Há razões para apreensão ao observar um certo niilismo da administração Trump, principalmente no que respeita à política externa.
Primeiro foi a questão, aparentemente inócua, da nomenclatura do Golfo do México. Depois veio a conversa do Canal do Panamá e da Gronelândia. A seguir a guerra comercial com o México, o Canadá, a China e a Europa. E agora Trump está a anunciar ao mundo que vai literalmente tomar conta da faixa de Gaza, correr com os palestinianos que lá estão, arrasar com as estruturas existentes e desenvolver um modelo económico para o território assente muito provavelmente em complexos turísticos ou coisa que o valha (ele não explicou detalhadamente o programa).
Não é que seja difícil compreender alguns dos pontos de vista que estão na origem desta multidimensional ofensiva da Casa Branca, mas parece que a hubris domina agora a política externa americana. E se o Contra criticou o regime Biden por nem tentar nem saber fazer diplomacia, terá também agora, por dever ético e maioria de razão, que colocar reticências sobre a filosofia do “quero, posso e mando” que preside às políticas da recém-instalada administração.
Independentemente da ideia de Gaza ser má ou boa, conversa complexa que não cabe nestes breves parágrafos, os EUA não podem simplesmente entrar por territórios alienígenas a dentro e “tomar conta deles”, assim como se isto fosse a coisa mais normal do mundo.
Afinal, os americanos investiram tudo numa guerra por procuração com a Rússia precisamente porque consideraram ilegítima a forma como Moscovo decidiu tomar o leste da Ucrânia.
Mas aqui entre nós: Vladimir Putin teve argumentos muito mais sólidos para essa acção invasiva na Ucrânia do que Trump pode apresentar em favor da “tomada” de Gaza. Afinal, os ucranianos do leste são russos e falam russo. Afinal, se os ucranianos têm hoje um país, foi por autorização que lhes foi dada pelos russos. Afinal, o país estava a cair nas mãos da NATO, constituindo uma ameaça directa à soberania e à esfera de influência que a Rússia considera de fundamental importância. Afinal, a cidade de Kiev está para Moscovo como Guimarães para Lisboa. São berços pátrios.
O mesmo não pode ser dito dos EUA e da Palestina. Trata-se de um povo e de um território que nada têm a ver com a cultura, a religião e a tradição americanas. Que não estão, tecnicamente, na sua área de influência geográfica. Que não constituem uma ameaça à sua segurança ou soberania.
É impossível saber se o plano terá sucesso, já que na verdade vai enfrentar muitas dificuldades logísticas e militares, devastadores problemas humanitários, e será por certo um pesadelo para qualquer programa de anti-terrorismo que lá possa ser implementado. Mas é legítimo desconfiar que os detalhes que ainda estão por clarificar não tragam nada de bom. Por exemplo, como o Egipto e a Jordânia já afirmaram por diversas vezes, os palestinianos não são bem vindos nos países vizinhos, pelo que acabarão, obviamente, na Europa.
E dados os índices de tensão social que registamos no nosso velho continente a propósito da imigração, imaginem que de repente temos que receber um milhão de desgraçados, muitos deles militantes do Hamas. As coisas podem começar a correr mal muito rapidamente, mesmo considerando a já de si periclitante e perigosa situação actual.
Há ainda que sublinhar que Donald Trump não tem um mandato eleitoral que lhe permita incendiar o mundo. Muito pelo contrário. Foi eleito sob o lema “America First”, como muito bem sublinhou ontem Rand Paul. E os interesses primeiros do povo americano não passam por instalar casinos e resorts na Palestina.
Dir-me-ão que as posições de força de Donald Trump não são mais que uma táctica negocial, e que algumas das suas agressivas iniciativas resultaram em pleno, como a cedência por parte do México e do Canadá às pressões americanas relativas às fronteiras, por exemplo.
Mas seja como for, este impulso ofensivo terá necessariamente um impacto perturbador no tecido da geopolítica e da economia mundial. E outras potências, como a China ou a Rússia ou a Índia podem considerar adoptar comportamentos simétricos, intensificando tensões regionais e globais.
Basta pensar nisto: Se Donald Trump ocupar a faixa de Gaza, não estará a oferecer um livre trânsito a Xi Jinping para que ocupe a ilha de Taiwan?
E isto num ambiente internacional que já é de cortar à faca há uns anos largos.
E se fossemos com mais calma, rumo ao apocalipse?
Paulo Hasse Paixão
Publisher . ContraCultura
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