Vénus de Milo . Alexandre de Antioquia . Século II a.C.

 

O Binómio de Newton é tão belo como a Vénus de Milo.
O que há é pouca gente para dar por isso.

óóóó—óóóóóó óóó—óóóóóóó óóóóóóóó

(O vento lá fora.)

Álvaro de Campos . 1928

 

De Platão a Bertrand Russel, grassa estruturalmente um erro terrível na filosofia: ao contrário do que rezam os sucessivos manuais de auto ajuda que nos têm sido milenarmante servidos por helenos e teutónicos, francos e saxões, eslavos e itálicos, a derradeira aspiração do Homem não deve ser o da conquista da felicidade, mas a da gestão do sofrimento. A história universal, e a experiência individual de cada um de nós, demonstram inequivocamente que a vida não promete alegrias (o próprio conceito de felicidade é equívoco – e espúrio), tanto como garante misérias. E assim sendo, é a Bíblia, nos seus dois testamentos cristãos, que é capaz de ter com superior pontaria acertado no vermelho alvo da ontologia: No princípio Deus criou os céus e a Terra, ao sexto dia criou o Homem e ao sétimo abandono-o à sua má sorte para ir descansar eternamente. E quanto à criada criatura, que se aguente à bronca.

Não viemos ao mundo para o prazer, o amor ou a paz. Viemos ao mundo para dar continuidade a um indiferente e aparentemente amoral motor cósmico que transcende qualquer esforço de compreensão. Não nos é dado saber mais do que aquilo que é necessário para progredirmos pelo tempo em direcção a um destino que largamente nos escapa. Estamos em modo need to know e essa é a maldição iniciática, porque se dá o caso de sermos animais curiosos.

Entre os inúmeros deuses que habitam a história da metafísica, não há um que consiga resolver a embrulhada da Quântica ou elaborar sobre a Terceira Lei da Termodinâmica, ou oferecer uma muleta ao Sapiens, na exaustiva caminhada de dissonâncias cognitivas a que foi condenado. Mas isso seria de supor: os deuses serão omniscientes, mas bastante reservados. No caso específico do Deus judaico-cristão, os seus longos silêncios são interrompidos quase exclusivamente pela publicação de mandamentos, a emissão de ameaças, o espoletar de pragas e o cumprimento de castigos. Quando se lembrou, por uma vez, do seu papel de pedagogo, enviou-nos um filho que falava por indecifráveis parábolas que, dois mil anos depois, ainda confundem os exegetas. E depois, num último e eloquente, mas talvez draconiano ensinamento, fê-lo subir ao pior suplício do Império Romano.

À parcimoniosa, intrigante e dasapiedada intervenção divina acresce a falência técnica das igrejas como motor de transcendência e a incapacidade da ciência para produzir dogma. E quanto ao subproduto dos esforços científicos, a que chamamos tecnologia, nem vale a pena, no âmbito desta conversa, perder mais palavras que as necessários a um telegrama. Está por demonstrar a virtude progressista das maquinetas que usamos como complemento do nosso insuficiente aparelho biológico e é apenas sensato suspeitar que gadgets e algoritmos, aspiradores inteligentes e telefones espertos, veículos de condução autónoma e processadores quânticos só contribuem na verdade para a despromoção do factor humano.

O problema porém, reside na consolação. A democratização do acesso à informação e às tecnologias que a produzem, principalmente a partir da máquina de Gutenberg, entregam ao homem comum a cenografia de um mundo que é ausente da gloriosa misericórdia divina. O processamento quotidiano destas sobre-doses de informação implica um constante teste à fé do crente, e o exponencial aumento dos níveis de ansiedade do infeliz ateu. É um cliché perguntar-mo-nos sobre a existência dos deuses perante o horror de Auschwitz, sendo certo que temos hoje um holocausto por semana, garantido pelas máquinas de transformação da realidade da idade digital. Perdidos no ecossistema caótico que Deus nos ofereceu como morada virtual (porque a verdade da existência, para qualquer cristão, não é esta e será sempre de natureza utópica, o que é perigoso, ou celeste, o que é oculto), encarcerados dentro desta natureza enigmática e intrincada e, amiúde, cruel, que Ele nos deu por condição, que consolo podemos recolher da vida? Não é fácil, nem aconselhável, promover o apocalipse dos olimpos, mas a verdade é que não há fé que vença os repetidos, eloquentes e operáticos horrores do mundo; nem ciência que quebre as grilhetas da condição humana.

A única consolação do individuo civilizado é, portanto, a Arte. A contemplação do belo, para a maior parte; a sua invenção, para uma ínfima minoria de eleitos. Na arte encontramos consolo porque convivemos com o absoluto e perante o absoluto; não precisamos de fazer perguntas. Os Concertos de Brandeburgo respondem a todos os mistérios e ninguém precisa de saber da temperatura do bosão quando assiste ao calvário de Cristo, através das visões de Caravaggio. De qualquer forma, a Vénus de Milo é com certeza mais bela que o Binómio de Newton, independentemente do vento que faz lá fora. A Arte salva-nos do lodo do mundo e o que é mais: eleva-nos acima do inferno da existência.