A questão da separação entre o bom, o belo e o verdadeiro tem sido debatida ao longo da história da filosofia, especialmente na tradição platônica e tomista, que considera esses três transcendentais – chamemo-los assim – como interligados. É uma espécie de “armadilha”, tal qual a questão do determinismo versus livre-arbítrio. Neste vago ensaio, entre outros temas, alerto que algumas perspectivas modernas e contemporâneas sugerem seu poder de, em certos casos, se dissociar. E as consequências, como bem sabemos, são reais.
Algo pode ser bom, mas feio e falso?
Teoricamente, sim, dependendo de como definimos cada termo. Eis algumas possibilidades:
• Um ato moralmente bom, mas esteticamente feio e baseado em uma falsidade.
Exemplo: alguém ajuda uma pessoa necessitada (um ato bom), mas o faz de maneira grotesca, humilhando quem está sendo ajudado (algo feio), e com base em uma mentira (como dizer que está ajudando por bondade quando, na verdade, quer apenas parecer virtuoso e exibir-se).
• Uma verdade inconveniente pode ser bela e boa, mas não parecer “verdadeira” na narrativa dominante
Exemplo: certos heróis trágicos da história foram considerados falsos ou até feios em seu tempo, mas posteriormente revelaram-se corretos e nobres. E sobre isso exemplificarei mais adiante.
Para Platão e Aristóteles, bem como para a escolástica medieval, esses três conceitos são inseparáveis em sua essência. Algo realmente bom não pode ser totalmente feio ou falso, porque a bondade implica uma ordem, e a ordem sugere uma forma de beleza e verdade.
Santo Tomás de Aquino reforça essa interligação ao afirmar que toda a criação divina reflete o ser (que é verdadeiro), a ordem e harmonia (que é bela) e o fim último do bem.
Com o avanço do pensamento moderno e pós-moderno, entretanto, a interligação entre esses conceitos foi desafiada. Nietzsche, por exemplo e sempre ele, criticou a ideia de uma verdade objetiva e via o belo e o bom como “construções culturais”. Já o utilitarismo pode considerar algo bom simplesmente pelos seus efeitos práticos, mesmo que não seja verdadeiro ou belo.
Ainda que possamos conceber exceções, como as acima demonstradas, elas geralmente ocorrem nas camadas superficiais. Em um plano mais profundo, torna-se difícil sustentar que algo possa ser plenamente bom sem conter algum grau de verdade e beleza. No entanto, a atual e limitada percepção humana sempre poderá criar a ilusão de que esses conceitos estarão dissociados, em alguns casos.
Uma breve reflexão filosófica
A interconexão entre os transcendentais – o bom, o belo e o verdadeiro – é um dos pilares fundamentais da tradição filosófica ocidental. Desde Platão, passando pela Escolástica medieval e chegando à modernidade, a ideia de que esses conceitos estão intrinsecamente ligados moldou a compreensão do mundo e o modo como enxergamos a vida. No entanto, a destruição intelectual promovida pelo relativismo contemporâneo teima em questionar essa unidade, buscando dissociar tais elementos e, por conseguinte, desestruturar o próprio ordenamento da realidade. Sob minha visão, que prioriza a permanência dos valores tradicionais, busco demonstrar que o bom, o belo e o verdadeiro são indissociáveis, refletindo uma ordem natural e divina.
A unidade dos transcendentais na tradição filosófica
A tradição clássica, especialmente em Platão e Aristóteles, afirma que o conhecimento da realidade implica na busca pelo bem, pelo belo e pelo verdadeiro. Platão, em sua teoria das Ideias, coloca o Bem como o princípio supremo da realidade, ao qual está vinculada a Verdade. O Bem, nesse sentido, é a origem e o fim de todas as coisas, aquilo que confere inteligibilidade ao mundo sensível e que, por sua natureza transcendente, só pode ser plenamente apreendido pela razão iluminada – e deixo em aberto quaisquer considerações dos leitores, nos comentários.
Já para Aristóteles, o conceito de verdade está intrinsecamente ligado à adequação do intelecto à realidade objetiva, e essa conformidade entre o pensamento e o ser é a base do conhecimento – a “unidade do conhecimento na unidade da consciência”, conforme demonstrou de maneira magnífica, o filósofo Olavo de Carvalho1:
• A filosofia é a busca pela unidade do conhecimento e da consciência.
• A unidade da experiência pessoal só é possível quando a consciência autoral está no centro, distinguindo o fazer e o padecer.
• A unidade do saber, do ser e do agir é a meta de toda filosofia.
• A unidade de conhecimento e de autoconhecimento só pode existir para uma mente que não veja hiato entre ciência, ética, metafísica e política.
• A filosofia de Olavo de Carvalho propõe que a metafísica seja materializada, em oposição ao “materialismo espiritual”.
Voltando a questão em si: a Beleza, por sua vez, não se reduz a uma questão estética superficial, mas é, isto sim, uma manifestação da ordem e da proporcionalidade intrínsecas ao cosmos. O belo, o verdadeiro e o bom não são meras convenções humanas, mas expressões de uma realidade superior e ordenada – a consecução terrena de tais expressões, que podem ser através de atos, pensamentos ou arte não será tratada aqui.
Na tradição cristã, Santo Tomás de Aquino reafirma essa conexão ao argumentar que toda a criação divina reflete esses transcendentais. Deus, sendo a plenitude do ser, é simultaneamente o Bem absoluto, a Verdade suprema e a Beleza perfeita. Para o Santo Doutor, a separação desses elementos levaria à dissolução da própria noção de ser, pois a bondade implica em uma conformidade com o bem último, a verdade depende de uma realidade objetiva e a beleza é a expressão da harmonia que permeia toda a criação. Qualquer tentativa de dissociá-los, portanto, não apenas obscurece a compreensão do mundo, mas distorce a própria estrutura do conhecimento e da moralidade, conduzindo ao caos epistemológico e ao relativismo moral – e fica a dica, para muitos.
Roger Scruton, um dos mais notáveis pensadores conservadores contemporâneos, reforça essa visão ao argumentar que a Beleza não é um luxo ou uma superficialidade, mas sim um elemento essencial para a civilização. Em sua obra “A Beleza”, Scruton defende que a arte, a arquitetura e a cultura que rejeitam a harmonia e a proporção acabam promovendo o niilismo e a alienação. Ele afirma que “a Beleza importa porque através dela formamos vínculos com o mundo e encontramos significado”. O desaparecimento desse vínculo, segundo ele, contribui para a deterioração da vida social e da identidade cultural.
Além disso, Scruton alerta para os perigos da fragmentação do conhecimento e da dissolução dos transcendentais. Em “As Vantagens do Pessimismo”, ele critica a modernidade por abandonar a busca da verdade objetiva e da moralidade fundamentada em princípios perenes, resultando em uma sociedade onde o subjetivismo impera. Para ele, a verdade não pode ser reduzida a narrativas arbitrárias, mas deve ser buscada como o reflexo de uma ordem real e objetiva. Assim, a rejeição do belo, do bom e do verdadeiro não apenas desfigura a cultura, mas conduz à decadência civilizacional.
A Dissociação moderna e suas implicações
A modernidade, marcada pela fragmentação epistemológica, buscou desvincular o bem da verdade e da beleza, dando origem a um processo de dissolução dos referenciais objetivos. O iluminismo, ao enfatizar a razão autônoma, iniciou um deslocamento do centro moral, promovendo um subjetivismo que relativizou a noção de bem e verdade. Com a ascensão do niilismo e do pensamento pós-moderno no século XX, a ideia de uma verdade objetiva passou a ser questionada, substituída por uma multiplicidade de “verdades” condicionadas historicamente e construídas socialmente – um prato cheio para as ideologias, bem o sabemos. Esse movimento não apenas desacreditou as bases metafísicas da ordem moral e estética, mas também corroeu os fundamentos que sustentam a própria ideia de civilização.
Essa dissociação gerou consequências nefastas, cujos efeitos são evidentes no campo da cultura, da moralidade e da política. A arte contemporânea, ao rejeitar a beleza em favor de expressões caóticas e desconstrutivistas, reflete a perda de um princípio ordenador, distanciando-se do ideal clássico que via na arte uma manifestação da harmonia universal. No campo moral, a ruptura com uma verdade objetiva conduz ao relativismo ético, onde a bondade é reduzida a uma questão de conveniência subjetiva ou de utilidade pragmática, desprovida de qualquer ancoragem em princípios transcendentes. Esse deslocamento resulta em uma sociedade fragmentada, onde a noção de dever e virtude é constantemente reinterpretada conforme as tendências e pressões do momento, sem compromisso com a permanência dos valores essenciais.
Exemplos históricos de heroísmo e redenção dos transcendentais
Longe de ser uma contradição, este parágrafo tem seu cabimento. Consideremos, pois, que a história nos fornece inúmeros exemplos de indivíduos que, em seus dias, foram considerados falsos, feios ou maus, mas posteriormente revelaram-se heróis. Joana d’Arc foi queimada como herege e impostora, apenas para ser canonizada séculos depois como santa e heroína nacional francesa. Galileu, condenado por desafiar a ortodoxia de sua época, foi mais tarde reconhecido como um dos maiores cientistas da humanidade. Sócrates, acusado de corromper a juventude e condenado à morte, tornou-se símbolo perene da busca pela verdade.
Esses exemplos demonstram que, embora os transcendentais possam ser temporariamente obscurecidos pela distorção humana, eles acabam prevalecendo. A verdade pode ser suprimida, a beleza pode ser negligenciada, e o bem pode ser mal interpretado, mas sua essência permanece imutável, aguardando o momento de sua redenção – e tudo isso justifica o parágrafo acima.
A necessidade de uma reafirmação conservadora: conclusão
Diante da reconhecida e inconteste fragmentação dos valores tradicionais, proponho um resgate da ordem natural, onde o bem, a verdade e a beleza sejam novamente reconhecidos como princípios fundamentais. O desafio atual não está apenas na reafirmação desses valores mas, também, na resistência à sua erosão por uma cultura que busca redefinir, conforme suas conveniências, o significado do que é virtuoso.
A reconstrução de todo esse arcabouço exigirá coragem intelectual e moral, bem como uma educação que valorize as grandes obras do pensamento clássico e cristão. Somente através da redescoberta desses fundamentos poderemos reorientar nossa civilização para um futuro onde a harmonia entre o bom, o belo e o verdadeiro seja restaurada e preservada para as gerações futuras.
Talvez ainda hajam esperanças para nós.
WALTER BIANCARDINE
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1 Aristóteles em Nova Perspectiva: Introdução à Teoria dos Quatro Discursos – Olavo de Carvalho, 1996 – Topbooks. Posteriormente, houve outras edições, como a de 2006 pela É Realizações e a de 2016 pela Vide Editorial. Aristóteles em Nova Perspectiva é uma introdução à Teoria dos Quatro Discursos, sendo considerado um clássico da interpretação aristotélica. Olavo dedicou muitos anos ao estudo da obra de Aristóteles e aos comentários e desdobramentos contemporâneos de suas teses. Ele desenvolveu a sua própria filosofia assentada nas bases da filosofia aristotélica. Recomendo fortemente.
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Walter Biancardine foi aluno de Olavo de Carvalho, é analista político, jornalista (Diário Cabofriense, Rede Lagos TV, Rádio Ondas Fm) e blogger; foi funcionário da OEA – Organização dos Estados Americanos.
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