Como vimos anteriormente, depois da disputa das concubinas entre Aquiles e Agamémnon, o primeiro decide abandonar a peleja, indisposto a continuar a lutar por um rei que não hesita em humilhá-lo. Agamémnon, precisado porém de tão válido guerreiro, envia Ulisses, numa missão de boa vontade e carregado de presentes e promessas, ao acampamento dos mirmidões, na expectativa que o loiro espadachim seja convencido a regressar ao campo de batalha.
O irado herói não parece ainda assim convencido em voltar à contenda, argumentando com uma lógica que é sensata mas que rejeita na verdade todos os códigos de honra e princípios éticos do estereotipo homérico.
Aquiles diz a Ulisses que cavalos e quadrigas são triviais, enquanto uma vida longa e confortável (Aquiles era rei da Ftia) não tem preço.
Mas se é verdade que o Hades não era para os gregos um sítio tão apelativo como para os cristãos o céu, por exemplo, e nesse sentido uma vida bem vivida era aquilo a que qualquer mortal podia aspirar, temos no entanto que equacionar que Aquiles não é bem um mortal, mas praticamente um semi-deus, e que do guerreiro mais famoso da Grécia clássica se esperaria uma atitude, digamos, menos burguesa e mais conducente à conquista da imortalidade pela glória das armas.
Não obstante, Aquiles acaba por despachar o assunto e o mensageiro de Agamémnon, com estas magníficas palavras:
Na verdade me disse minha mãe, Tétis dos pés prateados,
que um dual destino me leva até ao termo da morte:
se eu aqui ficar a combater em torno da cidade de Troia,
perece o meu regresso, mas terei um renome imorredouro;
porém se eu regressar a casa, para a amada terra pátria,
perece o meu renome glorioso, mas terei uma vida longa,
e o termo da morte não virá depressa ao meu encontro.*
Esta é uma passagem de cortar a respiração por muitas razões, que transcendem a elegância dos versos. O texto refere-se à ideia de destino e enquanto no cristianismo pensamos comummente no destino como providência, que Deus decreta e que somos impotentes para contrariar (embora teologicamente, na verdade, esta interpretação integre alguns equívocos), no caso dos gregos antigos o destino da cada mortal transcendia até os voláteis caprichos da tribo olímpica, que se limitava a tentar manipular os acontecimentos e as circunstâncias que conduzem a esse inalterável desenlace. Mas nesta passagem, Aquiles revela que a sua mãe lhe disse que ele tem dois destinos alternativos, e que tem a liberdade, a todos os títulos excepcional, de escolher um deles.
Isto é inédito na literatura clássica, não só pelo que já foi enunciado, mas também porque não é suposto que as pessoas, mesmo com o estatuto mítico de Aquiles, conheçam o seu destino. O destino é algo que só é conhecido em retrospectiva. Só quando alguém morre é que sabemos que morreu e quanto tempo afinal viveu e o que fez, em definitivo, com a sua vida.
É verdade que há casos raros, o mais famoso será o de Édipo, em que ao mortal é anunciado antecipadamente o seu destino. É aliás o esforço de Édipo para evitar esse anunciado fado que conduz o enredo da tragédia de Sófocles. Mas na Ilíada só Aquiles é conhecedor do seu destino e só ele tem o o livre arbítrio para escolher o desenlace que prefere. Nós, os leitores, sabemos o resultado da guerra de Troia, mas Heitor não sabe e Andrómaca não sabe e Príamo e Agamémnon não sabem. Aquiles porém admite que a sua mãe sabe e, ainda por cima, que ele tem o poder de decidir que destino quer cumprir.
De facto, a Aquiles está a ser dada uma escolha: Ele pode ficar e pode lutar e se lutar ganhará a glória eterna, de tal forma que três mil anos depois o ContraCultura ainda está às voltas com a sua história e as razões da sua ira e a dualidade do seu destino. Mas essa imortalidade literária tem um preço: a vida sobre a curvatura da Terra será curta porque esta guerra de Troia será para Aquiles a última. Ao contrário, se abandonar a beligerante praia e regressar a casa, optando pela longevidade, será esquecido pela História Universal muito pouco tempo depois dos eventos descritos na Ilíada.
Contra todas as expectativas, o lendário guerreiro começa por recusar a glória e a memória eterna do seu nome. Que lhe interessa que as pessoas falem dele quando estiver morto? Que tem ele a ver com a ambição de Agamémnon, a volúpia de Paris, a beleza de Helena? E de que bem supremo beneficiará a Grécia através do sangue que jorra abundante pela areia daquela maldita praia? Aquiles tem um reino para o qual regressar e onde o aguarda a paz e o conforto material. Além disso, projecta casar e conta com a probabilidade da prole, que é outra forma, provavelmente mais tangível, de garantir a imortalidade. Em suma: a glória é ilusória, enquanto viver uma vida boa e longa, é algo objectivamente gratificante, sensual, experimentável.
Mais à frente na Ilíada, iremos observar porém, que esses valores empíricos não são afinal os que pesam mais nas acções do guerreiro. E que sentimentos muito mais voláteis, como a ira, superam rápida e instintivamente, os planos sensatos que fazemos para o futuro.
* Tradução do grego original de Frederico Lourenço
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Outros artigos no Contra sobre o legado literário de Homero:
Uma introdução à obra de Homero.
A Ilíada,Canto I: Aquiles, Agamémnon e a disputa das concubinas.
A Ilíada,Canto III: A repreensão de Heitor, a insensatez de Páris e a interferência dos deuses.
A iliada, Canto III, parte II: Sobre a civilidade dos bárbaros e a barbaridade dos civilizados.
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