Vinde fiéis, aqui triunfantes,
Vinde, vinde a Belém,
ver o nascimento
do Rei dos Anjos:
Vinde, adoremos,
vinde, adoremos,
vinde, adoremos
o Senhor.

Deus de Deus, luz da luz,
Aquele que os órgãos da donzela
grávida carregam,
De Deus vero, gerado e não criado.
Vinde, adoremos,
vinde, adoremos,
vinde, adoremos
o Senhor.

Oh, que um coro de anjos cantasse;
Que a corte do céu cantasse
Glória, glória a Deus
nas alturas,
Vinde, adoremos,
vinde, adoremos
Vinde, adoremos
o Senhor.

Assim, aquele que nasceu neste dia,
Jesus, a ti cabe a glória.
A Palavra do Pai Eterno
que se fez carne.
Vinde, adoremos,
vinde, adoremos,
vinde, adoremos
o Senhor.

Adeste Fidelis . Tradução livre do latim.

 

O Adeste Fidelis, também chamado ‘Hino Português’, é um dos mais belos e populares cânticos de Natal da tradição ocidental. Em todo o mundo, nesta quadra, os fiéis ouvirão e cantarão alguma versão da obra. É tradicionalmente o hino final da Missa da Meia-Noite na Basílica de São Pedro, no Vaticano, tal como “O Come, All Ye Faithful”, o seu equivalente em inglês, é omnipresente nas celebrações de Natal anglo-saxónicas. Mas quem o compôs e porque é que é tão popular?

Chamando à adoração, as palavras Venite, adoremus (“Vinde, adoremos”) são familiares nas liturgias do Advento, do Natal e da Epifania. E parte da canção reproduz o Credo Niceno, uma declaração de fé cristã muito utilizada na liturgia.

O musicólogo irlandês William H. Grattan Flood concluiu que a letra e a música da canção “remontam ao primeiro quartel do século XVIII e devem ser atribuídas a uma fonte católica e ao culto católico”. A canção foi descrita por Dom John Stephan como tendo “algo de Handeliano”. Seja como for o Adeste Fideles é identificado unanimemente com criadores católicos.

Embora as suas fontes e origens exactas permaneçam por provar, os musicólogos concordam que o hino foi inicialmente associado ao leigo católico do século XVIII, compositor e copista musical John Francis Wade.

Mas tem sido também recorrente na historiografia da música, tanto como no credo popular, a atribuição da autoria a D. João IV de Portugal, o Primeiro rei dos Braganças e restaurador da independência nacional em 1640. João IV era um melómano incondicional e compositor amador cujas obras terão sido destruídas no terramoto de Lisboa de 1755. Para além do Adeste Fideles, também terá escrito Crux Fidelis, um hino coral usado na Sexta-feira Santa durante a adoração da cruz e na Liturgia das Horas durante a Semana Santa. Isto embora também a autoria desta obra seja discutida e possa ter origem na França do século XIX.

O hino foi também atribuído a Jonh Reading (1645-1692), compositor e organista britânico, e a monges cistercienses anónimos, a ordem que se ramificou dos beneditinos e que evitava o embelezamento musical. Talvez a simplicidade de Adeste Fideles tenha feito com que alguns dos primeiros ouvintes se lembrassem dos simples cânticos cistercienses. O próprio texto foi atribuído por alguns, improvavelmente, a São Boaventura, o teólogo franciscano do século XIII.

O Adeste Fideles foi conhecido em Inglaterra durante algum tempo como “o hino português”, porque, na versão escolástica desta história, era tocado na capela da embaixada portuguesa em Londres, no século XVIII. Nessa altura, os hinos em latim, próprios do culto católico, eram vistos com desdém pelas autoridades anglicanas.

 

A versão inglesa.

Essencial para a popularidade contínua do hino foi a sua tradução para inglês. A mais influente de dezenas de tentativas foi a realizada em 1841, pelo padre anglicano Frederick Oakeley. Quatro anos mais tarde, Oakeley tornou-se católico, seguindo o exemplo do Cardeal John Henry Newman, a cuja comunidade em Oxford se juntou. Autor prolífico de manuais lúcidos e concisos, incluindo Catholic Worship (1872) e The Ceremonies of the Mass (1855), Oakeley referia-se aos seus livros como “esta pequena obra” ou “este pequeno manual”, mostrando que trabalhava bem em formas sintéticas. Esta tendência para a miniaturização adequava-se idealmente a “O Come All Ye Faithful”, onde uma sequência rápida de imagens aumenta a vivacidade da canção.

Originalmente intitulado “Ye Faithful, approach ye”, o texto de Oakeley começava com “O come, all ye faithful/ Joyfully triumphant”, mas logo foi transmutado para “Joyful and triumphant”. Um refrão de Oakeley pode confundir os adoradores modernos: “Deus de Deus, luz da luz,/ Eis que ele não abomina o ventre da Virgem.” Oakeley adaptou o refrão “carried in the maiden’s womb” (gestant puellae viscera) com termos da oração do “Te Deum”: “não abominastes o ventre da virgem” (non horruisti Virginis uterum). O objectivo era refutar os gnósticos que acreditavam que o divino não se podia misturar com a humanidade corrupta.

Quando outras palavras eram colocadas na melodia de Adeste Fideles, provocavam desconforto. Na década de 1870, na Abadia de Bath, em Inglaterra, “Though troubles assail”, um poema do coadjutor John Newton, substituiu o texto de Oakeley. Os fiéis ficaram desanimados quando o hino terminava assim: “Esperamos morrer a gritar,/ Esperamos morrer a gritar,/ Esperamos morrer a gritar,/ ‘O Senhor proverá’”.

Na Escócia, o Rev. Robert Menzies, um missionário do século XVIII, relatou que a peça “rapidamente se tornou moda em [Edimburgo]; os aprendizes assobiavam-na em todas as ruas; dizia-se até que os melros da praça se juntavam ao coro!”

 

Ecos culturais

O Adestes Fideles entrou de forma retumbante na literatura moderna com a sua inclusão no romance experimental Finnegans Wake, do autor católico irlandês James Joyce. Com vários trocadilhos, Joyce referiu-se a “Ahdostay, feedailyones”, sugerindo um apelo à permanência para aqueles que são alimentados diariamente.

O compositor americano Charles Ives usou o “hino português” na sua obra orquestral “Decoration Day”. Ives já havia escrito um prelúdio para órgão e uma marcha lenta a partir da composição. Em “Decoration Day” (o antigo nome do Memorial Day), Ives fez com que o tema aparecesse num contexto de morte e ressurreição semelhante ao dos mártires de James Joyce.

Por vezes, Adeste Fideles apareceu fora de contexto, como recordou o compositor de cinema Miklós Rózsa. Na preparação do épico de Hollywood “Ben-Hur”, de 1959, o realizador William Wyler sugeriu que um presépio com a estrela de Belém à vista seria a ocasião ideal para incluir Adeste Fideles como “canção de Natal”. Rózsa salientou que colocar o hino num conto do primeiro século seria anacrónico, mas o realizador não se deixou convencer, mesmo depois de Rózsa ter sugerido ironicamente que se acrescentasse também o tema “White Christmas” de Irving Berlin.

Grande parte do apelo do cântico na cultura contemporânea deve-se claramente à sua acessibilidade a intérpretes amadores; e os fiéis nos bancos da igreja deliciam-se na altura do Natal com este hino eminentemente cantável que parece ser dirigido a eles.

E, como diz o Dictionary of North American Hymnology, as repetições da melodia impõem um “sentido de urgência” que se adequa perfeitamente ao contexto: “Imagine uma criança, puxando a sua mão, dizendo insistentemente: ‘Vamos, vamos, vamos!’”

 

O mito do D. João IV

Reza a lenda que D. João IV é o verdadeiro autor da obra, já que dois manuscritos do Adeste Fidelis foram encontrados na escola de música da Capela do Paço Ducal de Vila Viçosa com a data de 1640 (o ano em que Portugal recuperaria a independência perdida em 1580).

Para além das suas competências políticas, militares e diplomáticas, D. João IV (1604-1656) foi musicólogo e compositor e reuniu uma das maiores bibliotecas do mundo especializadas em música. A primeira parte da sua obra musical foi publicada em 1649. Fundou uma escola de música em Vila Viçosa da qual saíram músicos para a Europa, nomeadamente para Itália. Foi no paço ducal que foram encontrados os dois manuscritos datados de 1640, mais de um século anteriores à versão feita por Wade. De entre os seus escritos podemos encontrar “Defesa da Música Moderna” (Lisboa, 1649) ano em que o Rei D. João IV solicitou às instâncias competentes da Igreja Católica a aprovação universal da música instrumental no culto católico.

Mas afinal, Adeste Fideles, que se tornou um dos hinos natalícios mais tocados em todo o mundo, foi ou não composto por D. João IV?

Sempre interessados em destruir mitos, esquecendo ou ignorando que a mitologia é a matéria prima fundacional da psique, da cultura e da identidade dos povos, académicos como Rui Vieira Nery têm insistido que a obra não é da autoria do rei português. Que é um “Disparate musicológico absoluto” e uma “fantasia romântica sem qualquer fundamento”.

Rui Vieira Nery assegura ser “absolutamente falso” que tais manuscritos existam na vila alentejana e que a atribuição ao rei português “não é sustentada por nenhum – absolutamente nenhum – dos autores que estudaram a vida e obra de D. João IV”, de Joaquim de Vasconcelos e Ernesto Vieira a Mário de Sampaio Ribeiro e Luís de Freitas Branco.

Do ponto de vista técnico, há outro argumento conta a autoria do monarca, segundo o musicólogo: “É uma obra composta em harmonia funcional inteiramente tonal, com acompanhamento de baixo contínuo, num estilo absolutamente incompatível com a prática musical do tempo de D. João IV.”

De acordo com o maestro Luís de Freitas Branco, a partitura terá uma primeira impressão em 1782, no livro inglês “An Essay on the Plain Chant”, pelo que não pode ser da autoria do Rei Restaurador. E a professora Carlota Miranda, da Universidade de Coimbra, chama-lhe um “Hino de Natal pseudo-português”.

 

Argumentos a favor do mito.

Não se percebendo bem que alegria tiram os académicos e o maestro em nos negarem a lenda, já que em seu lugar colocam apenas suposições, tão válidas afinal, como aquela que aponta para a autoria de D. João IV, faz sentido contrariá-los.

Como já foi referido, o Rei Restaurador era um compositor dotado e um erudito musicólogo, como era aliás tradição ancestral na casa de Bragança. É legítimo supor que tenha decidido compor uma obra em glória de Cristo, por ocasião da restauração da monarquia portuguesa, já que era extremamente devoto e a expressão de gratidão pela retoma da independência nacional não teria neste Rei melhor formato que o musical.

O argumento de Vieira Nery de que a “harmonia funcional inteiramente tonal, com acompanhamento de baixo contínuo” não é contemporânea de D. João IV choca frontalmente com a opinião de outros musicólogos de referência que atribuem a autoria da peça a São Boaventura, que viveu no século XIII, aos monges cistercienses, cuja produção cultural não se estendeu para além do século XVI, e até com a opinião de Dom John Stephan, que comenta a composição como próxima das obras de Handel. Ora George Frideric Handel nasceu em 1685 e morreu em 1749. Não é de todo ilegítimo supor que o rei português, de tal forma profundo conhecedor da teoria da música que os músicos europeus vinham estudar na sua escola de Vila Viçosa, pudesse antecipar estruturas harmónicas que viriam a ser utilizadas cinquenta ou sessenta anos mais tarde. Afinal, o monarca era um vanguardista, caso contrário não teria escrito a “Defesa da Música Moderna”.

Por outro lado, o facto dos manuscritos encontrados em Inglaterra estarem assinados por Wade constitui apenas aquilo a que chamamos uma prova circunstancial, ou seja, não provam por si só que o músico britânico tenha composto a música. Tanto mais que Wade era também um copista, pelo que a assinatura dos manuscritos pode referir-se ao trabalho de reprodução e não de criação da peça.

Além disso, um dos argumentos que defende a tese da autoria do compositor britânico é o de que Wade viveu numa comunidade católica inglesa que foi exilada em França após o fracasso da revolta jacobita de 1745. Essa rebelião tentou restaurar um monarca católico, Charles Edward Stuart, conhecido informalmente como “Bonnie Prince Charlie”, no trono de Inglaterra. O musicólogo britânico Bennett Zon afirmou que o hino pode ser interpretado como um apelo às armas para que os jacobitas fiéis regressem com alegria triunfante a Inglaterra (Belém) e venerem o rei dos anjos, ou seja, um rei inglês católico. Porém, esta linha de raciocínio tem uma séria objecção: Charles Edward Stuart, que se saiba, não  nasceu de mãe imaculada, pelo que os versos em baixo não compaginam de todo com esta narrativa.

Deus de Deus, luz da luz,
Aquele que os órgãos da donzela
grávida carregam,
De Deus vero, gerado e não criado.

E por último: a ideia de que o Adeste Fidelis foi apelidado de “Hino Português” porque era tocado na embaixada lusa em Londres, é rebuscada, no mínimo, e não tem a seu favor qualquer facto material ou fonte historicista. A explicação mais simples e plausível é que o cognome da peça decorreu da nacionalidade do seu autor.

Assim sendo, e permanecendo objectivamente a dúvida, pelo menos os portugueses, mesmo que contra a sua academia, podem e devem continuar a suspeitar que um dos hinos natalícios mais populares de sempre foi composto pelo Rei que devolveu Portugal aos portugueses.

É um mito bonito. Que não tem na verdade argumentos de peso para ser cancelado.