Entre eles falou então Príamo, filho de Dárdano:
“Ouvi-me, Troianos e Aqueus de belas cnêmides!
Eu próprio regressarei agora para Ílion ventosa,
uma vez que não aguentaria ver com os olhos
meu filho amado a combater contra Menelau, dileto de Ares.
Isto sabe já Zeus e os outros deuses imortais:
a qual dos dois está destinado o termo da morte.”Ilíada . Canto III . Tradução de Frederico Lourenço
No Canto III, Homero apresenta-nos os troianos, com cuidadoso detalhe, mais do que aquele que teve até aqui em relação aos gregos. Curiosamente, os personagens introduzidos, na sua maior parte, não são guerreiros – esses surgirão depois – mas anciãos, veteranos de outras batalhas, agora demasiado velhos para lutar, mas ainda capazes de comentar a guerra que se estende pela mítica praia e que observam do alto das muralhas da cidade.
Pela conversa dos veteranos somos levados ao conhecimento da bela Helena de Troia, que na verdade é Helena da Grécia, mas por ter sido raptada por Páris e residir agora dentro do fortificado burgo passa por troiana. E depois de Helena, conhecemos Príamo, o Rei de Troia, homem nobre de carácter e são de temperamento, que carrega consigo a responsabilidade de um povo e de uma nação, tanto como o destinos dos seus filhos, que não podiam ser mais diferentes – Páris e Heitor.
Homero encontra em Príamo um dos seus personagens mais queridos, tratando-o dir-se-ia com carinho, embora também o submeta, no correr da epopeia, a dilemas intrincados e a impossíveis exercícios de equilibrismo moral. Príamo é constantemente colocado entre a espada e a parede, entre a guerra e a paz, entre o orgulho e a súplica, entre a destemperança apaixonada e quizilenta, mas insubstancial, do seu filho mais novo e a razão pacifista do guerreiro primogénito, entre o facilitismo de entregar Helena aos gregos e a complicação de lhes fazer frente. O monarca procura sempre a solução mais honrada, a saída mais digna, interagindo com Helena com extrema gentileza e humanidade e com Páris usando de esmerada tolerância, por exemplo. Mas embora seja bem sucedido nalgumas decisões de sábio e ponderado malabarista, pagará caro o preço da sua dignidade, como veremos mais à frente.
De Príamo, passamos a Heitor, o maior dos troianos, uma personagem imensa em lealdade, coragem, inteligência, guerreiro sensível e personagem tão querida e amada por Homero e pelos leitores de Homero que muitos consideram-no o verdadeiro herói da Ilíada, apesar de ser morto por Aquiles. Nos versos que descrevem o príncipe, não lemos apenas o herói épico, mas também o homem de família, o filho dedicado, o pai extremoso, o marido apaixonado e fiel; e nas suas interacções com os restantes personagens, amigos ou inimigos, é clara a sua grandeza.
Enquanto Aquiles oscila entre o ordinário e o divino, uma espécie de super-herói com um feitio difícil, às vezes até mesquinho, outras vezes frio como uma máquina de ceifar almas, e frequentemente condicionado pelas exigências de um ego inflaccionado; Heitor é altruísta, generoso, equilibrado e profundamente humano. No frente a frente entre guerreiros, Aquiles levará a melhor. Mas na escala das restantes virtudes, Heitor é o campeão em título.
Este carinho de Homero pelos personagens troianos não deixa de ser curioso, já que é um grego quem conta a história da guerra de Troia e os gregos consideravam os troianos como toda a gente que helénica não era: uma cambada de bárbaros. E dos bárbaros não se esperavam qualidades como encontramos em Príamo ou Heitor. A própria palavra provém da sucessão de onomatopeias bar, bar, que era a forma pejorativa dos gregos se referirem ao linguarejar dos estrangeiros, selvagens impenitentes que nem falar sabiam.
Mas se esperamos que na mais antiga das epopeias os gregos tratem os seus inimigos como um povo destituído de civilidade, não poderíamos estar mais equivocados. Pelo contrário, ficamos com a estranha sensação que, entre Príamo e Agamémnon, o bárbaro é o grego. Que entre Heitor e Aquiles, o selvagem é Aquiles.
E, se não nos servir de outra lição que não esta, o Canto III da Ilíada lembra-nos que do outro lado da muralha estão mais que apenas inimigos. Estão seres humanos que são pais, filhos, maridos. Que amam a sua pátria e procuram honrar os seus antepassados. Que preferem pelejar a sacrificar inocentes. Que têm um sentido moral imanente. Que são, afinal, tão bárbaros como nós.
Outros artigos no Contra sobre o legado literário de Homero:
Uma introdução à obra de Homero.
A Ilíada,Canto I: Aquiles, Agamémnon e a disputa das concubinas.
A Ilíada,Canto III: A repreensão de Heitor, a insensatez de Páris e a interferência dos deuses.
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