistema político que premiava o extremismo e eliminava as alternativas moderadas.
A modernidade, que prometia emancipação através da razão e do progresso técnico, revelou seu lado sombrio: a capacidade de aplicar métodos industriais à produção sistemática da morte. Zygmunt Bauman, em Modernidade e Holocausto, sintetizou essa contradição de forma magistral: o genocídio não foi o oposto da modernidade, mas um de seus possíveis produtos. O Holocausto não foi um retrocesso à barbárie pré-moderna, mas a modernidade voltada contra si mesma.
Tratar o antissemitismo nazista como uma aberração irracional seria, portanto, cometer o mesmo erro que Arendt denunciou: o de pensar o mal como inexplicável, acidental, alheio à racionalidade moderna. O mal moderno é estruturado, planificado, integrado aos mecanismos do Estado e da ciência, legitimado por ideologias que transformam o assassinato em dever patriótico. O Holocausto permanece como advertência viva: a civilização, ao tentar purificar a si mesma de seus “outros” imaginários, arrisca destruir precisamente aquilo que a torna humana.
MARCOS PAULO CANDELORO
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Bibliografia
– Arendt, Hannah. Origens do Totalitarismo. Companhia das Letras, 1989.
– Bauman, Zygmunt. Modernidade e Holocausto. Zahar, 1998.
– Browning, Christopher R. The Origins of the Final Solution: The Evolution of Nazi Jewish Policy, September 1939–March 1942. University of Nebraska Press, 2004.
– Evans, Richard J. The Coming of the Third Reich. Penguin Press, 2003.
– Friedländer, Saul. Nazi Germany and the Jews, Volume I: The Years of Persecution 1933–1939. HarperCollins, 1997.
– Fritzsche, Peter. Germans into Nazis. Harvard University Press, 1998.
– Hilberg, Raul. The Destruction of the European Jews. Yale University Press, 2003.
– Kershaw, Ian. Hitler: 1889-1936 – Hubris. Allen Lane, 1998.
– Mosse, George L.Toward the Final Solution: A History of European Racism. Harper & Row, 1978.
– Nolte, Ernst. Three Faces of Fascism: Action Française, Italian Fascism, National Socialism. Mentor Books, 1965.
– Peukert, Detlev. The Weimar Republic: The Crisis of Classical Modernity. Hill and Wang, 1993.
– Rees, Laurence. The Holocaust: A New History. PublicAffairs, 2017.
– Traverso, Enzo. A História Desfigurada: O Revisionismo na História Contemporânea. UNESP, 1998.
– Volkov, Shulamit. Germans, Jews, and Antisemites: Trials in Emancipation. Cambridge University Press, 2006.
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Marcos Paulo Candeloro é graduado em História (USP – Brasil), pós-graduado em Ciências Políticas (Columbia University – EUA) e especialista em Gestão Pública Inovativa (UFSCAR – Brasil). Aluno do professor Olavo de Carvalho desde 2011. É professor, jornalista e analista político. Escreve em português do Brasil.
As opiniões do autor não reflectem necessariamente a posição do ContraCultura.
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