Nos dias que correm danados, quando o assunto em questão é a Inteligência Artificial, a pergunta que ouvimos mais vezes já não é se vamos ter máquinas mais inteligentes do que nós. Vamos tê-las de certeza. A pergunta que surge mais frequente é se isso pode acabar com a raça humana ou levá-la a novos patamares de evolução.

O ContraCultura deixa aqui as opiniões válidas, bem formadas, bem informadas e competentemente argumentadas de Sam Harris, um dos gurus da Intellectual Dark Web, que defende a razão pessimista com um tom talvez excessivamente apocalítico, e de Max Tegmark, o brilhante cosmólogo do MIT, que opta por um registo que oscila perigosamente entre o optimismo e a ingenuidade.

 

A Inteligência Artificial vai acabar com a humanidade, segundo Sam Harris:

 

A Inteligência Artificial vai exponenciar o potencial humano, segundo Max Tegmark:

 

O assunto é na verdade difícil e complexo como o diabo. Mas há na cabine telefónica desta conversa três elefantes magenta que Sam Harris, tipicamente, e Max Tegmark, estranhamente, não conseguem identificar nas suas breves Ted Talks (se calhar precisamente por serem breves).

O primeiro elefante berrante é o tema da consciência. É no mínimo estranho que Tegmark não a integre no seu discurso, porque ele é precisamente um dos cientistas contemporâneos que está a trazer a questão consciência para o âmbito da Matemática. Que Sam Harris não fale neste assunto já é compreensível, porque se trata de um ateu materialista de tal forma radical que nem deve gostar muito da palavra. Mas seja como for, esta é uma das notas fundamentais na pauta da música das máquinas divinas.

É que o que está aqui em jogo é o processo inverso do Genesis. No Antigo Testamento, é Deus que cria o Homem. No Século XXI será o Homem que cria Deus. Porque uma máquina com capacidades de processamento próprias do chip quântico, se for programada para aprender e se for ligada à Internet pode rapidamente tornar-se omnisciente, omnipresente, omnipotente: divina. Acontece que o Deus do Antigo Testamento não é de todo a mais simpática das figuras literárias, muito pelo contrário (perguntem a Job). Não queremos criar uma máquina que proceda como esse Deus (vide o episódio de Sodoma e Gomorra, por exemplo). Mas também não queremos criar um máquina destituída de leis morais, que funcione da forma mais eficiente possível, porque um computador quântico pode muito bem acreditar que a forma mais eficiente possível de lidar com a humanidade seja aniquilá-la.

A esta máquina tem assim que ser oferecido um motor consciente. A capacidade de distinguir entre o bem e o mal. A capacidade de encontrar um equilíbrio entre a ordem e o caos, a eficiência e a decência, o moralmente certo e o moralmente errado.

O problema é que a referência moral é um produto exclusivamente humano. E é aqui mesmo que entra a outra omissão elefantina nos argumentos das duas estrelas TED: muito provavelmente, os sistemas de inteligência artificial da segunda metade do Século XXI serão integrados na realidade biológica do ser humano. Máquina e Homem, Deus e Criado – ou Deus e Criador – serão o mesmo ente: o Sapiens 2.0, verdadeiro ex-machina, finalmente disponível num futuro próximo de ti, jovem leitor. Assim, a máquina não precisaria de uma consciência de si própria, porque seria escrava da consciência do seu portador biónico.

Mas suspeitar que a integração da Inteligência Artificial no corpo do homem será bastante provável a médio prazo não é o mesmo que prever um final feliz. Enquanto o homem for homem, enquanto Deus for Deus, não há finais felizes. Mas, como acontece tantas vezes na Futurologia, como acontece tantas vezes na História, é difícil fazer as contas no presente do indicativo.

Sendo certo que a tecnologia não vai parar de evoluir, podemos acreditar com sensatez que dentro de 20 a 40 anos teremos ao nosso dispor sistemas computacionais ontologicamente mais competentes do que nós. Mas a tendência será também a de integrar esses sistemas na rede neural humana. É isso que temos feito até aqui, na verdade. O que é um smartphone senão um complemento orgânico, um attach ao sistema nervoso da relação que o Sapiens tem com o mundo?

A ideia da máquina malevolente de olho vermelho, de Arthur C. Clark e Stanley Kubrick, é literária e cinematograficamente fabulosa. Mas não parece que o futuro do homem seja assaltado por este género de sistemas operativos da era analógica. Até porque, neste contexto, as leis de Asimov continuam a ser válidas, desde que programadas como mandamentos invioláveis:

1 – Um robô não pode prejudicar um ser humano, ou, através da inacção, permitir que um ser humano venha a ser prejudicado.
2 – Um robô deve obedecer a ordens dadas por seres humanos, excepto se tais ordens entrarem em conflito com a Primeira Lei.
3 – Um robô deve proteger a sua própria existência, desde que tal protecção não entre em conflito com a Primeira ou Segunda Leis.

O terceiro elefante cor de rosa, é o do condicionamento do discurso e da opinião através do uso de poderosos sistemas de inteligência artificial. O Contra já elaborou sobre este assunto, que tem até sido notícia nos Estados Unidos, a propósito do financiamento pela administração Biden de projectos de censura baseados neste género de tecnologias. Os sistemas de conversação sustentados por algoritmos e redes neuronais que já existem contribuem deveras para a preocupação que devemos alimentar em relação a este assunto. Tanto mais que sistemas como o Chat GTP, da OpenAI, ou o Lamda, da Google, parecem politicamente conscientes. E bastante activistas, no pior sentido da palavra.

Seja como for, prossigamos com ambição, porque a inteligência artificial pode de facto transportar a condição humana para um outro patamar ontológico; e com extrema cautela, porque sabemos o suficiente de história, de ciência (e de literatura), para não confiar cegamente num futuro risonho.