“Se eu aceitar a morte na minha vida, se a reconhecer e enfrentar com frontalidade, libertar-me-ei da ansiedade da morte e da mesquinhez da vida – e só então serei livre para me tornar eu próprio.”
Martin Heidegger
Como já vimos num artigo anterior desta série, quando Pátroclo, amigo de Aquiles, é morto às mãos de Heitor, trava-se uma luta feroz pelo o corpo do jovem guerreiro grego. Na Ilíada, isto não acontece apenas com Pátroclo, veremos isto também nos momentos posteriores à morte de Heitor e se a tentativa de profanar o cadáver de Pátroclo sai frustrada, por obstinação divina, o corpo de Heitor é de facto aviltado por Aquiles, uma e outra vez, embora também aqui os deuses intervenham, impedindo a sua carne de ser completamente dilacerada e os seus membros despedaçados, de forma a que seja possível aos troianos dar ao seu príncipe um funeral decente – e os funerais de Homero são realmente solenes e magníficos. Como se articula de seguida, não será por acaso.
Voltando à morte de Pátroclo, no Canto XVII surgem em cena os Cavalos Imortais de Aquiles. Se bem se lembra o estimado leitor desta série, Pátroclo tinha levado emprestado para a sua derradeira peleja o equipamento militar de Aquiles, que incluía o carro de combate que era puxado por três cavalos. Acontece que dois deles, Xantos e Bálius, são imortais. Sim: temos na Ilíada dois cavalos que não morrem. Ora, assistindo à queda do herói grego, estes eternos espécimes equestres desatam num pranto, inconsoláveis com a morte do seu incauto condutor. Observando o carpir dos cavalos imortais, Zeus apieda-se deles e procura, de certa forma, consolá-los, lamentando tê-los oferecido a Peleu, pai de Aquiles, e assim submetendo-os às dores e às desgraças dos humanos mortais:
Ah coitados, por que razão vos demos ao soberano Peleu,
um homem mortal? E vós que sois isentos de velhice e imortais.
Foi para que entre os homens desgraçados sentísseis a dor?
Pois na verdade nada há de mais miserável do que o homem
de todos os seres que vivem e rastejam em cima da terra.*
Esta constatação de que “nada há de mais miserável do que o homem” dá que pensar. A melhor forma de enquadrar estas palavras talvez seja a de estruturar hierarquicamente o universo homérico, que tem, grosso modo, três níveis ontológicos: temos os deuses, que são imortais, e depois temos os homens, que perecem e têm consciência disso, e depois temos os outros animais, que também morrem, mas não têm consciência disso. Cavalos imortais à parte, este diferença entre o homem e os restantes animais é fundamental. Todos morrem, mas uns vivem com esse fim em mente e os outros, felizardos, desconhecem esse inescapável destino. Zeus está na verdade a lamentar a sorte daqueles animais que têm o conhecimento de que a sua vida terminará um dia, triste sabedoria que lhes traz uma miséria muito particular.
Séculos mais tarde, Heidegger debruçou-se precisamente sobre esta angústia, esta ansiedade que, regra geral, todos sentimos em relação ao fim inevitável. Precisamente porque sabemos que a vida tem uma extensão limitada e que, comparativamente com as eras da história e a história do mundo, é deveras breve, experimentamos essa miséria existencial, constantemente, e só seremos livres para nos entregarmos à verdade de quem somos e à essência da realidade, quando deixamos de ser perturbados por essa ideia fatídica.
A introdução por Homero dos cavalos imortais, trazendo do fundo da hierarquia os animais para o convívio divino dos seres imperecíveis, serve assim e apenas como um elemento de dramatização da condição humana. Um cavalo imortal ou um cavalo mortal têm na verdade a mesma relação com a morte, que é a da total indiferença pelo conceito. Por oposição, os homens terão necessariamente que conviver com a certeza do fim.
Mas aqui, talvez Homero nos queira dizer mais qualquer coisa sobre o assunto, nas entrelinhas dos seus grandiloquentes versos. Talvez nos queira dizer que é essa consciência da morte que dá ao homem a possibilidade do heroísmo, da coragem, da glória, do sacrifício e de um conjunto de valores morais que são transcendentes às leis elementares da natureza.
Afinal, se não estivéssemos destinados a morrer, que Ilíada poderia alguma vez ser escrita?
* Tradução do grego original de Frederico Lourenço
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Outros artigos no Contra sobre o legado literário de Homero:
Uma introdução à obra de Homero.
A Ilíada,Canto I: Aquiles, Agamémnon e a disputa das concubinas.
A Ilíada,Canto III: A repreensão de Heitor, a insensatez de Páris e a interferência dos deuses.
A iliada, Canto III, parte II: Sobre a civilidade dos bárbaros e a barbaridade dos civilizados.
Ilíada, Canto IX: Os dois destinos de Aquiles.
A Ilíada, Canto XVI: Os três assassinos de Pátroclo.
A Ilíada, Canto XVI, parte II: A humanidade de Heitor e a iniquidade de Aquiles.
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