O Canto III da ilíada abre com o grande guerreiro troiano Heitor, o filho mais velho do rei Príamo, que repreende severamente o seu irmão Páris, por ter irresponsavelmente raptado Helena, que por infelicidade era casada com Menelau, que por desgraça era irmão de Agamémnon, o mais poderosos dos reis gregos, sequestro melodramático que desencadeia o sangrento confronto que entretanto se desencadeou na rubra praia de Troia. Vale a pena citar a reprimenda, na tradução directa do grego clássico original, em boa hora realizada por Frederico Lourenço
“Páris devasso, nobre guerreiro somente na cuidada aparência,
desvairado por mulheres e bajulador! Quem dera que não tivesses
nunca nascido, ou que tivesses morrido sem teres casado!
Isso quereria eu, pois seria muito melhor assim, em vez
de seres para todos motivo de censura e desprezo.
Na verdade rir-se-ão os Aqueus de longos cabelos,
ao pensarem que combates na linha de frente porque és belo
de corpo, a despeito de te faltar força de espírito e coragem.
Foi assim que partiste nas naus preparadas para o alto-mar,
navegando o mar depois de reunidos os fiéis companheiros,
e ao chegares a um povo estrangeiro trouxeste uma mulher bela
de terra longínqua, nora de homens lanceiros, como grande
flagelo para teu pai, para a cidade e para todo o povo,
mas para regozijo dos teus inimigos e para tua vergonha?
Não te aguentarias em combate contra Menelau dileto de Ares?
Ficarias a saber de que têmpera é o homem cuja linda mulher possuis.
De nada te serviria a lira ou os dons de Afrodite,
muito menos os teus penteados e beleza, estatelado no pó.
Mas os Troianos são mesmo uns covardes: se assim não fosse,
terias sido já apedrejado por causa do mal que praticaste.”
Se a Ilíada relata a ira de Aquiles, também não fica indiferente à cólera de Heitor. Que é de facto merecida, já que o acto impensado do seu irmão levou o Egeu à mais trágica guerra de todas as guerras. Para Heitor, Páris não passa de um sedutor espúrio, que traz a desgraça à sua família e a morte à sua nação. E assim sendo, o que o herdeiro do trono propõe, como óbvio cinismo, já que o próprio Heitor sabe que Páris é melhor namoradeiro que guerreiro, é que o infeliz resolva sozinho a questão, convidando Menelau, o marido despojado, para um duelo, cujo desfecho determinará a posse da bela Helena. E se Páris sucumbir, secumbe vítima dos seus próprios actos, enquanto, por uma vez heróico, salva a vida das falanges troianas.
Menelau, experimentado general e hábil pelejador, aceita de bom grado o desafio, claro. E Páris, que como já suspeitávamos não é exactamente conhecido pela sua proeza no campo de batalha, passa rapidamente a saco de pancada, tanto mais que à força e ao treino de Menelau se soma a sua fúria indignada de marido ofendido. Mas quando Menelau se prepara para desferir o golpe terminal sobre o martirizado corpo de Páris, somos surpreendidos pela divina providência. Afrodite, a deusa das paixões humanas e de tudo o que é belo, entra em cena para encobrir Páris numa nuvem e transportá-lo para os seus principescos aposentos, poupando-lhe assim a vida, que não a humilhação e os hematomas.
Nesta altura, é preciso recuar a um momento anterior à guerra de Troia e externo à narrativa de Homero. Não é claro se Homero conhece ou não a história do ‘Julgamento de Páris’, provavelmente conhece, mas não faz alusão a ela em qualquer parte da Ilíada. Conta a lenda, porém, que antes da guerra de Troia e antes até de Páris ter conhecido Helena, houve uma disputa sobre o seu patronato entre as três deusas deusas no Monte Olimpo, que resultou num encontro entre elas e o príncipe para resolução da contenda. Nesse encontro, Páris foi convidado a escolher uma delas como sua favorita. Hera, irmã e esposa de Zeus, ofereceu-lhe em troca desse favoritismo o comando político de uma boa parte das cidades gregas. Atena, a deusa da guerra e da justiça, tentou seduzir o filho mais novo de Príamo com super-poderes de guerreiro e assinalável coragem no campo de batalha. Afrodite, a deusa do amor, limitou-se a garantir que, se a escolhesse como sua protectora, lhe entregaria a mais bela das mulheres.
Páris, que em definitivo não prima pelo bom senso na mitologia grega, escolhe Afrodite, agradado pela sua garantia. Acontece que esta escolha vai completamente contra os valores da sua própria sociedade, e da moral homérica. No contexto desta Grécia mitológica, mas também da realidade histórica da civilização helénica, Páris devia absolutamente ter escolhido a glória militar em primeiro lugar, o poder político em segundo lugar e a mulher mais bonita do mundo por último (até porque, aqui entre nós, a última variável decorrerá das primeiras); mas em vez disso ele segue na direcção do líbido e escolhe Afrodite e o amor sensual, cegamente. Ora a mulher mais bonita de mundo, é Helena. E Helena era casada com o irmão do homem mais poderoso do mundo e assim, está o caldo entornado.
É também por esta razão que, mesmo depois de Menelau ter vencido o duelo com Páris, não obtém ainda assim a sua mulher de volta. Hera e Atena não perdoam a Páris em particular e aos troianos em geral a ofensa de não terem sido pelo príncipe escolhidas como favoritas e convencem um arqueiro troiano a atingir Menelau, acto desonroso que fará com que a guerra prossiga e que Helena permaneça dentro das muralhas da cidade sitiada.
Há na Ilíada detalhes vários e fundamentais que escapam à narrativa, como este, e que são prenúncios dos horrores feéricos que a epopeia narra. A este propósito, será talvez pertinente lembrar um outro episódio mítico, que não é contado por Homero, em que Agamémnon sacrifica a filha Ifigénia a Ártemis, para que os navios que transportavam os exércitos por ele chefiados recolhessem bons ventos e pudessem chegar a Tróia. Apesar de Ifigénia não ter morrido durante o sacrifício, pois foi poupada pelos deuses que a transformaram numa sacerdotisa da cidade de Tauris, o rei grego, desconhecedor desse desenlace, sofreu na mesma a dor de ter que mandar matar aquela que era a sua filha predilecta. E nesse momento sabemos que a Guerra de Troia só pode ser resolvida com sangue abundante, porque a dimensão do sacrifício de Agamémnon assim o exige. A dor do rei terá que ser aplacada com o sangue do inimigo. É inevitável.
Seja como for, é no ‘Julgamento de Páris’ que reside o fundamento da Guerra de Troia, porque os próprios deuses já tinham arranjado maneira da coisa dar para o torto. A acção na Ilíada, como depois vemos nas epopeias futuras, da Eneida aos Lusíadas, funciona a nível divino e humano, embora os deuses das mitologias clássicas do Mediterrâneo mostrem muitas vezes, para o bem e para o mal, instintos e traços de carácter excessivamente humanos.
Neste episódio da Ilíada, no entanto, recolhemos vários e úteis ensinamentos: Que devemos ser cautelosos ao tomar decisões com base em meros prazeres sensuais, que devemos ser responsabilizados pelas nossas acções, que as nossas acções individuais podem ter profundas consequências no tecido social e – sobretudo – que o livre arbítrio encontra os seus limites nos desígnios da providência.
Nada mau, considerando que se trata apenas de um muito pequeno segmento desta obra imensa.
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Outros artigos no Contra sobre o legado literário de Homero:
A Ilíada,Canto I: Aquiles, Agamémnon e a disputa das concubinas.
Uma introdução à obra de Homero.
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