A Rússia suspendeu na segunda-feira um acordo inédito em tempo de guerra que permite o escoamento de cereais da Ucrânia para países de África, do Médio Oriente e da Ásia, onde a fome é uma ameaça crescente e os elevados preços dos alimentos empurraram mais pessoas para a pobreza.

 

 

O porta-voz do Kremlin, Dmitry Peskov, disse que a Rússia suspenderá a Iniciativa para os Cereais do Mar Negro até que sejam satisfeitas as suas exigências para fazer chegar ao mundo os seus próprios alimentos e fertilizantes. Embora a Rússia se tenha queixado de que as restrições em matéria de transporte marítimo e de seguros têm dificultado as suas exportações agrícolas, a verdade é que tem exportado quantidades recorde de trigo. Ainda assim, Peskov disse que

“Quando a parte do acordo do Mar Negro relacionada com a Rússia for implementada, a Rússia voltará imediatamente à implementação do acordo”.

A suspensão marca o fim de um tratado que a ONU e a Turquia mediaram no verão passado para permitir a saída de alimentos da região do Mar Negro, depois da invasão russa do país vizinho ter agravado a crise alimentar mundial. A iniciativa contribuiu para baixar os preços do trigo, do óleo vegetal e de outros produtos alimentares.

A Ucrânia e a Rússia são ambos grandes fornecedores mundiais de trigo, cevada, óleo de girassol e outros produtos alimentares a preços acessíveis de que os países em desenvolvimento dependem.

O acordo sobre os cereais garantia que os navios não são atacados à entrada e à saída dos portos ucranianos, enquanto um outro compromisso facilitou a circulação de alimentos e fertilizantes russos. Embora as sanções decretadas pela Europa e pelos EUA não se apliquem aos carregamentos agrícolas de Moscovo, algumas empresas começaram a recusar fazer negócios com a Rússia devido às sanções do bloco ocidental. O Kremlin está agora a fazer com que o bloco ocidental prove um pouco da sua própria medicina.

 

 

A suspensão do acordo fez com que os preços do trigo subissem cerca de 3% nos mercados americanos. Os analistas não esperam mais do que um aumento temporário dos preços dos produtos alimentares porque países como a Rússia e o Brasil aumentaram as exportações de trigo e milho, mas a insegurança alimentar a nível mundial está a crescer.

A Iniciativa para os Cereais do Mar Negro permitiu que três portos ucranianos exportassem 32,9 milhões de toneladas métricas de cereais e outros alimentos para o mundo, mais de metade dos quais para países em desenvolvimento, de acordo com o Centro de Coordenação Conjunto em Istambul.

O acordo foi renovado por 60 dias em maio, mas nos últimos meses, a quantidade de alimentos transportados e o número de navios que partem da Ucrânia diminuíram, com a Rússia a ser acusada de impedir a participação de mais navios.

A guerra na Ucrânia fez com que os preços dos produtos alimentares atingissem máximos históricos no ano passado e contribuiu para uma crise alimentar global também associada a outros conflitos, aos efeitos persistentes da pandemia Covid-19 e a más colheitas.

 

 

Os elevados custos dos cereais necessários para a produção de alimentos básicos em países como o Egipto, o Líbano e a Nigéria agravaram os desafios económicos e ajudaram a empurrar milhões de pessoas para a pobreza ou a insegurança alimentar.

Simon Evenett, professor de comércio internacional e desenvolvimento económico na Universidade de St. Gallen, na Suíça, afirmou recentemente:

“O acordo do Mar Negro é absolutamente crítico para a segurança alimentar de vários países e a sua perda irá agravar os problemas daqueles que enfrentam elevados níveis de dívida.”

A Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) declarou este mês que 45 países necessitam de assistência alimentar externa, uma vez que os elevados preços dos alimentos a nível local são “um factor de níveis preocupantes de fome” nesses locais.

O acordo sobre os cereais tem sofrido reveses desde que foi mediado pela ONU e pela Turquia: em Novembro de 2022, após o ataque ucraniano a Sevastopol, a Rússia suspendeu o tratado. Mas em Março deste ano, reactivou-o por 60 dias, prorrogando-o em Maio por mais 6 meses, em vez dos habituais 120. A quantidade de cereais embarcados por mês caiu de um pico de 4,2 milhões de toneladas em Outubro para 1,3 milhões de toneladas em Maio, o volume mais baixo desde que o compromisso foi firmado internacionalmente. As exportações aumentaram em Junho para um pouco mais de 2 milhões de toneladas, graças a navios maiores, capazes de transportar mais carga.

A Ucrânia acusou a Rússia de impedir a entrada de novos navios desde o final de Junho. As inspecções conjuntas destinadas a garantir que os navios transportam apenas cereais (e não armas) também abrandaram consideravelmente.

Questionado na segunda-feira sobre se o ataque a uma ponte que liga a península da Crimeia à Rússia foi um factor na decisão sobre o acordo de cereais, o porta-voz do Kremlin disse que não foi esse o caso.

Entretanto, os carregamentos de trigo da Rússia atingiram máximos históricos na sequência de uma grande colheita. O país exportou 45,5 milhões de toneladas no ano comercial de 2022-2023, com outro recorde de 47,5 milhões de toneladas esperado em 2023-2024, de acordo com estimativas do Departamento de Agricultura dos EUA.