Quando o orador romano Marcus Tullius Cicero escreveu a sua imortal Segunda Filípica, atacando o amante dos prazeres da vida, Marco António, não podia saber que iria definir o tom, durante séculos, para todos os defensores da liberdade na sua luta contra a tirania. Também não podia saber que a sua descrição de Marco António e o significado da sua luta contra ele se tornariam canónicos – e fatais para ele. A maioria dos homens escreve sobre o seu presente. Alguns grandes, como Churchill, escrevem de forma convincente sobre o seu passado. Cícero escreveu sobre o seu futuro.

Não que nada disso fosse óbvio para ele na época. Roma em 44 a.C. estava mergulhada no caos . O ditador vitalício tinha acabado de ser assassinado. Um par de anos antes, o firme e teimoso defensor da república, Catão, tinha-se suicidado, estripando-se com as suas próprias mãos. Amigos e inimigos respeitáveis tinham morrido – ou sido mortos. Restavam os bandidos e os jovens. O senado – esse símbolo estimado da Roma republicana – era uma nulidade de cobardes. Os poucos indivíduos ilustres que não tinham encontrado uma morte prematura, como o bom amigo de Cícero, Tito Pompónio Ático, tinham sabiamente escolhido ficar fora da política. Aqueles que buscavam as luzes da ribalta aprenderam a contornar os cargos tradicionais. A corrupção e o perigo eram as únicas recompensas que restavam aos que competiam no cursus honorum. Dizer que a república romana tardia estava polarizada seria um erro, pois a polarização implica um espectro político claro para começar. Não era apenas a política que estava a ser alterada, mas até a capacidade de interpretar a política. Poucas soluções podiam ser encontradas. E menos ainda eram as razões para ter esperança.

 

 

Foi nestes tempos perigosos que o velho estadista consagrou o valor de uma vida inteira de ética prática naquele que se tornaria justamente um dos mais célebres textos filosóficos da tradição ocidental: De Officiis (“Sobre os Deveres”).

O próprio título “ Sobre os Deveres” deveria suscitar uma reflexão no homem pós-moderno. Vivemos num mundo de direitos em constante expansão, não de deveres. Desde os direitos legais aos direitos políticos, passando pelos direitos das mulheres e pelos direitos humanos e pelos direitos LGBT e etc., estamos imbuídos do espírito do que nos é devido. Esta tendência liberta uma série de problemas. Quem é responsável por garantir os nossos direitos? A sociedade é uma resposta insatisfatória, porque as entidades colectivas contemporâneas pouco mais são do que ordens – ou desordens – espontâneas de indivíduos, o que complica a atribuição de responsabilidades. Como qualquer empregador competente sabe, se todos na organização são responsáveis, então ninguém o é. Na prática, a responsabilidade recai sobre o Estado, enquanto entidade que detém o monopólio legítimo do uso da violência para proteger os direitos. Isto é suficientemente aceitável para dar conta dos direitos que o Estado garante aos seus próprios cidadãos. Mas o que é que acontece quando o Estado viola os direitos dos seus próprios cidadãos? É suposto o Estado A proteger os direitos humanos que estão a ser violados no Estado B?

Este conceito de interferência ente nações, também não tem sido propriamente um sucesso, como é demonstrável pelos milhares de milhões de mortos resultantes das guerras que assolaram constantemente os últimos séculos.

O discurso sobre direitos também apela à nossa preferência por sanções legais em casos de infração. Com excepção de um pequeno número de profissões, não podemos punir aqueles que não cumprem os seus deveres, ao passo que os violadores dos direitos estão sempre ao alcance do longo braço da lei. E porque nos orgulhamos de tolerar diversas crenças e estilos de vida, os apelos à consciência e a vergonha pública não são tão aceitáveis nem tão eficazes para manter uma certa ordem das coisas. Assim, restam-nos poucas ferramentas para além do recurso a sanções legais. Não que nada disto seja geralmente visto como um vício. De facto, o discurso sobre os direitos alinha-se bem com o nosso apoio à liberdade individual. Cada um é livre de falar e fazer o que quiser, desde que as suas palavras e acções não prejudiquem os outros, e é por isso que pouco se pode fazer para restringir essa liberdade, para além de enquadrar as formas indesejáveis da mesma como um prejuízo.

Tudo isto teve o efeito perverso de reconceptualizar os deveres como uma restrição da liberdade pessoal. Nada poderia estar mais longe da verdade. Consideremos o efeito psicologicamente prejudicial da conversa sobre direitos. Não precisamos de cumprir nada para termos direito aos nossos direitos. De facto, não precisamos de fazer absolutamente nada para usufruir dos nossos direitos. Somos os destinatários passivos dos direitos. Quando os nossos direitos são violados, tornamo-nos vítimas, continuando assim a desempenhar um papel passivo. Não é de admirar que esta visão da natureza humana tenha dado origem à muiltipliciade de ‘ciências’ sociais que estudam o comportamento humano. O que estas ciências e uma obsessão desmedida pelo discurso dos direitos têm em comum é a convicção de que o homem não actua. É antes uma folha em branco, na qual se inscrevem a biologia e o contexto social, e só pode ser empurrado na direcção certa por estruturas sociais sólidas. Mas se não sabemos o que é o bem comum, então como podemos saber qual é a direcção certa?

Um bem comum pressupõe a ideia de um bem para o homem enquanto tal, um bem que o homem pode escolher livremente através dos seus actos. Mas se o homem se limita a responder a estímulos e a incitamentos externos – por outras palavras, se não é um ser que age – então porque precisa de liberdade? Esta “liberdade” negativa torna-se um fim em si mesmo, oximorónico e insatisfatório. Os teóricos originais desta liberdade negativa ainda estavam suficientemente iluminados com o espírito dos antigos para assumir que o homem aspiraria à excelência e à virtude, mas nós, hoje em dia, olvidamos a nossa herança. Assim, é-nos permitido perguntar novamente se a liberdade implica o poder de fazer tudo ou apenas o que se deve querer fazer.

Ao orientarem-nos para o que se deve querer fazer, os deveres restauram o arbítrio humano. Começam com a afirmação fundamentalmente edificante de que o homem pode agir. Como tal, são profundamente fortalecedores. Ironicamente, aqueles que sentem que as suas vidas estão sobrecarregadas pela rotina diária podem redescobrir a sua própria capacidade de acção e liberdade através dos deveres. Os deveres e as virtudes proporcionam ordem tanto na política como na alma humana individual. Dão vida a uma constituição forte, tal como a alma dá vida ao corpo. São essenciais, na medida em que estão incorporados na própria natureza do homem. Ao recuperarmos a linguagem dos deveres e das virtudes, podemos recuperar a nossa natureza humana. Ao recuperar a nossa natureza humana, podemos recuperar uma ciência superior da acção humana. Ao recuperar uma ciência superior da acção humana, promovemos políticas mais razoáveis. Cícero aponta o caminho.

 

Cicero Denuncia Catilina no Senado Romano . Cesare Maccari . 1889

 

As virtudes são tanto o ponto de partida como o ponto de chegada, pois são a perfeição da natureza do homem. Como, então, Cícero considera a natureza do homem? Desde Darwin, está na moda enumerar as múltiplas maneiras pelas quais o homem é apenas um chimpanzé mais avançado. Mesmo que o velho Cícero tivesse conhecido a nossa sofisticada ciência, ele não teria deixado que ela entorpecesse o seu senso comum. A mente humana mais insofismável consegue discernir uma diferença clara entre o homem e o animal. Este último é incapaz de escalar as alturas sublimes ou de mergulhar nas profundezas depravadas. Só nós somos tão espantosos e tão terríveis. Quando Cícero admite que nós, tal como os animais, desejamos preservar a vida, evitar danos e procriar, localiza a diferença essencial na nossa capacidade de raciocínio. A nossa natureza, mediada pela razão, aponta naturalmente para as virtudes, para os hábitos que levam o homem ao seu próprio florescimento. Quatro qualidades se destacam: Os seres humanos, por natureza, procuram o conhecimento, a associação com os outros, a proeminência entre os outros e a manutenção da ordem, conceitos que são articulados pelo tribuno como sabedoria, justiça, grandeza de espírito e decoro.

Preocupado mais com a ética prática, Cícero dispensa rapidamente a sabedoria (ele reservaria um livro separado para o estudo dos bons e maus fins). Pois, embora o estadista romano pudesse ocasionalmente tolerar um afastamento da política para a pura contemplação indispensável à busca da sabedoria, ele geralmente sentia o mesmo constrangimento que os seus compatriotas que haviam sido forçados a sair da vida pública para assumir a vida contemplativa. Os seus escritos serão o seu maior acto político.

A segunda virtude, a justiça, inclui tanto a justiça propriamente dita como a liberalidade. De todas as virtudes, a justiça é talvez a única que continua a ressoar tão alto hoje como nos dias de Cícero. Uma das suas variantes modernas, acompanhada pelo prefixo ‘social’, dificilmente teria encontrado a aprovação de Cícero, embora também não o tivesse surpreendido: familiarizado com homens como Catilina, Sula, Pompeu, Crasso, César, Catão e outros, Cícero podia facilmente reconhecer elites que fingiam representar vários grupos com reivindicações sobre a república.

Para Cícero, a verdadeira justiça significa não prejudicar os outros a não ser que sejam provocados, impedir a ocorrência de injustiças, respeitar os bens públicos e privados e manter a fé. O homem não é nem leão nem raposa, mas se ele se rebaixa ao nível de uma besta, então é melhor que seja leão do que raposa: o leão é honesto na sua brutalidade, enquanto o homem como raposa usa o seu dom mais divino – a razão – com o objectivo de enganar. Além disso, os privilegiados economicamente na sociedade são obrigados, dentro do razoável, a ser liberais com a sua riqueza. Vale a pena notar, no entanto, que essa generosidade é uma obrigação que se espera seja cumprida pelos próprios privilegiados, e não pelo Estado em nome dos privilegiados. Na linguagem moderna, Cícero preferiria transferências voluntárias de riqueza a esquemas fiscais extorsivos. A redistribuição excessiva de riqueza por parte do Estado também tende a ficar aquém dos avisos de Cícero sobre a liberalidade, nomeadamente que a generosidade de alguém não prejudica os destinatários nem ultrapassa as suas capacidades: a rapacidade segue a generosidade de César – e, de facto, permite-a em primeiro lugar.

Até aqui, tudo bem. A igualdade humana exige justiça e liberalidade. Mas, por mais evidente que seja a nossa igualdade, não menos evidente é a nossa desigualdade. A nossa natureza produz assim duas tendências contraditórias. A virtude da desigualdade é a grandeza de espírito. A coragem é uma componente, mas não o todo, pois o todo abrange as várias formas pelas quais os homens procuram ser sempre os melhores e superar todos os outros. Isto significa a elevação acima do que é mais comum no homem. A necessidade de sobreviver e de satisfazer as necessidades básicas é comum, assim como a aquisição de riqueza, que é um meio de garantir a sobrevivência. Intimamente ligadas estão a busca do prazer e o evitar da dor.

Nenhum destes, no entanto, são objectivos válidos para o homem magnânimo. Ele despreza esses objectivos e as paixões que os provocam, pois visam apenas sustentar o homem no seu ponto mais baixo, como forma de vida. Esse desprezo estende-se, por vezes, à própria vida, sobretudo perante o perigo, e daí que a grandeza de espírito inclua a coragem. É comummente vista nos fundadores de países e naqueles que se erguem sozinhos contra a tirania. Vê-se com mais dificuldade nos séculos pacíficos e democráticos, pois esses séculos prezam a igualdade e a preservação da vida. Por ser difícil de ver, a nossa ciência ignora-o, incapaz de imaginar que o homem possa desejar algo mais do que a mediocridade; pois o que é a igualdade senão a mediocridade? Que outra coisa é o socialismo senão a celebração tíbia da multidão carente de pão e circo, prémios suficientes para manter as massas satisfeitas e estupefactas?

Nietzsche viu bem o problema da igualdade. Mas o seu antídoto era tão venenoso como a doença. Era eloquente no seu entusiasmo, mas nem sempre podemos esperar que os futuros críticos da igualdade sejam igualmente cultos ou eruditos. Não devemos ignorar o impulso do homem para a grandeza. Está enraizado na nossa natureza e, por isso, existe em graus diferentes em todas as pessoas. A sua perfeição pode produzir a violência de um Aquiles ou de um César. Este último exemplificou os perigos da magnanimidade sem limites. Por esta razão, Cícero esforça-se por sublinhar que a verdadeira grandeza de espírito envolve a realização de acções que são grandes mas também úteis para a comunidade.

Os ambiciosos arriscam-se não só a prejudicar a comunidade, mas também, consequentemente, o próprio público que pretende honrá-los. A glória não tem sentido sem que os outros a reconheçam e o controlo sobre a forma como se é visto é limitado. Daí a falha fatal de César, que confundiu a busca do poder com a busca da glória. Mas o poder tem os seus limites e a verdadeira glória é concedida àqueles que não a procuram. Catão preferiu suicidar-se a viver sob o jugo de um tirano. Quando Cícero escreveu um elogio ao republicano, César, para seu crédito, optou por responder também em prosa. Dois oradores imortais em desacordo sobre o legado de Catão. Mas o tratamento dado por César a Catão foi tão violento que apenas serviu para sublinhar o fosso que separa a glória coagida da verdadeira glória. Como todas as suas inegáveis qualidades, o homem mais poderoso de Roma era impotente contra a sombra do republicanismo. No seu impulso maníaco para a superioridade, o ditador vitalício era simultaneamente obstinado e vacilante, ignorante do seu lugar no firmamento.

Se a vontade de desigualdade que está na base da grandeza de espírito é inata ao homem, como é que devemos lidar com ela? A resposta está na quarta virtude de Cícero, o decoro. O decoro é constituído por uma panóplia de boas maneiras e delicadezas, incluindo a virtude crucial da moderação, mas o núcleo do decoro é a ordem. Até a virtude precisa de limites. O excesso de preocupação com a sabedoria afasta-nos das preocupações com os nossos semelhantes. A República de Platão demonstra os perigos de procurar a perfeição na justiça. A grandeza de espírito transforma-se muito facilmente em selvajaria violenta se não for refreada. As virtudes, tal como as paixões, devem ser colocadas em ordem. O que significa que é preciso saber em que aspectos se é susceptível de sucumbir aos extremos, para se saber o que mais necessita de moderação. Por outras palavras, o decoro exige que cada um se conheça a si próprio – a sua natureza universal como ser humano, bem como a sua natureza particular como indivíduo.

Cícero era um homem corajoso na sua prosa, mas frágil quando encarava fisicamente os seus ferozes inimigos, e por várias vezes se viu obrigado a contorcionismo éticos para sobreviver à guerra civil. Ainda assim, foi por tentar sempre ser fiel aos seus valores e à certeza da sua permanência histórica que foi assassinado.

Hoje perdemo-nos na novidade e descobrimos uma miríade de formas de nos convencermos de que, desta vez, nem tudo é vaidade e vexame de espírito. Olhamos de relance para o que é fugaz e chamamos-lhe conhecimento. E, no entanto, o verdadeiro conhecimento é o das coisas que são eternas.

Cícero tinha o dom de exprimir o eterno numa linguagem clara e bela. Ele dirige o nosso olhar para o alto, para ver o eterno em toda a sua pureza. Os progressos tecnológicos e económicos do mundo não mudam em nada a política e a condição humana, porque estas são imutáveis. E, por isso, o que é eterno merece ser valorizado e estudado e replicado vezes sem conta. Até que os Marco António do mundo desistam de decapitar os seus críticos.