“É essencial perceber que a comunidade cristã no passado não era um ideal piedoso, mas um facto jurídico que estava subjacente à organização social da cultura ocidental.”
Christopher Henry Dawson . Understanding Europe
Como o Contra já documentou, a ideia de que a ‘idade média’ foi uma era de ‘trevas’ sofre dos mesmos problemas de todos os estereótipos que derivam da cristalização dogmática das academias contemporâneas e da sua propagação mediática, sendo francamente falaciosa, até porque estamos perante várias idades médias em função das etapas cronológicas, mas também da geografia e da cultura e, até, das línguas que se falavam na Europa.
No Oriente, o império romano cai apenas no século XV e é difícil defender que até aí os cidadãos de Constantinopla viviam num pesadelo de cinzas, já que a civilização bizantina, mesmo que decadente, apresentou sempre altos níveis culturais e artísticos e intensa actividade comercial. De uma forma geral, aqueles que falavam grego na Europa experimentaram até 1450 um modo de vida que não diferia daquele que os seus antecessores conheciam no século IV ou V.
No Ocidente, essa idade das trevas deu génese àquilo a que hoje chamamos o Estado. Inventou a prensa e a imprensa, a novela, o relógio mecânico, a caravela, a fundição do ferro, o moinho de água. Aperfeiçoou a óptica e a arquitectura, desenvolveu a bússola e o astrolábio, revolucionou a cartografia, fundou as primeiras universidades, canonizou a arte poética, testemunhou as confissões de Santo Agostinho, as sumas de S. Tomás de Aquino e os argumentos de Santo Anselmo, assistiu ao triunfo do Gótico e da arte da iluminura, promoveu a ascensão de mestres como Fra Angelico, Piero della Francesca, Jan van Heyck, Geronymus Bosch ou Sandro Botticelli.
Ainda assim, vamos considerar, para efeitos retóricos, a expressão como aceitável, porque o que este artigo pretende é refutar um outro mito: o de que o Cristianismo foi o vector responsável por esse alegado período de caos e escuridão, estagnação intelectual e regressão cultural. Os críticos das igrejas cristãs argumentam que o seu poder omnipresente sufocou a inovação e suprimiu modos de pensamento alternativos. No entanto, uma análise mais atenta do contexto histórico revela que a Igreja não surgiu como uma força prepotente, mas como o principal agente de unificação e civilização durante uma das épocas mais tumultuosas da Europa.
A evolução do conceito de “Idade das Trevas”.
A noção de “Idade das Trevas” ganhou forma no século XIV com o académico italiano Petrarca, que lamentou a escuridão que se seguiu à queda do Império Romano. Petrarca justapôs o brilho cultural e intelectual da Grécia Clássica e do início de Roma com o período de declínio pós-romano. Este binário de “luz” e “escuridão” estabeleceu um quadro que os estudiosos posteriores viriam a aperfeiçoar e expandir.
Nos anos 1600, o Cardeal Baronius popularizou ainda mais o termo através da frase latina saeculum obscurum, que utilizou num sentido limitado para descrever a relativa escassez de obras escritas entre o Império Carolíngio (888 d.C.) e a Reforma Gregoriana (1046 d.C.). No entanto, foi durante o Iluminismo que o conceito de Idade das Trevas foi alargado e impregnado de uma conotação negativa. Os pensadores do Iluminismo – de Spinoza e Kant, de Jefferson e Voltaire – privilegiaram a exclusividade da razão em detrimento da fé e, assim, rebaptizaram pejorativamente a Idade Média como a “Idade da Fé”, preparando o terreno para novas críticas à religião organizada.
Para muitas figuras do Iluminismo, a Idade das Trevas simbolizava um período em que o dogma religioso impedia o progresso científico e a investigação intelectual. Esta visão forneceu munições tanto para os críticos seculares como para os protestantes, que viam a época como marcada por instituições eclesiásticas corruptas, teologia corrompida e um constrangimento do pensamento livre.
O mito duradouro da Idade das Trevas foi ainda mais cimentado por historiadores como Edward Gibbon, cuja obra seminal sobre o declínio do Império Romano incluía comentários mordazes sobre o “lixo da Idade das Trevas” e o impacto prejudicial do cristianismo. No entanto, enquanto estes pontos de vista prevaleciam no século XVIII, o movimento romântico subsequente começou a oferecer uma contra-narrativa. O Romantismo reavivou uma visão nostálgica e cavaleiresca de uma Europa Medieval imbuída de piedade, sentido ético e harmonia social – uma visão que, embora idealizada, realçava a complexidade da época para além do simples binário entre trevas e iluminação.
A realidade histórica: Os desafios da Europa pós-romana.
Alguns historiadores modernos têm trabalhado diligentemente para desmantelar a visão demasiado simplificada da Idade Média. Estudiosos como Denys Hay caracterizaram a época como “animada” e não uniformemente sombria, salientando que a chamada Idade Média foi, em muitos aspectos, um precursor necessário do Renascimento. Christopher Dawson, outro historiador influente, argumentou que este período lançou as bases para o despertar cultural que se seguiria.
No entanto, o período imediatamente posterior à queda do Império Romano do Ocidente foi, de facto, repleto de desafios. O colapso de Roma deixou um vasto vazio de poder em toda a Europa Central e Ocidental, o que, por sua vez, deu origem a lógicas tribais internas e a uma série de invasões por forças externas. As violentas convulsões que se seguiram não foram o resultado de uma supressão religiosa, mas sim a consequência de vários factores inter-relacionados.
Invasões de forças externas.
Após a queda de Roma, a Europa tornou-se um campo de batalha para várias potências externas. No século X, a Europa Central estava sitiada por várias direcções. As forças árabes, impulsionadas pela expansão do Califado Omíada, invadiram a Europa pelo sul. Os magiares lançavam incursões a partir do leste, enquanto os vikings causavam estragos ao longo das costas, desde o Báltico até ao Mediterrâneo. Até mesmo o legado dos hunos se impôs na memória colectiva da população europeia. o Século XIII, Os tártaros constituíram uma das mais terríveis ameaças da história da Europa, conquistando o seu extremo oriental e ameaçando até o coração do continente. As principais vitórias militares – como o longo processo de reconquista na Península Ibérica e a derrota dos árabes na Batalha de Toulouse, em 721 d.C., e na Batalha de Tours, em 732 d.C., bem como os sucessos do rei Otão I contra os magiares – sublinham o carácter violento e turbulento da época.
Um cenário político descentralizado.
A desintegração de um Estado romano unificado resultou num ambiente político fragmentado. A ausência de uma autoridade central significava que os reinos locais e os senhores da guerra lutavam pelo poder numa época marcada por conflitos frequentes e alianças inconstantes. A fragmentação política tornou extremamente difícil reunir o tipo de recursos e a força organizacional necessários para recriar um império semelhante ao de Roma ou de Bizâncio. Em vez disso, os poderes locais estavam frequentemente preocupados com a sobrevivência imediata e com conflitos regionais, adiando o início de grandes projectos infra-estruturais e culturais até que surgisse uma ordem mais estável.
O cristianismo como força unificadora e civilizadora.
Neste contexto de invasões externas e de fragmentação interna, a Igreja Cristã desempenhou um papel fundamental. Longe de ser um obstáculo ao progresso, o cristianismo serviu como força unificadora que ajudou a reunir os pedaços dispersos de uma civilização outrora exuberante. Basta pensar que sem o apoio e a legitimação do Vaticano o esforço de centralização mais significativo desta era, levado a cabo pelos reis merovíngios e carolíngios, com especial destaque para o império de Carlos Magno, não teria sido possível.
Colmatar as divisões culturais.
Na sequência do colapso de Roma, a Europa era um mosaico de culturas díspares. As tradições sofisticadas do Mediterrâneo coexistiam com as estruturas tribais e baseadas em clãs dos chamados povos “bárbaros” do Norte. Historicamente, estes grupos tinham pouco em comum, para além de pequenas integrações através de relações de vassalagem e de acções militares mercenárias. A Igreja, no entanto, oferecia um enquadramento cultural e espiritual comum que transcendia estas diferenças. Através da conversão e do ensino religioso, bem como do estabelecimento do latim como língua franca entre estudiosos e académicos, que possibilitou a partilha do conhecimento entre as elites intelectuais europeias, a igreja integrou, lenta mas seguramente, os elementos díspares da sociedade europeia no que mais tarde seria reconhecido como “Cristandade”.
O historiador Christopher Dawson captou de forma eloquente este processo de transformação, observando que a ascensão da cultura feudal representou uma tradução da velha tradição guerreira do Norte em formas especificamente cristãs. O resultado foi uma síntese cultural única, que efectivamente colmatou o fosso entre os vestígios da civilização romana e as tradições bárbaras emergentes.
Defender a Europa de ameaças externas.
A influência civilizadora do cristianismo não se limitou apenas ao domínio da cultura; teve também ramificações militares e políticas significativas. À medida que as ameaças externas se aproximavam, a Igreja tornou-se um ponto de encontro para a defesa contra as forças invasoras. A conversão de líderes importantes, como Clóvis I dos Francos e a dinastia Merovíngia, teve implicações profundas. A sua adesão ao cristianismo significava que a defesa contra os invasores – fossem eles vikings, árabes ou magiares – não era apenas uma questão de integridade territorial, mas também de protecção da nascente identidade cristã da Europa.
Unir a política interna.
Embora as invasões externas constituíssem um desafio significativo, a luta interna pelo poder político era um obstáculo igualmente formidável. A Igreja exerceu uma influência estabilizadora que ajudou a atenuar a discórdia inerente a uma paisagem política fragmentada. Através da sua liderança espiritual, a Igreja foi gradualmente reunindo os vários reinos e principados sob uma bandeira comum. Este processo de unificação foi um precursor do aparecimento de entidades políticas mais centralizadas, como o Sacro Império Romano-Germânico sob a direcção de Otão, o Grande, no século X.
Mesmo antes desta consolidação política, o Papado exerceu um considerável soft power ao promover um sentimento de identidade partilhada entre os vários governantes cristãos. À medida que os reinos se convertiam ao catolicismo, eram integrados numa hierarquia religiosa e política mais vasta que enfatizava a ordem e a unidade – em forte contraste com o governo desarticulado do período pós-romano. Esta unidade não foi meramente simbólica; forneceu o enquadramento ideológico e organizacional necessário para a Europa ultrapassar a fase feudal e lançar as bases do Estado-nação moderno.
O legado duradouro do cristianismo.
Em retrospectiva, a narrativa da Idade Média é muito mais matizada do que a visão simplista de um período marcado pela opressão religiosa. Os verdadeiros desafios da época foram as invasões violentas e as dificuldades inerentes a uma ordem política descentralizada. O cristianismo, em vez de ser a fonte destes males, foi fundamental para os atenuar. Ao unir diversos povos sob um quadro cultural e religioso comum, a Igreja lançou as bases para o renascimento intelectual e cultural que acabaria por culminar no Renascimento. Como afirmou Christopher Dawson:
“Nunca houve uma organização unitária da cultura ocidental para além da Igreja cristã, que constituiu um princípio eficaz de unidade social.”
Conclusão.
A “Idade das Trevas” não foi sombria devido à influência do cristianismo; pelo contrário, foi sombria devido às forças invasoras implacáveis e à desintegração isntitucional interna. No meio desta turbulência, a Igreja Cristã emergiu como uma força unificadora e civilizadora, colmatando as divisões culturais, defendendo-se contra ameaças externas e, gradualmente, unindo a fragmentada tapeçaria da Europa pós-romana. Foi esta unidade que não só preservou a essência da civilização ocidental durante os seus tempos mais difíceis, como também preparou o caminho para o ressurgimento intelectual e cultural dos séculos posteriores, fazendo luz sobre as trevas.
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