Se quisermos compreender o que é a filosofia, temos de investigar o mundo em que esta palavra nasceu, nomeadamente a Grécia antiga. Para além das abordagens filológicas e etimológicas, que, embora valiosas, têm as suas limitações, temos de descobrir como os autores clássicos entendiam o conceito de “filosofia”. Ao lado dos grandes pensadores especulativos, como Platão, Aristóteles e Plotino, dos quais dispomos de importantes colecções de textos, há um autor que discutiu em pormenor as origens do “amor à sabedoria”: Diógenes Laércio. Na mais famosa colectânea sobre os filósofos antigos e as suas doutrinas, a De vita et moribus philosophorum (Vidas e costumes dos filósofos), dedica as primeiras páginas a uma análise detalhada das origens da filosofia.
Infelizmente, devido às duras críticas que lhe foram dirigidas por Friedrich Nietzsche (1844-1900) e Hermann Usener (1834-1905), Laércio foi muitas vezes ignorado ou tratado com alguma reserva. A acusação feita por estes dois autores foi a de plágio. Especificamente, foi alegado que ele copiou secções inteiras dos escritos de Diocles de Magnésia, Apolónides de Niceia ou Favorino. Considerando a forma como os relatos sobre os antigos filósofos gregos circulavam e eram emprestados, tais críticas são injustificadas. Os autores antigos não viviam num mundo marcado pelo princípio ético moderno dos “direitos de autor”. Para eles, o que importava, como se vê nos seus escritos, era a exaustividade da informação transmitida, recolhida ao acaso, ou criteriosamente, em fontes ora mencionadas, ora deixadas obscuras. O que os movia era o desejo de registar tudo o que se dizia sobre os antigos amantes da sabedoria, sem se preocuparem com a coerência, as contradições entre as diferentes fontes ou a autoria desses relatos.
Diógenes Laércio viveu entre os séculos II e III d.C. Ele transmite várias ideias importantes que encontramos constantemente quando estudamos a natureza da filosofia no contexto de fontes preservadas de autores antigos. Mas o que há a enfatizar é um facto que pode ser provado com a ajuda dos textos: que havia uma unidade na compreensão dos pensadores daquela tradição – a que nos deu Pitágoras, Anaxágoras, Parménides, Sócrates, Platão, Aristóteles ou Epicteto. Estes homens sabiam o que é a filosofia e, mesmo que haja diferenças de nuance ou ênfase, o núcleo dessa arte reflexiva e contemplativa é o mesmo para todos eles.
Grego ou bárbaro?
Diógenes Laércio inicia a discussão sobre as origens da filosofia de forma bastante abrupta: são gregas ou “bárbaras”? A questão é perfeitamente legítima porque o Mediterrâneo greco-romano era um caldeirão cultural e étnico, que incorporava tradições e línguas alienígenas, e porque, como ele nos diz, “há quem diga que o estudo da filosofia teve o seu início entre os bárbaros”.
Um exemplo, tardio, desta realidade são os evangelhos, que foram escritos em grego, enquanto Cristo pregava em aramaico e os evangelistas, judeus, eram com certeza considerados bárbaros pelos romanos.
Entre os autores que podem ser citados para apoiar as origens “bárbaras” da filosofia estão Aristóteles, com o seu tratado Sobre a Magia, e Sotião de Alexandria, com as suas “Sucessões”. Outro autor que discutiu as origens orientais da filosofia – cinco séculos antes de Laércio – foi Hecateu de Abdera (c.360 a.C.-c.290 a.C.). A discussão nunca deixou de fascinar os historiadores que, como acontece frequentemente, tentaram – desde os antigos até Theodor Hopfner, Aram Frenkian e Daniel Constantin – demonstrar o indemonstrável. A única certeza é a origem grega do termo em questão, e não a disciplina a que ele se refere.
Houve, portanto, autores que afirmaram que a filosofia começou entre os povos bárbaros. A lista completa mencionada por Laércio é a seguinte: persas, babilónios e assírios, indianos, celtas e gauleses, fenícios, líbios, egípcios e trácios. Os seus contributos são referidos de forma sucinta e precisa, embora por vezes sejam criticados com firmeza. Eis um exemplo relevante:
Aqueles que atribuem a sua invenção aos bárbaros apresentam Orfeu, o trácio, chamando-lhe um filósofo de cuja antiguidade não há dúvida. Ora, considerando o tipo de coisas que ele disse sobre os deuses, mal sei se ele deveria ser chamado de filósofo; pois o que devemos pensar de alguém que não tem escrúpulos em acusar os deuses de todo o sofrimento humano, e até mesmo dos crimes imundos cometidos pelos homens?
Esta passagem é muito significativa para compreender a perspectiva do autor. A base da crítica dirigida ao famoso Orfeu é de carácter teológico. É semelhante às objecções levantadas por filósofos como Xenófanes de Cólofon, Sócrates, Platão e mesmo Aristóteles, contra a representação popular das divindades gregas. Do mesmo modo, os primeiros autores cristãos da elite intelectual levantaram objecções cada vez mais fortes contra o panteão grego e romano. Laércio alinha-se com aqueles que têm sérias reservas quanto à forma como autores como Homero e Orfeu descrevem os deuses. É por isso que não pode considerar este último um filósofo. Estamos assim a lidar com uma razão teológica, o que já nos diz algo muito importante sobre a natureza da filosofia e daqueles que a praticam, tal como Laércio a entende.
Os egípcios e “os outros”.
A apresentação mais extensa da visão “filosófica” de um antigo povo “bárbaro” é a dedicada aos egípcios:
A filosofia dos egípcios é descrita da seguinte forma, no que diz respeito aos deuses e à justiça. Dizem que a matéria foi o primeiro princípio, a seguir os quatro elementos derivaram da matéria, e assim foram produzidos seres vivos de todas as espécies. O sol e a lua são deuses com os nomes de Osíris e Ísis, respectivamente; utilizam o escaravelho, o dragão, o falcão e outras criaturas como símbolos da divindade, segundo Manetho na sua Epítome das Doutrinas Físicas e Hecateu no primeiro livro da sua obra Sobre a Filosofia Egípcia. Também erguem estátuas e templos a estes animais sagrados porque não conhecem a verdadeira forma da divindade. Defendem que o universo é criado e perecível, e que tem uma forma esférica. Dizem que as estrelas são constituídas por fogo e que, à medida que o fogo nelas se mistura, assim acontecem os acontecimentos na terra; que a lua é eclipsada quando cai na sombra da terra; que a alma sobrevive à morte e passa para outros corpos; que a chuva é causada por mudanças na atmosfera; de todos os outros fenómenos dão explicações físicas, como relatam Hecateu e Aristágoras. Também estabeleceram leis sobre o tema da justiça, que atribuíram a Hermes; e deificaram os animais que são úteis ao homem. Afirmam também ter inventado a geometria, a astronomia e a aritmética.
De notar que a filosofia aqui é indexada a mitos criaccionistas e a todo o aparelho metafísico da civilização egípcia. Neste caso porém, Laércio é muito mais brando: não faz nenhuma crítica pronunciada, para além da observação teológica de que “eles não conhecem a verdadeira forma da divindade”. Isto deve-se muito provavelmente ao prestígio que a sua cultura tinha entre os filósofos gregos. Diz-se que os mais importantes deles – Tales, Pitágoras, Sócrates, etc. – visitaram o antigo Egipto. A famosa história da Atlântida, contada por Platão nos diálogos Timeu e Crítias, é também atribuída a sacerdotes egípcios de Sais, que a contaram ao sábio Sólon (c.630-c.560 a.C.).
Mais curtas do que a apresentação dedicada aos egípcios, as outras secções passam em revista os representantes religiosos das respectivas culturas: os gimnosofistas indianos (iogues), os druidas celtas, os druidas gauleses, o sacerdote trácio Zalmoxis, os magos zoroastrianos, o xamã Orfeu e os lendários Atlas e Hefesto (o equivalente ao deus egípcio Ptah). Ao analisar todas estas breves descrições enciclopédicas, percebe-se uma caraterística comum entre elas. Sem excepção, todos aqueles que são propostos como fundadores da filosofia são figuras religiosas de primeiro plano nas suas culturas. Descartes, Hume, Bacon, Kant ou Husserl ficariam chocados ao ver esta relação indestrutível entre as religiões antigas e a filosofia.
A filosofia como religião, a religião como filosofia.
No Dictionnaire des Religions, cuja primeira edição foi publicada pela editora francesa Plon, em Paris, em 1990, Ioan Petru Culianu afirmava inequivocamente que “na tradição platónica, a filosofia é uma religião e a religião uma filosofia”. Esta afirmação aplica-se na verdade a toda a filosofia grega. O pensamento especulativo antigo não pode ser separado do horizonte específico das religiões professadas pelos seus principais representantes. Neste sentido, Diógenes Laércio é mais um autor para quem a filosofia e as práticas religiosas – sejam elas ritualistas, xamânicas, mágicas ou teúrgicas – são indissociáveis. Por muito estranha que esta perspectiva nos possa parecer hoje, se não a adoptarmos será impossível compreender a natureza da filosofia tal como é apresentada nas Vitae philosophorum. Não estamos a lidar com uma mera opinião hipotética, mas com um axioma necessário para qualquer investigação sobre as origens e a natureza da filosofia.
Voltando à exposição de Laércio, verificamos que o seu principal objectivo é justificar as origens gregas da filosofia. É importante sublinhar que não se trata de uma forma arcaica de “nacionalismo”, que é uma invenção do mundo moderno. O nacionalismo não existia no contexto das antigas culturas europeias ou orientais. O que Diógenes Laércio defendia era o primado das origens, o que fica bem claro no fragmento em que tenta demonstrar as raízes gregas da filosofia:
Estes autores esquecem-se de que as conquistas que atribuem aos bárbaros pertencem aos gregos, com os quais teve início não apenas a filosofia, mas o próprio género humano. Por exemplo, Musaeus é reivindicado por Atenas, Linus por Tebas. Diz-se que o primeiro, filho de Eumolpus, foi o primeiro a compor uma genealogia dos deuses e a construir uma esfera, e que defendia que todas as coisas procedem da unidade e se resolvem novamente na unidade. Morreu em Phalerum, e este é o seu epitáfio: “Musaeus, ao seu pai Eumolpus querido, Em solo faleriano jaz enterrado aqui; e os Eumolpidae em Atenas recebem o seu nome do pai de Musaeus.”
Também Linus era (assim se diz) filho de Hermes e da Musa Urânia. Compôs um poema que descreve a criação do mundo, o curso do sol e da lua e o crescimento dos animais e das plantas. O seu poema começa com a frase: ‘O tempo era quando todas as coisas cresciam ao mesmo tempo’; e esta ideia foi retomada por Anaxágoras quando declarou que todas as coisas estavam originalmente juntas até que a Mente chegou e as pôs em ordem. Lino morreu em Eubeia, morto pela flecha de Apolo, e este é o seu epitáfio: “Aqui Lino Tebano, que Urânia deu à luz, a Musa coroada de beleza, dorme numa costa estrangeira.” E foi assim que a filosofia nasceu dos gregos: o seu próprio nome recusa-se a ser traduzido para a língua estrangeira.
Uma leitura atenta deste fragmento revela três argumentos a favor das origens gregas da filosofia. Em primeiro lugar, o argumento mitológico invoca as origens da humanidade: os gregos não são apenas os iniciadores do “amor à sabedoria”, mas de toda a humanidade. Basicamente, Adão e Eva eram gregos. A partir da premissa de que os gregos foram os iniciadores da humanidade, segue-se o segundo argumento: como se fossem testemunhas da criação, conheciam tanto a genealogia dos deuses como a origem de todo o cosmos. Finalmente, o terceiro argumento, que sendo alheio aos dois primeiros, é de natureza filológica: o termo “filosofia” não só é grego como carece de equivalente nas línguas dos povos cujos filósofos foram apresentados.
Embora inquestionavelmente favorável à tese das origens gregas da filosofia, Diógenes Laércio fornece-nos muitos pormenores sobre outras culturas e sobre como os seus representantes mais significativos seguiram os caminhos do “amor à sabedoria”. Rica em pormenores exóticos, a sua análise contém ideias dignas de nota para qualquer discussão aprofundada sobre a natureza da filosofia antiga.
Lições da Vitae philosophorum
Já há muito – ou desde sempre – que aceitamos a origem grega do termo “filosofia”. Embora autores modernos, como o egiptólogo Daniel Constantin, tenham tentado demonstrar a origem não grega dos termos “filosofia” e “filósofo”, as suas hipóteses não resistiram a uma análise filológica rigorosa. No entanto, se a origem grega do termo “filosofia” pode ser facilmente reconhecida sem grandes problemas, o mesmo não se pode dizer do fenómeno que designa.
Implicitamente demonstrado por Laércio através da sua exposição dos povos e dos seus representantes religiosos que praticavam a disciplina em questão, podemos deduzir que se trata de uma arte que se desenvolveu concomitantemente em diferentes contextos por todos os antigos. A perseguição da sabedoria tinha discípulos em todo o lado e este texto nem sequer menciona um dos sábios mais importantes e influentes da história da humanidade: Confúcio. No entanto, os gregos merecem ser reconhecidos por terem imortalizado e difundido esse amor à sabedoria com um nome e por a terem cultivado sistematicamente ao longo de milénios até à era cristã, quando a filosofia ganhou novas dimensões através de pensadores como Santo Agostinho, S. Tomás de Aquino ou Santo Anselmo.
É claro que alguns falarão – sem risco de erro – do “baptismo” da filosofia. Ao mesmo tempo, há que fazer esforços sérios para compreender como é que esta disciplina tão antiga como a história humana foi assimilada no novo contexto religioso, após a vida, morte e ressurreição de Jesus Cristo.
Porque se para a Grécia antiga a filosofia era indissociável da religião, para nós a disciplina só pode ser cristã. Com a incarnação do Logos divino, Jesus Cristo – a segunda Pessoa da Santíssima Trindade – a mutação ontológica que influencia todo o cosmos pressupõe um inevitável rigor intelectual-especulativo, ritualístico e ascético que deve ser assumido por qualquer autêntico amante da sabedoria.
Laércio, como gregos e egípcios, trácios e judeus, romanos e celtas, não separava a filosofia da religião. O cristão contemporâneo também não o deve fazer. Até porque, como já foi sublinhado num breve ensaio do Contra sobre o versículo primeiro do Evangelho de João, no princípio de todas as coisas está a razão e a sua expressão pela palavra.
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