Retrato de Vlad III . 1560 . Cópia de um original perdido, de autor desconhecido . Castelo de Ambra

 

Vlad III, Vlad o Empalador ou Vlad Drácula foi um príncipe medieval cuja reputação de guerreiro sanguinário inspirou o famoso Vampiro de Bram Stoker. Mas entre o mito e a realidade há toda uma enciclopédia de divergências, mal entendidos e alguma ingratidão sobre o seu legado histórico.

 

Quem foi o verdadeiro Drácula?

Lendas de vampiros provêm de tempos remotos, mas poucos nomes lançaram mais terror no coração humano do que Drácula. O personagem fictício, criado pelo autor Bram Stoker, foi de facto baseado numa figura histórica real: Vlad, o Empalador.

Vlad III, Príncipe da Valáquia, foi um senhor da guerra do século XV, que operou no território que hoje conhecemos como Roménia, no sudeste da Europa. Stoker usou elementos da história real de Vlad para o personagem do seu romance de 1897, “Drácula”. Desde então, o livro inspirou inúmeros filmes de terror, programas de televisão e outros contos horripilantes. No entanto, de acordo com historiadores e estudiosos da literatura, que investigaram a ligação entre o personagem de Stoker e Vlad III, os dois Dráculas não têm muito em comum.

O Drácula fictício está ligado à Transilvânia, mas Vlad III nunca foi senhor dessa região. E o Castelo de Bran, uma atracção turística moderna na Transilvânia, muitas vezes referido como o castelo do Drácula, nunca foi a residência do príncipe valáquio. O castelo situado nas montanhas de uma área que está constantemente coberta por névoas parece assustador e é o que se esperaria do castelo do Drácula, Mas Vlad nunca lá viveu.

O pai de Vlad III, Vlad II, possuía uma residência em Sighişoara, Transilvânia, mas não é certo que Vlad III tenha nascido nessa região. Também é possível que o Empalador tenha nascido em Târgovişte, que era na época a residência real do principado da Valáquia, onde seu pai governou. Há também o Castelul Corvinilor, conhecido como Castelo Corvin, onde Vlad pode ter sido preso pelo governador húngaro Hunyadi.

É possível que os turistas visitem um castelo onde Vlad III certamente passou algum tempo. Por volta dos 12 anos, Vlad e o seu irmão foram presos pelos otomanos. Em 2014, os arqueólogos encontraram a provável localização da masmorra, no Castelo de Tokat, localizado no norte da Turquia. É um lugar misterioso, com túneis secretos e masmorras sinistras, que está actualmente em restauração e aberto ao público.

 

Ruínas do Castelo da Corte do Principado, em Târgoviște

 

Origem do cognome: de dragão a diabo.

Em 1431, o rei Sigismundo da Hungria, que mais tarde se tornaria o Sacro Imperador Romano, introduziu o ancião Vlad numa ordem de cavalaria, a Ordem do Dragão. Esta designação rendeu a Vlad II um novo sobrenome: Dracul. O nome veio da antiga palavra romena para dragão, “drac”.

Seu filho, Vlad III, mais tarde seria conhecido como o “filho de Dracul” ou, em romeno antigo, Drăculea, daí Drácula . No romeno moderno, a palavra “drac” refere-se ao Diabo.

Em 1890 Stoker leu um livro sobre a Valáquia. Embora não mencionasse Vlad III, Stoker ficou impressionado com a palavra “Drácula”. Ele escreveu nas suas notas, “na língua valáquia significa DIABO”. Portanto, é provável que Stoker tenha escolhido nomear seu personagem como Drácula dadas as associações diabólicas da palavra.

A teoria de que Vlad III e Drácula eram a mesma pessoa foi desenvolvida e popularizada pelos historiadores Radu Florescu e Raymond T. McNally. Embora longe de ser aceite por todos os historiadores, a tese tomou conta da imaginação do público.

A Ordem do Dragão estava dedicada a uma única tarefa: a derrota do Império Turco, ou Otomano. Situado entre a Europa cristã e as terras muçulmanas do Império Otomano, o principado natal de Vlad II (e mais tarde de Vlad III), a Valáquia, era frequentemente palco de batalhas sangrentas enquanto as forças otomanas avançavam para oeste e as forças cristãs repeliam os invasores.

 

Anos de cativeiro: aprender a crueldade.

Quando em 1422 Vlad II foi chamado para um concílio diplomático com o sultão otomano Murad II, levou com ele os seus filhos Vlad III e Radu. Mas a reunião foi na verdade uma armadilha: os três foram presos e mantidos como reféns. O Vlad mais velho foi libertado sob a condição de deixar os seus filhos como reféns na corte otomana, de forma a garantir que o seu principado se mantivesse neutro na guerra em curso entre a Turquia e a Hungria.

Na corte otomana, Vlad e o irmão mais novo foram tratados como nobres que eram e ensinados em ciência, filosofia e artes, recebendo também treino militar. Vlad tornou-se um cavaleiro e guerreiro habilidoso, mas, ao contrário do seu irmão, nunca se resignou a ser um vassalo do sultão. Essa rebeldia marcou todo o seu percurso posterior. E é importante sublinhar que os actos de crueldade que cometeu depois decorreram daquilo que testemunhou enquanto residente da corte otomana. O império turco sempre foi reconhecido pelas suas sangrentas práticas e desapiedadas tradições militares, que permaneceram até ao momento da queda do império, já no século XX.

 

Vlad, o príncipe: à procura da soberania perdida.

Enquanto Vlad e Radu estavam nas mãos dos otomanos, o pai lutava para manter o seu lugar como governador da Valáquia, uma luta que acabaria por perder. Em 1447, Vlad II foi deposto por nobres locais e foi morto nos pântanos de Bălteni, a meio caminho entre Târgovişte e Bucareste, na actual Roménia. O meio-irmão mais velho de Vlad, Mircea, foi morto com o seu pai.

Um ano depois, em 1448, Vlad embarcou numa campanha para reconquistar o cargo do seu pai, que considerava como um direito hereditário, ao novo governante, Vladislav II. A sua primeira tentativa contou com o apoio militar dos governadores otomanos das cidades ao longo do rio Danúbio, no norte da Bulgária. Vlad também aproveitou o facto de Vladislav estar ausente, tendo ido aos Bálcãs para lutar contra os otomanos ao lado do governador da Hungria na época, John Hunyadi.

Vlad recuperou o trono do seu pai, mas essa circunstância durou pouco. Dois meses depois foi deposto, quando Vladislav II voltou e retomou o trono da Valáquia com a ajuda de Hunyadi.

Pouco se sabe sobre o paradeiro de Vlad III entre 1448 e 1456. Mas tudo indica que mudou de lado no conflito otomano-húngaro, desistindo da ligação aos governadores otomanos do Danúbio e obtendo apoio militar do rei Ladislaus V da Hungria, que alimentava grande rivalidade em relação a Vladislav II, que também, no entretanto, tinha alterado a sua lógica de alianças, procurando agora a assistência do poderoso sultão otomano Mehmed II.

O génio político e militar de Vlad III deu nas vistas durante a queda de Constantinopla, em 1453. Após tomarem a capital de Bizâncio, último vestígio do império romano, os otomanos estavam em posição de invadir toda a Europa. Em julho de 1456, enquanto os otomanos e as forças de Hunyadi travavam uma batalha, Vlad liderou uma pequena força de boiardos exilados, húngaros e mercenários romenos contra o seu velho inimigo Vladislav II em Târgoviște. Por entre o furor da contenda, Vlad identificou o seu velho inimigo e mato-o num combate corpo a corpo.

Na sequência desses acontecimentos, Vlad, que já havia solidificado a sua posição anti-otomana, foi proclamado governador da Valáquia em 1456. Uma das suas primeiras decisões foi parar de pagar o tributo anual ao sultão otomano – uma medida que anteriormente assegurava a paz entre a Valáquia e império turco.

 

A Valáquia no tempo de Vlad III

 

Vlad, o Empalador: um líder justo, um guerreiro temível.

Para consolidar o seu poder como governador, Vlad precisava de reprimir os conflitos incessantes que ocorriam historicamente entre os boiardos da Valáquia. Durante um banquete oferecido por ele no palácio de Târgoviște, Vlad ordenou a empalação de cerca de 50 boiardos com a acusação de que sua ‘desunião vergonhosa’ era a causa da mudança frequente dos príncipes na Valáquia e da fragilidade militar da região relativamente ao jugo otomano.

Este é apenas um dos muitos eventos horríveis que deram a Vlad o seu apelido póstumo de “Empalador”. Esta história, e outras semelhantes, está documentada em material impresso da época do governo de Vlad III. Nas décadas de 1460 e 1470, logo após a invenção da imprensa, muitas destas histórias circulavam oralmente e depois eram reunidas por diferentes indivíduos em panfletos impressos. Mas está em aberto se essas narrativass são totalmente verdadeiras ou significativamente dramatizadas, até porque muitos dos que imprimiram os panfletos eram hostis a Vlad III. Ainda assim, estes documentos contam quase exactamente as mesmas histórias horríveis sobre Vlad, pelo que serão pelo menos em parte precisos historicamente. Algumas dessas lendas também foram colectadas e publicadas num livro, “O Conto de Drácula”, em 1490, por um monge que apresentou Vlad III como um governante feroz, mas justo.

Vlad é creditado por empalar dezenas de mercadores saxões em Kronstadt (actual Braşov, Roménia), que já tinham sido aliados dos boiardos, em 1456. Na mesma época, um grupo de enviados otomanos foi recebido numa audiência com Vlad, mas recusaram-se a remover os seus turbantes, citando um costume religioso. Elogiando-os pela sua devoção religiosa, Vlad garantiu que seus turbantes permaneceriam para sempre nas suas cabeças, pregando-os literalmente aos seus crânios.

 

Vlad, o Empalador recebe enviados turcos . Theodor Aman . Século XIX

 

Depois de Mehmet II ter conquistado Constantinopla, invadiu a Valáquia, em 1462, conseguindo chegar à capital, Târgoviște, mas encontrando-a deserta. À entrada da cidade encontrou os corpos dos prisioneiros de guerra otomanos todos empalados.

A 17 de junho de 1462, numa batalha conhecida como Ataque Nocturno de Târgoviște, as forças de Vlad III e Mehmed II lutaram horas após o pôr do sol, até cerca das quatro da manhã, no sopé das montanhas dos Cárpatos. O ataque foi uma tentativa de assassinar Mehmed II, mas as forças da Valáquia não conseguiram localizar a sua tenda e o alarme foi disparado. 5.000 homens de Vlad foram mortos e 15.000 otomanos pereceram, mas o acto de temeridade extraordinária é ainda hoje celebrado na literatura romena e no folclore popular.

A luta renhida e desenfreada que ofereceu aos invasores otomanos, um adversário muito mais poderoso, fez de Vlad um herói celebrado na Valáquia, na Transilvânia e no resto da Europa – até o Papa Pio II ficou impressionado. Pela sua coragem e brilhantismo militar, tanto como pela justeza das suas decisões como governante, Vlad III é visto na Roménia como um líder virtuoso e não como um guerreiro sanguinário.

 

Batalha com Tochas (Ataque nocturno de Vlad III a Târgoviște) . Theodor Aman . Século XIX

 

Exílio e morte: pela espada viveu, pela espada pereceu.

Pouco depois do empalamento dos prisioneiros de guerra otomanos, em agosto de 1462, Vlad foi forçado ao exílio na Hungria, incapaz de derrotar o seu adversário muito mais poderoso, Mehmet II. Vlad foi preso por vários anos durante o seu exílio, embora tenha encontrado tempo e liberdade para se casar e criar dois filhos.

O irmão mais novo de Vlad, Radu, que se aliou aos otomanos durante as campanhas militares desta época, assumiu o governo da Valáquia após a prisão de seu irmão. Mas depois da morte de Radu em 1475, os boiardos locais, bem como os governantes de vários principados próximos, favoreceram o retorno de Vlad ao poder. Em 1476, com o apoio do regente da Moldávia, Estêvão III, o Grande (1457-1504), Vlad fez um último esforço para recuperar o seu assento como soberano da Valáquia e acabou por ter sucesso, embora, mais uma vez, o seu triunfo tenha resultado num efémero mandato. Mais tarde naquele ano, enquanto marchava para mais uma batalha contra os otomanos, Vlad e uma pequena vanguarda de soldados foram emboscados e Vlad foi morto.

Há grande controvérsia sobre a localização do túmulo de Vlad III. Diz-se que ele foi enterrado na igreja do mosteiro de Snagov, no extremo norte da moderna cidade de Bucareste, de acordo com as tradições de sua época. Mas, recentemente, historiadores sugeriram que poderia realmente estar enterrado no Mosteiro de Comana, entre Bucareste e o Danúbio, que fica próximo do local em que se pensa que decorreu a batalha em que Vlad foi morto.

Uma coisa é certa, no entanto: ao contrário do Conde Drácula de Stoker – um imortal – Vlad III morreu. Apenas as histórias de seus anos como governante da Valáquia permanecem como testemunho tanto da sua crueldade como da sua coragem e persistência.

 

Epílogo: Vlad, o cruzado.

Num interessante trabalho publicado recentemente sobre as cruzadas, “Defenders of the West: The Christian Heroes Who Stood Against Islam“, Raymond Ibrahim incorpora Vlad II, João Hunyadi e George Kastrioti (a quem os turcos chamavam “Skanderbeg”) no elenco das cruzadas, sublinhando a importância que estes dois soberanos tiveram na resistência ao avanço do império otomano, numa altura em que os soberanos da Europa Ocidental estavam divididos e preocupados com outros assuntos, tendo até deixado cair Bizâncio para os turcos, atitude displicente que ainda hoje é manifesta na geografia europeia e que foi tragicamente expressa nos conflitos  Balcânicos que testemunhámos com a queda do regime soviético e do Bloco de Leste, no culminar do Século XX. A entrega do sudeste da Europa e da costa mediterrânica do Médio Oriente ao Islão pelos europeus dos Séculos XIV e XV não é tão incontornável como hoje nos parece. Estes territórios tinham uma ligação cultural e demográfica ao Ocidente desde Alexandre o Grande, foram durante dez séculos povoados por cristãos e acabaram por ser ocupados pela expansão muçulmana. Ainda hoje há comunidades cristãs, demograficamente substanciais, na Síria, no Líbano, em Israel e no Egipto, que vivem em circunstâncias muito difíceis e que foram abandonadas pelo Ocidente há mais de seis séculos. No Iraque, a população cristã decresceu 80% em apenas 20 anos.

Os cruzados dos Balcãs que resistiram aos turcos otomanos entre o final do século XIV e o final do século XV, numa tarefa ingrata que lhes valeu a infâmia entre os seus contemporâneos e os historiadores modernos, enfrentaram probabilidades ainda mais remotas do que os primeiros cruzados. João Hunyadi, que contrariou a obrigatoriedade de pagar tributo aos otomanos e, em vez disso, lançou uma campanha de guerrilha contra os gigantescos exércitos do sultão Murad, foi um dos primeiros líderes a mostrar as fragilidades dos turcos, que nunca até aí tinham sentido a necessidade de defender o seu território nativo.

Apesar do sucesso de Hunyadi, poucos outros reis ou nobres seguiram o seu exemplo. Apenas a cidade-estado de Veneza se envolveu na contenda – mas ajudou os turcos otomanos quase tanto como os combateu. As outras excepções a esta indiferença geral foram George Kastrioti e Vlad Drácula. Ambos estiveram cativos dos turcos durante vários anos, ambos tinham razões pessoais para libertar os seus reinos e um profundo conhecimento da forma como os turcos actuavam. Seguindo o exemplo de Hunyadi, Skanderbeg e Drácula transformaram o seu pequeno número numa força, destruindo exércitos turcos grandes e mal organizados. Enquanto Skanderbeg tinha sido treinado como janízaro (tropas de elite dos turcos), o que o ajudou a liderar as suas forças de forma eficiente e eficaz, Drácula fez uso infame da empalação (daí o nome Vlad, o Empalador) e de ataques nocturnos. Ambos os homens foram capazes de virar o jogo contra os seus inimigos e impedir com êxito o avanço turco na Europa.

O método da empalação é tenebroso. Mas mostrar misericórdia não era um luxo acessível aos guerreiros cristãos dos Balcãs, se quisessem ser bem sucedidos. O seu inimigo era igualmente brutal e muito superior em número. Travou-se no século XV na Europa oriental uma luta, pouco conhecida e estudada, pela sobrevivência do Ocidente que culminaria nos dois cercos de Viena, em 1529 e 1683. E Vlad, com outros intrépidos guerreiros da Europa de Leste, foram guardiões decisivos, e muitas vezes solitários, do nosso mundo. Muito lhes devemos e devem ser recordados nesse contexto.

Até porque é profundamente errado submetermos aos critérios morais contemporâneos, que decorrem de uma vida confortável, pacífica e urbana, os líderes de tempos e circunstâncias que são completamente diferentes. E por bárbaros que tenham sido alguns dos seus cometimentos, a alternativa da rendição e da submissão aos Otomanos teria por certo consequências bem mais sinistras e devastadoras.

 

 

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Bibliografia:
“A Dracula Handbook” . Elizabeth Miller . 2005
 “The Historical Dracula” . John Akeroyd . 2009
“Vlad the Empaler: Bloodthirsty Medieval Prince,” . John M Shea . 2015
“Echoes of Empire” . James S. Kessler . 2016
“Drácula: Ensaios sobre a vida e os tempos de Vlad, o Empalador” . Constantin Rezachevici . 2019
“Dracula: Sense and Nonsense” . Elizabeth Miller . 2020
“Defenders of the West: The Christian Heroes Who Stood Against Islam“ . Raymond Ibrahim . 2022