O corpo de Pátroclo levado do campo de batalha . Diana Scultori . Séc. XVI

 

Foi então que, já sem forças, lhe disseste, ó Pátroclo cavalheiro:
– Por agora, ó Heitor, ufana-te à grande. A ti outorgou
a vitória Zeus Crónida e Apolo, que me subjugaram
facilmente. Pois eles próprios me despiram as armas dos ombros.
Mas se vinte homens como tu me tivessem enfrentado,
todos aqui teriam morrido, subjugados pela minha lança.
Mas matou-me o fado e o filho de Leto; entre os homens,
Euforbo. Tu, contudo, foste o terceiro a matar-me.
Mas dir-te-ei outra coisa; e tu guarda-a no teu espírito:
não será por muito mais tempo que viverás, mas
já a morte de ti se aproxima e o fado irresistível,
pois morrerá às mãos do irrepreensível Eácida, Aquiles.*

 

Estamos no livro XVI da Ilíada, no momento em que a narrativa sofre uma crítica reviravolta. Como já vimos, Aquiles mantém-se cristalizado na sua birra, acampando na praia com os seus mirmedões, teimosamente afastado da contenda que opõe gregos a troianos.

Mas entretanto, num momento em que os aqueus parecem em desvantagem, Pátroclo, o melhor amigo do irado guerreiro que dá nome à obra, impacienta-se e decide-se a participar nos combates de forma a equilibrar as forças. Convencendo Aquiles a deixá-lo vestir-se com a sua armadura e a liderar os mirmidões, apropria-se também da sua quadriga de combate e faz-se à peleja, deixando para trás o seu amuado amigo, que permanece avesso ao apelo das armas. Apesar de jovem e inexperiente, Pátroclo desbarata as baterias inimigas, comportando-se como um valente e matando até um dos mais proemientes guerreiros do lado troiano, Sarpedão.

A morte de Sarpedão de certa forma prefigura muitas das outras mortes que estão para vir na Ilíada. Trata-se de um reputado guerreiro, semi-divino porque filho de Zeus e proveniente de uma das cidades aliadas de Troia, e é ele quem protagoniza os primeiros ataques bem sucedidos às forças sitiantes. E por isso trava-se uma acesa disputa pelo seu cadáver, como acontecerá depois com outros heróis da narrativa, já que as devidas cerimónias fúnebres são de extrema importância ritual e mística na Ilíada. Os gregos tentam impedir que Sarpedão receba essa dignidade funerária mas Zeus protege o corpo do seu filho, que é levado para a sua cidade natal cidade onde é convenientemente  cremado e sacralizado.

Este tipo de padrão, em que um guerreiro importante é morto por outro guerreiro proeminente e há uma luta feroz pelo seu corpo, de tal forma que os deuses têm que intervir para impedir a sua dessacralização, vai acontecer mais três vezes na Ilíada, e depois uma quarta vez para além da Ilíada, e acontece até logo a seguir, quando Pátroclo é morto por Heitor. Mais à frente na história, também o corpo sem vida de Heitor sofrerá injúrias e comércios até que seja definitiva e honrosamente entregue ao fogo. E para além da história, o mesmo fado será trovado sobre o cadáver de Aquiles.

Mas voltando à morte de Pátroclo: o jovem íntimo de Aquiles tinha sido avisado por este para nunca perseguir os troianos até ao seu último reduto. Mas no calor da batalha, Pátroclo esquece o precioso conselho e, entusiasmado pelo sucesso da sua beligerância, corre atrás dos troianos até às muralhas da cidade. Entrementes, o deus Apolo, que está do lado de Troia, levanta a sua voz para informar o leitor que seria melhor que o grego voltasse para o seu perímetro, que Troia cairá, sim, eventualmente, mas não pela mão dele, nem mesmo pela mão de Aquiles, que de qualquer forma e sob qualquer medida é um guerreiro bem mais válido e terrível.

 

 

Não deixa de ser surpreendente que Apolo surja aqui como um desmancha prazeres, que nos informa sobre o desfecho da história, quando a história está longe de terminada. Ficamos assim a saber que Troia cairá, mas não por responsabilidade de Aquiles, embora este seja na verdade o momento que vai marcar o regresso do imortal guerreiro à lendária contenda.

Isto porque, como já foi referido, desrespeitando o conselho de Aquiles e a recomendação de Apolo, Pátroclo investe contra as muralhas troianas só para ser morto por Heitor, que lhe enfia uma espada nas entranhas. Pátroclo cai no chão, mas no processo dessa queda troca uma muito interessante conversa com o príncipe troiano. Este promete-lhe que será comido pelos abutres no exacto metro quadrado em que desfalece, suprimindo-lhe os rituais fúnebres, mas o jovem grego, por seu lado, nega a Heitor a glória de o ter morto, na medida em que antes dele já Apolo o tinha atingido com um murro nas costas, de tal forma violento que a armadura lhe saltou do corpo, e depois também um jovem chamado Euforbo, que lutava do lado dos troianos, já o tinha trespassado com uma lança.

Patróclo está a dizer a Heitor: tu foste apenas o terceiro carrasco, no processo da minha morte. Tu administraste o golpe de misericórdia, sim,  mas não tens mais que esse inglório crédito e, o que é mais, também tu cairás em breve às mãos de guerreiro maior, o “irrepreensível Eácida”: Aquiles.

No decorrer de todo o poema, Homero procura constantemente moderar, cercear ou manchar a glória aos guerreiros que matam os seus inimigos, mesmo quando são claramente superiores aos seus adversários (ou talvez por isso mesmo). Menelau, vence concludentemente Paris no duelo que travam pela posse de Helena, mas os deuses não permitem que o grego mate o troiano nem que recupere a sua esposa. Heitor mata Pátroclo, mas só depois dele ter sido atingido por um deus e um homem. Aquiles matará Heitor, mas nem por isso sairá vitorioso da praia de Troia. O derramar do sangue inimigo tem um preço. Que em Homero é sempre fatídico.

Heitor pagará a morte de Pátroclo com a ira de Aquiles, que ofendido pela dor imensa da perda do seu amigo, e consumido pelo remorso de o ter deixado mergulhar sem a sua protecção no âmago da batalha, resolve-se finalmente a regressar ao combate, algo que nem a promessa de glória eterna, anunciada por sua mãe, tinha potenciado; que nem o Ulisses dos sábios conselhos e das generosas oferendas tinha conseguido; que nem o arrependimento e a humilhação de Agámemnon tinha promovido.

Sobre a glória, a ganância e o orgulho, vence o afecto fraterno. E o remorso.

 

 

* Tradução do grego original de Frederico Lourenço

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Outros artigos no Contra sobre o legado literário de Homero:
Uma introdução à obra de Homero.
A Ilíada,Canto I: Aquiles, Agamémnon e a disputa das concubinas.
A Ilíada,Canto III: A repreensão de Heitor, a insensatez de Páris e a interferência dos deuses.
A iliada, Canto III, parte II: Sobre a civilidade dos bárbaros e a barbaridade dos civilizados.
Ilíada, Canto IX: Os dois destinos de Aquiles.