Durante décadas, houve um mantra que se tornou axiomático: o mercado de títulos do tesouro dos EUA é o mais profundo e o mais líquido do mundo. E o corolário desse axioma é: estes títulos são “isentos de risco”.

Porém, estes pilares da economia global, outrora tidos como certos, estão a parecer terrivelmente instáveis. Nos últimos anos, as placas tectónicas do sistema financeiro mundial, liderado pelos Estados Unidos, têm vindo a tremer com progressiva intensidade.

Toda a gente reparou na forte subida dos rendimentos referentes aos título do tesouro americano nos últimos meses. No início de Outubro, as obrigações a 10 anos dos EUA atingiram um rendimento de quase 5%, o nível mais elevado dos últimos 16 anos. Isto é perfeitamente compreensível: a subida das taxas de juro pela Reserva Federal fez subir os rendimentos das obrigações. Mas aquilo a que temos vindo a assistir é mais do que uma manifestação das vicissitudes de mercados exigentes.

À medida que os compradores não norte-americanos de títulos do Tesouro dos EUA vão escasseando e o governo federal continua a gerir défices astronómicos, num contexto de taxas de juro elevadas, o mercado do Tesouro americano está a sofrer uma pressão crescente e a mostrar cada vez mais sinais de disfunção. As implicações deste facto são difíceis de exagerar.

 

Os investidores estrangeiros estão a abandonar o barco.

Houve uma altura em que os títulos do Tesouro eram essencialmente a maior exportação dos EUA e serviam de mecanismo para o tipo de esquema de financiamento a nível macro-económico, ao abrigo do qual os EUA importavam bens e energia do resto do mundo em troca de dólares – e esses dólares eram devidamente reciclados em títulos do Tesouro para financiar o défice do Uncle Sam.

Quando os défices começaram a aumentar nos anos 80, sob a presidência de Ronald Reagan, muitos se perguntaram como seriam financiados. Mas, a partir de meados dessa década, os bancos centrais estrangeiros – principalmente os japoneses – entraram em acção e começaram a adquirir grandes quantidades de títulos do Tesouro dos EUA. De 1986 a 2002, os bancos centrais estrangeiros compraram 28 a 30% de todas as obrigações do Tesouro dos EUA emitidas; e entre 2002 a 2014, o Banco Popular da China (BPC) tornou-se o principal comprador, período em que o valor das compras estrangeiras atingiu uns impressionantes 53%.

Mas desde 2014 que esse valor tem sido negativo em 4% ao ano, o que significa que os bancos centrais estrangeiros deixaram de comprar numa base líquida, enquanto o défice dos EUA continua a crescer. Há muitas razões para esta mudança. O impacto negativo do primeiro lote de sanções contra a Rússia, em 2014, e ao facto de Moscovo ter posteriormente enveredado pelo caminho do desinvestimento em dólares – um processo que Pequim estava a acompanhar de perto, foi determinante. Mas houve também uma perceção mais profunda em todo o mundo de que os EUA já não iriam ou poderiam gerir o dólar em função dos interesses dos mercados globais.

Quando a a Reserva Federal (Fed) lançou o seu programa de flexibilização quantitativa sem precedentes em Março de 2009, o governador Ben Bernanke admitiu que tinha “atravessado o Rubicão”. Cinco dias depois do programa ter sido anunciado, Zhou Xiaochuan, o governador do BPC, publicou um livro branco com o título nada subtil de “Reformar o Sistema Monetário Internacional”, apelando a uma reformulação do quadro pós-Segunda Guerra Mundial. Em 2014, depois de ter visto a Fed quadruplicar o seu balanço para cerca de 4,5 triliões de dólares, a China tomou a decisão estratégica de deixar de aumentar a sua carteira de títulos do Tesouro americano. A natureza arrogante com que os EUA estavam a imprimir dinheiro por razões puramente domésticas – desvalorizando assim implicitamente a dívida existente, da qual a China detinha uma grande parte – certamente não caiu bem em Pequim.

Se 2014 marcou uma espécie de encruzilhada para a procura externa de títulos do Tesouro, foi também quando – e isto não deve certamente ser visto como uma coincidência – os EUA adoptaram uma regra que obrigava os grandes bancos a deter um certo nível de activos líquidos de alta qualidade. Uma grande parte destes activos seria, naturalmente, constituída por títulos do Tesouro. O objectivo era, aparentemente, garantir que os bancos importantes tivessem liquidez suficiente num cenário de stress a curto prazo. Mas teve também o efeito de forçar os bancos a comprar mais títulos do Tesouro – exactamente quando os principais bancos centrais estrangeiros se estavam a afastar dessas obrigações.

Tratou-se no fundo de um ataque de esperteza saloia, que a curto prazo já levou à falência de pequenos bancos e, a médio prazo, pode arruinar o mercado financeiro americano.

 

O primeiro indício de um problema de liquidez.

Por acaso, foi também em 2014 que os problemas de liquidez do mercado do Tesouro começaram a ser analisados. Em Outubro desse ano, o mercado entrou em convulsão, sem qualquer motivo aparente, e que acabou por ser considerado, muito convenientemente, como um mero epifenómeno.

Houve várias outras convulsões significativas ao longo do caminho – a súbita crise dos acordos de recompra em Setembro de 2019, uma queda do valor do mercado do Tesouro em Março de 2022 e a quebra no mercado Gilt do Reino Unido no Outono de 2022, que reverberou no mercado do Tesouro, mas vamos avançar para 2023.

O pior surto de inflação das últimas quatro décadas obrigou a Reserva Federal a aumentar acentuadamente as taxas de juro. As taxas mais elevadas fizeram subir os rendimentos das obrigações e, como os seus preços se movem inversamente aos rendimentos, os títulos do Tesouro dos EUA registaram perdas. Muitos bancos norte-americanos ficaram reféns das suas posições no Tesouro, um facto que desempenhou um papel importante no colapso do Silicon Valley Bank no início deste ano. Houve muitas razões específicas para o colapso desse banco em particular – a gestão de risco praticamente inexistente é uma delas – mas o que esse episódio revelou é que muitos bancos estavam a acumular grandes perdas não realizadas nas suas posições no Tesouro.

Como os depositantes exigiram o seu dinheiro de volta – tanto por medo de falências bancárias como para investir noutros fundos do mercado monetário – os bancos teriam que vender os seus títulos do Tesouro ao desbarato, num mercado em rápida deterioração, onde as ofertas teriam sido poucas.

No entanto, sem dúvida pressentindo a fragilidade de todo o sistema e não querendo um colapso total, o governador da Fed, Jerome Powell, e os seus colegas decidiram agir – e agiram de forma decisiva.

 

Mais um acrónimo.

O que é que eles fizeram exactamente? Instituíram mais um daqueles programas de resgate baptizados com acrónimos, este chamado Programa de Financiamento a Prazo da Banca (PFPB). Numa altura em que a Fed estava a tentar restringir as condições financeiras para combater a inflação, o programa adicionou liquidez ao mercado, provando assim (como se houvesse alguma dúvida) que a retórica da Fed sobre o combate à inflação acaba no momento em que os mercados entram em disfunção.

O PFPB permitiu que os bancos acedessem a empréstimos a um ano da Fed através do lançamento de obrigações. Não há nada de invulgar nisso – é um procedimento normal. Mas é o preço que levanta suspeitas. Em vez de seguir a prática normal e obrigar esses títulos a serem avaliadas a preços de mercado – ou seja, utilizando o valor de mercado em vez do valor nominal – a garantia pode ser transaccionada a um valor fixo, independente da sua cotação. Assim, uma obrigação que, digamos, tenha um valor nominal de 100 dólares, mas que esteja actualmente a ser negociada a 70 dólares, pode ser entregue à Fed em troca de um empréstimo de 100 dólares.

Mas a história é, de facto, muito mais interessante do que isso. Como salientou o analista Luke Gromen, quando se olha para aos facilitismos do PFPB com mais atenção, percebe-se que é basicamente equivalente a um controlo suave da curva de rendimentos para os bancos – pelo menos para os que têm sede ou sucursais nos EUA. Por outras palavras, tratou-se tanto de um resgate do mercado do Tesouro como de um resgate da banca.

Foi certamente uma boia de salvação para os bancos, que estavam a ser estrangulados pela descida do valor dos títulos e pela sangria de depósitos, e precisavam de cobrir as suas perdas substanciais em papel. Mas a implicação mais profunda foi que isto serviu como uma espécie de prenúncio do controlo da curva de rendimentos – um instrumento de política pouco ortodoxo utilizado pelos bancos centrais para fixar, através de compras, um nível específico de taxas de juro.

E há aqui um detalhe fundamental: o controlo da curva de rendimentos é onde os mercados financeiros livres vão para morrer.

Embora a Fed não estivesse a visar uma taxa de juro específica, mas antes a tentar controlar o fluxo de crédito, o instrumento político teve o efeito de, essencialmente, limitar os rendimentos abaixo do preço de mercado actual – e isso é um importante prenúncio do rumo que as coisas estão a tomar.

O colapso do Silicon Valley Bank é agora uma notícia antiga e os poderes instituídos garantiram que a crise bancária já terminou há muito. Mas os números do PFPB parecem dizer o contrário: a 28 de Junho (os dados mais recentes que temos disponíveis), a utilização do programa pelos bancos tinha atingido mais de 100 biliões de dólares – o que significa que os resgates ainda estão a acontecer, muitos meses depois da crise bancária que “já terminou”.

Era suposto que o PFPB durasse apenas um ano, mas já se fala que se tornará uma parte permanente da paisagem financeira. É proverbial: não há nada mais permanente do que um programa governamental temporário.

 

 

Em desespero de causa: o Tesouro recompra os seus títulos.

Entretanto, mais recentemente, foi dado outro passo firme na direcção do controlo da curva de rendimentos, quando o Tesouro dos EUA anunciou que iria lançar um programa de recompras no próximo ano. Algures ao longo da lenta descida do mercado dos títulos do Tesouro dos EUA para a iliquidez e a disfunção, estávamos destinados a assistir a um cenário de compras directas pelo Tesouro de dívida que ninguém no mercado quer comprar – e agora já o temos.

Este instrumento não era utilizado desde o ano 2000, quando foi feito em circunstâncias muito diferentes (o governo estava a ter um excedente e estava a emitir títulos do Tesouro para manter o acesso ao mercado, sendo o produto das novas obrigações utilizado para recomprar as antigas).

Agora, no entanto, isso está a ser feito, de acordo com os comentários de um funcionário do Departamento do Tesouro num fórum em Nova Iorque, em Setembro deste ano, para “[ajudar] a tornar o mercado do Tesouro mais líquido e resiliente” e, num tom de conversa descontraído, “para garantir que o mercado do Tesouro continua a ser o mercado mais profundo e mais líquido do mundo”. Declarações como estas, feitas de uma forma casual e apresentadas como um pequeno programa de manutenção que não será usado para combater uma potencial crise, tentam ocultar o quanto isto representa uma outra “travessia do Rubicão”.

O que isto significa é que o Tesouro americano está a preparar-se para a possibilidade de não haver compradores suficientes para a avalanche de emissões que chegará ao mercado nos próximos trimestres. Ao anunciar um programa de recompra, o Tesouro está essencialmente a lançar as bases para se tornar o “comprador de último recurso” sem o afirmar explicitamente, o que, naturalmente, assustaria os mercados. É também exactamente o que o Japão tem vindo a fazer na última década – essencialmente, nacionalizar a dívida que ninguém quer.

O lendário analista Zoltan Pozsar descreveu o que estamos a ver assim:

“A Reserva Federal e o Tesouro estão a “construir andaimes à volta do mercado da dívida para lidar com questões de iliquidez e da falta de compradores marginais.”

A pergunta que ninguém está a fazer, mas que precisa de ser feita, é esta: porque é que tudo isto é necessário no mercado mais profundo, mais seguro e mais líquido do mundo?

 

O governo federal continua a gastar como se não houvesse amanhã.

Entretanto, prevê-se que este ano o défice dos EUA atinja os 2 triliões de dólares, o que representa uns espantosos 8,5% do PIB, e não há sinais de abrandamento. Trata-se de um valor praticamente inédito numa época de crescimento económico. Sem surpresa, a emissão de títulos do Tesouro deverá disparar nos próximos trimestres. Para além da questão de como os EUA podem suportar os pagamentos de juros subitamente mais elevados sobre esta dívida – agora estimados em 1 trilião de dólares por ano – há a questão crítica da falta de compradores marginais desta dívida.

A Reserva Federal está a proceder a um aperto quantitativo, o que significa que está a permitir que as obrigações vençam e desapareçam do seu balanço, em vez de as renovar. Os bancos comerciais norte-americanos têm pouca capacidade ou apetência para comprar mais títulos do Tesouro. Na verdade, estão a tentar retirá-los dos seus balanços e têm procurado reduzir a sua importância nos respectivos portfólios. O CEO do JPMorgan, Jamie Dimon, alertou recentemente para o facto das taxas poderem subir ainda mais, pelo que não está claramente a procurar investir em títulos do Tesouro.

 

 

Durante muito tempo, os EUA recusaram-se firmemente a acreditar que tinham um problema e, para sermos justos, na era das taxas de juro baixas e com a procura externa de dívida americana sempre presente, talvez não tivessem. Os EUA eram viciados em dívida, mas funcionais.

Porém, gerir défices enormes numa altura de subida das taxas de juro é uma  circunstância explosiva. De certa forma, esta situação remete para a década de 1940, também uma época de elevados défices e taxas crescentes devido à guerra – e também quando o controlo da curva de rendimentos foi utilizado. Mas, na verdade, os dois casos são muito diferentes. A economia norte-americana do pós-guerra, ainda fundamentalmente saudável e extremamente produtiva, recuperou rapidamente o seu equilíbrio e abandonou essas políticas pouco ortodoxas. A actual economia norte-americana, altamente financiada e profundamente endividada, é uma sombra do que foi, mas os decisores políticos dos EUA não parecem preocupados com isso.

Uma forma de controlo absoluto da curva de rendimentos está a chegar e a entrar no domínio da especulação dominante. Mas, desta vez, dificilmente se assemelhará a uma política temporária em tempo de guerra; pelo contrário, será um movimento de desespero, a caminho da disfunção total de um mercado que está no centro do sistema financeiro global.

E isso dará origem a um festival de terríveis consequências. Um colapso no funcionamento do mercado do Tesouro americano desencadeará a ideia generalizada de que os EUA se transformaram em algo semelhante a um autocarro armadilhado por terroristas que irá explodir se abrandar para menos de 80 kms/h, como no filme de 1994, com Keanu Reeves e Sandra Bullock, “Speed”. Mas ao contrário dos desfechos felizes de Hollywood, dificilmente o desastre será evitado. Politicamente incapaz de recuar no crónico despesismo e nos onerosos compromissos militares, e também incapaz de os suportar, o autocarro vai, inevitavelmente, esbarrar no muro dos juros excessivos e da procura insuficiente da sua dívida.

A Fed tornou-se incrivelmente hábil a remendar os buracos que cria e poderá continuar a encontrar formas cada vez mais engenhosas de manter de pé o edifício vacilante durante algum tempo. Mas a podridão no coração do sistema financeiro global está a tornar-se cada vez mais evidente para aqueles que têm olhos para a ver.