Entre 2011 e 2022 foram publicadas na língua portuguesa 3 biografias de Fernando Pessoa, a saber:

Fernando Pessoa – Uma Quase-Autobiografia José Paulo Cavalcanti Filho – Porto Editora – 2011
Pessoa. Uma Biografia – Richard Zenith – Quetzal – 2022
O Super Camões – Biografia de Fernando Pessoa – João Pedro George – Dom Quixote – 2022

Estes esforços biográficos somam-se às biografias de João Gaspar Simões, Vida e Obra de Fernando Pessoa, publicada em 1950, e à de Robert Brechon, Estranho Estrangeiro: Uma Biografia de Fernando Pessoa, de 1996. Em 2011, Carlos Taibo publicou Como si no pisase el suelo. Trece ensayos de Fernando Pessoa que tem sido divulgada como uma ‘biografia íntima’, que não foi traduzida para Português e que o autor destes artigos não leu.

Dado que não faltam recensões críticas às duas obras publicadas no século XX e que o trabalho de Carlos Taibo não foi publicado em Portugal, o ContraCultura vai dedicar esta série de artigos sobre os esforços biográficos dedicados a Fernando Pessoa, que vão sair nos próximos sábados de Maio, às três edições que em cima se destacam.

Essas recensões carecem porém de uma introdução, já que é legítimo interrogarmo-nos sobre a pertinência e a legitimidade do exercício biográfico, quando é do autor da Mensagem que estamos a falar.

 

O poeta escondido e a pessoa que Pessoa não era.

Para os gigantes da literatura, as biografias são como os prefácios: por definição, inúteis. Mais a mais, Fernando Pessoa, que não teve uma vida propriamente aventureira, que não viajou para além daquilo que em criança foi obrigado, que teve não mais que um punhado de amigos, que era um homem de rotinas e escritórios e sombras, que terá morrido virgem, que era reservado até ao limite da sobrevivência social e extremamente cioso da sua vida privada, até para os que lhe eram mais íntimos (se é que alguém alguma vez lhe foi íntimo), que não escreveu uma página sobre os seus sentimentos interiores, preferindo inventar personagens para lhes fazer o relato desses interstícios d’alma1, não é propriamente a figura apropriada ao ofício de biógrafos.

Na personagem ortónima ou através das vozes heterónimas, Pessoa solicitou constantemente aos futuros biógrafos para que não escarafunchassem na sua vida privada. No Livro do Desassossego podemos ler:

“A mais vil de todas as necessidades é a da confidência, a da confissão. A teres de confessar segredos, confessa o que não sentes.”

Fernando Pessoa, neste aspecto específico, estaria por certo de acordo com Marcel Proust, que considerava2 que a vida de um escritor jamais devia ser vista como uma chave para se compreender a sua obra e que confundir as duas vertentes é desconhecer

“aquilo que uma frequentação um pouco profunda connosco próprios nos ensina: que um livro é o produto de um outro eu, que não aquele que manifestamos nos nossos hábitos, na sociedade, nos nossos vícios.”

O caso de Pessoa é que é um autor que se dá muito mais à execese literária do que ao escrutínio jornalístico. É a sua interminável e prodigiosa obra, e não a sua recatada vida, que devia convidar os estudiosos. Lamentavelmente, passa-se exactamente o contrário: Temos muito mais páginas escritas sobre a sua vida do que sobre aquilo que escreveu.

Até Álvaro de Campos, nas “Notas para a recordação do meu mestre Caeiro”, sublinha essa fantasmática condição anti-biográfica:

“Fernando Pessoa não existe, propriamente falando.”

Pela pena de Alberto Caeiro, o poeta, que nunca duvidou estar condenado à posteridade e, por isso, ao inquérito dos biógrafos, deixou aquele que é talvez o mais eloquente aviso sobre incautas tentativas de fazer reportagem sobre a sua vida:

Se depois de eu morrer, quiserem escrever a minha biografia,
Não há nada mais simples
Tem só duas datas — a da minha nascença e a da minha morte.
Entre uma e outra cousa todos os dias são meus.

Sou fácil de definir.
Vi como um danado.
Amei as cousas sem sentimentalidade nenhuma.
Nunca tive um desejo que não pudesse realizar, porque nunca ceguei.
Mesmo ouvir nunca foi para mim senão um acompanhamento de ver.
Compreendi que as cousas são reais e todas diferentes umas das outras;
Compreendi isto com os olhos, nunca com o pensamento.
Compreender isto com o pensamento seria achá-las todas iguais.

Um dia deu-me o sono como a qualquer criança.
Fechei os olhos e dormi.
Além disso, fui o único poeta da Natureza.

E sobre a origem interior dos heterónimos, também o poeta deixou testemunho, numa carta endereçada a Adolfo Casais Monteiro3, tão pertinente para o autor que dela fez 3 cópias, e em que diz:

“Desde criança tive a tendência para criar em meu torno um mundo fictício, de me cercar de amigos e conhecidos que nunca existiram. (Não sei, bem entendido, se realmente não existiram, ou se sou eu que não existo. Nestas coisas, como em todas, não devemos ser dogmáticos). Desde que me conheço como sendo aquilo a que chamo eu, me lembro de precisar mentalmente, em figura, movimentos, carácter e história, várias figuras irreais que eram para mim tão visíveis e minhas como as coisas daquilo a que chamamos, porventura abusivamente, a vida real. Esta tendência, que me vem desde que me lembro de ser um eu, tem-me acompanhado sempre, mudando um pouco o tipo de música com que me encanta, mas não alterando nunca a sua maneira de encantar.”

Talvez por tudo isto, os extensos trabalhos em análise nos próximos artigos desta série pecam, mais do que pela especulação, pela invenção. Muitas vezes faz-se a biografia de uma pessoa que Pessoa não era. Vezes de mais, por agenda política ou impulso mercenário, retrata-se uma personagem que os biógrafos gostariam que o poeta fosse, na impossibilidade, ideológica ou factual, de escrutinar quem ele era de verdade. Nestas três mil páginas que soma o labor de José Paulo Cavalcanti Filho, Richard Zenith e João Pedro George (este, menos propenso à ficção), somos frequentemente assaltados pelo dogma que vive na veia dos biógrafos, mais do que pelo quotidiano do biografado, que, por acaso, era tudo menos dogmático.

Lamentavelmente, dão-se mesmo excessos de interpretação, desvios ao bom senso e total alheamento dos factos. Na (infame) tradição de outros autores que insistem em associar o génio de Pessoa ao alcoolismo e ao consumo de estupefacientes4, e a enfermidades psicológicas como transtornos bipolares5 e esquizofrenia6, Cavalcanti Filho e Zenith dão-se a abordagens freudianas (que o Próprio poeta recusava), alegorias libidinosas e perversões sexuais (para as quais não de encontram quaisquer evidências), numa urgência de desfazer o perfil moral do imortal poeta, como se o quisessem degradar e diminuir propositadamente.

Sendo certo que há até autores de tal forma tresloucados que se deram ao luxo de escrever sobre a vida sexual de um homem que não teve vida sexual7, proliferam nas páginas destas biografias desvarios impensáveis, fruto de um desamor à verdade que só pode resultar de um processo intencional de diminuir a memória daquele que é, na opinião do Contra, o mais importante autor da língua portuguesa.

Estes excessos chegam a um ponto de tal forma estrambólico que ao leitor sensato resta apenas concluir: ou estes dois biógrafos decidiram escrever sobre a vida de um autor que não apreciam, ou apreciam escribas de baixa condição ética, que Pessoa não era de todo.

 

No Martinho da Arcada, entre amigos e cervejas.

 

Fernando Pessoa era uma pessoa muito bem formada.

Ao contrário do que nos querem fazer querer os biógrafos brasileiro e norte-americano (e às vezes, a espaços, João Pedro George também), Fernando António Nogueira Pessoa foi durante toda a vida o mais educado e o mais gentil dos homens. Dedicado à família, amava a mãe loucamente; respeitava, sem vírgulas, o seu padastro; eram sinceros os seus afectos fraternais, especialmente em relação à irmã, ao marido dela e às sobrinhas, que adorava e com as quais não regateava tempo para brincandeiras, que são lendárias8, carinhos e atenções.

Não se conhece do poeta uma atitude infame, um mal dizer, uma vulgaridade. Não tem mau vinho nem nunca foi visto a fazer tristes figuras de bêbado; não eleva a voz, não comete  vilanias, não destrata amigos ou conhecidos ou colegiais das várias empresas em que trabalhou. Não ofende nem é ofendido. Passa pela vida com elegância, e poderá ser apenas criticado pelas dívidas perpétuas e de difícil cobrança que mantinha com os alfaiates e pela forma menos correcta com que lidou com uma parte da herança familiar que teve a responsabilidade de gerir.

Apesar de não ter correspondido nunca às sucessivas preces de Ofélia no sentido da união matrimonial, não lhe mentiu, não a traiu, não lhe foi falso. E o testemunho9 que ela deixou, faz prova das qualidades pessoais do namorado.

O Fernando era aquele tipo de sujeito educado que mandava um paquete correr com uma carta só para avisar que ia chegar meia hora atrasado10.

De facto, os testemunhos que conhecemos do seu comportamento são, em uníssono, elogiosos. É respeitado e considerado por pares e patrões, o seu carácter, a sua descrição, a sua afabilidade são sublinhados sem reticências por todos os que tiveram o privilégio de com ele travar conhecimento. Fernando Pessoa, por aquilo que se sabe, era uma pessoa de bem.

E esta informação que temos documentada sobre o seu carácter e o seu coração, é, curiosa e ostensivamente, omitida ou disfarçada por Richard Zenith e Cavalcanti Filho, que preferem inventar um personagem diferente.

Por essa irresponsabilidade, por essa falta de respeito, por essa intenção vil, serão seguramente julgados no futuro. Se é que ao futuro vão chegar essas páginas desavergonhadas.

 

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1 João Pedro George . O Super-Camões . D. Quixote . Pag. 870
2 Marcel Proust . Contra Saint-Beuve  . Universidade de Lisboa . Pag. 157
3 Carta a Adolfo Casais Monteiro . Casa Fernando Pessoa
4 Paulo Hasse Paixão . A Impossibilidade do Alcoolismo em Fernando Pessoa: Um Ensaio em Cinco Tragos . Deus Me Livro
5 Susana A. de Albuquerque . Estudo Patográfico de Fernando Pessoa . Edições Referendo
6 Mário Saraiva . O Caso Clínico de Fernando Pessoa . Edições Referendo
7 Salomó Dori, A Vida Sexual de Fernando Pessoa, Palimpsesto
8 Robert Bréchon . Estranho Estrangeiro . Quetzal . Pag. 182
9 O Fernando e eu, Relato da Ex.mª Senhora Dona Ophélia Queiroz, destinatária destas Cartas de Fernando
10 Fernando Pessoa, Correspondência (1905-1922), Relógio d’Água; Fernando Pessoa, Correspondência (1923-1935), Assírio & Alvim