“Muita da história da humanidade tem consistido em lutas desiguais entre aqueles que têm e aqueles que não têm.”
Jared Diamond

 

Antes de tudo o mais, convém alertar a audiência para o facto de que a obra em causa valeu ao seu autor o prémio Pullitzer para a edição não ficcional de 1998, o que não é dizer pouco. Jared Diamond é uma estrela: fisiologista de formação inicial, é hoje aclamado como um dos grandes geógrafos da América, disciplina de que é professor catedrático na Universidade da Califórnia. O incansável professor, vencedor da National Medal of Science em 1999, acumula títulos académicos e honoríficos em áreas tão distintas como a história, a antropologia, a filologia e a ornitologia, atribuídos por algumas das universidades mais respeitadas do mundo, a saber: Harvard, Cambridge, Westfield e Trinity.

Acresce que o autor é mais que um académico. Como parte do processo para chegar ao Olimpo da comunidade científica internacional, passou qualquer coisa como seis meses por ano, durante cerca de três décadas, na Nova Guiné, inserido numa comunidade tribal e assumindo em larga parte o estilo de vida dos nativos. Como se não bastasse, parece que é também um muito competente pianista.

Jared Diamond tem-se destacado sobretudo por defender que o destino da humanidade está intimamente ligado à relação que mantém com o ambiente, tese de que o seu “Colapso”, de 2005 (1), é o apogeu e de que este “Armas Germes e Aço – Os Destinos das Sociedades Humanas” (Temas e Debates, 2015) é a obra iniciática.

Será também preciso contextualizar politicamente o leitor: a visão de Jared Diamond sobre a evolução humana sustenta, desde os anos noventa, todo um aparelho ideológico a que hoje, já estafadamente, chamamos “políticamente correcto”. “Armas, Germes e Aço” foi editado nos Estados Unidos em 1996 (com revisão de 2003 na edição da Temas e Debates) e tem como motor de arranque uma pergunta difícil: porque se desenvolveram as sociedades humanas em ritmos desiguais nos diferentes continentes? Ora, se encontrarmos uma resposta para esta pergunta que não passe pelas diferenças entre os povos mas por divergências profundas nas condições geográficas e ambientais de cada região, estaremos a invalidar qualquer tese que tente demonstrar que existem factores genéticos que possibilitam ou dificultam o progresso e, logo, a combater qualquer eugenia pós-moderna que sustente teorias de ordem rácica.

É claro que esta tendência para a equalização genética tem invariavelmente implicações na qualidade científica do discurso, e resulta num inevitável decaimento da objectividade, decorrente dos complexos de culpa relacionados com o fardo do homem branco ocidental, que são evidentes logo na página 19, quando o autor afirma com uma convicção exclamativa que os “modernos povos da “idade da pedra” são provavelmente, na média, mais inteligentes – e não menos! – que os povos industrializados.”

Isto porque, segundo o autor, os neoguineenses são mais atentos e mais interessados nas pessoas e nas coisas à sua volta. Não é preciso ser um génio para concluir que talvez essa característica se deva precisamente às diferentes condições ambientais e sociais que rodeiam o nativo da Papua e o natural de Nova Iorque, e não tanto à inteligência dos dois (quem vive numa cidade pode dar-se ao luxo de ser um pouco mais distraído, de ser um pouco mais individualista, do que quem vive numa selva tropical, vulnerável às mais que muitas ameaças da natureza e dependente da eficiência grupal), mas o proselitismo de Jared Diamond só reconhece o valor do argumento ambiental quando este lhe serve a filosofia.

A estranha antipatia que o autor nutre pela civilização ocidental é, aliás, imanente em toda a obra. No célebre encontro entre Pizarro e o imperador Inca Atahualpa, que Diamond refere algo sensacionalisticamente como o momento mais importante da história da humanidade, os espanhóis são classificados como “assassinos portadores de doenças assassinas”. Ora, há que dizer em abono da verdade que os espanhóis não transportavam os seus germes com a consciência de os utilizarem de forma bélica, e que os incas teriam provavelmente a mesma sede assassina, conforme demonstram inúmeros dados arqueológicos e os próprios relatos da guerra civil com que se debatiam à data da chegada de Pizarro.

O argumento que as doenças endémicas deram uma vantagem militar significativa aos conquistadores europeus nas américas é inquestionável, como é óbvio. Mas, como o autor reconhece, a maior parte destas doenças chegaram à Europa vindas do oriente. A peste negra, por exemplo, foi disseminada no ocidente pelos exércitos de Genghis Khan, o mais feroz e bem-sucedido conquistador da história da humanidade (2), que é, muito convenientemente, ignorado pelo Professor da UCLA. A Peste Negra demonstra que a Europa não só foi agressora através das patologias endémicas como também foi vítima delas, o que invalida a tese de que o seu avanço tecnológico e civilizacional se deve, de forma significativa, às doenças que os seus povos transportavam através dos oceanos.

Mais a mais, o autor omite situações de contágio análogas que aconteceram inevitavelmente quando os árabes invadiram o norte de África a partir da baixa idade média ou quando, no início do século XV, a maior armada construída até essa data, levou os chineses à colonização de várias regiões costeiras da África oriental.

Seja como for e maniqueísmos à parte, estamos perante um projecto de divulgação científica de amplo espectro, só possível dada a erudição do autor. A imensa complexidade do tema é evidente e as variáveis que coloca em jogo são assustadoras. Neste tratado de 500 páginas somos confrontados com saber perito e detalhado em geografia, história, arqueologia, antropologia, medicina, paleontologia, biologia, agronomia, botânica, ecologia, tecnologia, filologia, etc., etc., etc.

A título de exemplo, o trabalho desenvolvido no que diz respeito à domesticação de espécies vegetais e animais é absolutamente exaustivo, às vezes quase aborrecido. Nesta obra ficamos até a saber que, se o homem não domesticou a Chita, tal facto se deve aos hábitos sexuais deste animal, que implicam a errância em amplas áreas territoriais.

A extrema complexidade do assunto leva por vezes a certos e inevitáveis facilitismos. A páginas tantas do capítulo 10, Jared Diamond tenta convencer-nos de que os problemas da África do Sul contemporânea decorrem, por maioria de razão e quase exclusivamente, da configuração geográfica do continente africano. Esta resposta simples para uma questão complicada não define, de todo, o incrível trabalho de pesquisa e reflexão do autor, nem diminui a sua monstruosa erudição, mas não deixa de ser importante para uma análise objectiva do resultado final. Este capítulo é aliás, talvez, o mais polémico de toda a obra, já que nele o autor justifica muito da evolução humana através de critérios meramente geográficos e geográficos no sentido mais estrito da palavra: a sua tese da influência dos eixos continentais na evolução das civilizações propõe que os povos da Eurásia progrediram civilizacional e tecnologicamente de forma mais célere que os dos outros continentes porque a Eurásia é o continente com maior extensão territorial, orientada num eixo leste oeste e por isso dentro de latitudes mais ou menos constantes, que correspondem a climas amenos, adaptados à actividade agrícola. Não é que este facto não seja verdadeiro, porque o é, mas o autor opta por ignorar as barreiras geográficas que separam a Europa da Ásia (mares, estreitos, desertos, estepes geladas e as mais pronunciadas cadeias montanhosas do planeta), enquanto decide valorizar o mesmo género de circunstâncias em África, justificando muito do atraso civilizacional dos povos austrais através da barreira natural criada entre o norte e o sul do continente pelo deserto e pela selva tropical.

Há, claro, passagens brilhantes, simultaneamente densas e dramáticas, como o relato da “Guerra dos Mosquetes” que levou à chacina perpetrada pelos Maoris sobre os Marioris, povos vizinhos das ilhas Chattam, um arquipélago situado a 800 quilómetros a este da Nova Zelândia. Apesar da proximidade entre as duas tribos, estas nunca trocaram conhecimentos e tecnologias, tendo sido relativamente fácil aos agricultores Maoris, produtores de excedentes agrícolas que permitiam alguma especialização de funções sociais, criar um exército que no espaço de alguns meses exterminou a população Mariori não especializada de caçadores-recolectores. Este episódio é um verdadeiro case study para o argumento fundamental de Jared Diamond: a geografia e a ecologia determinam a passagem para a agricultura e a pecuária. Estas actividades possibilitam a sedentarização, que traz condições para a divisão social do trabalho e consequente indústria do aço e da guerra, a acumulação dos germes (provenientes do gado), a invenção ou implementação da escrita, a centralização política e religiosa e a complexidade social, que advém da massa crítica demográfica.

Como o texto foi escrito em 1996 e revisto em 2003, percebe-se que o autor defenda que é a agricultura que promove a sedentarização e que é esta circunstância que dá à necessidade de transcendência, própria da natureza humana, condições para o exercício ritual da religião. Dados arqueológicos mais recentes, porém, indicam que, pelo menos em certos casos, como em Göbekli Tepe (3), na Turquia, foi o inverso que sucedeu: a necessidade de alimentar milhares de peregrinos que se dirigiam a locais sagrados deu um primeiro impulso à agricultura e à sedentarização.

Ainda assim, Jared Diamond é Jared Diamond e o leitor nunca se vai arrepender da leitura a que se propôs. Senhor de um profundo conhecimento da história da tecnologia humana, redige, nos interstícios desta obra, toda uma nova versão do engenho humano. Aprendemos com ele, por exemplo, que o teclado QWERTY que usamos hoje nos nossos computadores é ineficiente no que respeita à escrita do alfabeto romano, decorrendo ao invés de um glitch técnico detectado por um dos principais fabricantes de máquinas de escrever, no princípio do século XX. E esqueça tudo o que sabe sobre os inventores: Gutenberg não inventou a imprensa, que foi na verdade engendrada por volta de 1700 A.C.; James Watt não inventou a máquina a vapor e não foi na verdade Thomas Edison que fez luz com uma válvula. Aliás, para o autor, ninguém de facto inventou coisa nenhuma. Homens com inventiva há em todo o lado, só que uns têm mais condições sociais, culturais, técnicas e de mercado para aproveitarem o conhecimento disponível num determinado momento do que outros. Este discurso estende-se, claro, para outras áreas da actividade humana. A história segundo Diamond não tem heróis. Ou melhor: somos todos heróis em potência e tudo depende da geografia e da ecologia para realizarmos esse potencial. A única vez que se refere ao papel dos grandes vultos da humanidade estamos já a 7 páginas do fim do livro, e a referência não dura mais que dois curtos parágrafos.

Isto apesar de Jared Diamond ser um humanista fanático. Sente-se um carinho enorme do autor pelo ser humano, especialmente o ser humano que não nasceu na Europa ou nos Estados Unidos. Isto embora se deva dizer que este alegre humanismo deixa muitas vezes o autor em maus lençóis, dada a tendência que os seres humanos têm para se chacinarem uns aos outros, como ele próprio report, e com mestria, em muitos dos 20 capítulos do seu livro. Um dos pontos fortes deste enciclopédico texto é precisamente a lucidez com que Diamond relata e analisa a forma como os povos colidem e as sociedades mais fortes tecnologicamente absorvem ou esmagam as sociedades menos evoluídas, num processo predatório que respeita em absoluto as leis da selecção natural e da sobrevivência do mais forte.

A erudição do bom professor permite-lhe ir longe nas conclusões que tira de um cruzamento difícil entre a arqueologia e a filologia, nos capítulos 16, 17 e 19, e o seu vasto conhecimento de todas as matérias específicas que estão em jogo reduzem os riscos do determinismo geográfico que advoga e valem por si só a leitura da obra. No final, percebemos que a tese que defende, sendo discutível, está convenientemente apoiada por um largo conjunto de evidências históricas e científicas.

Assim, na perspectiva do respeitável autor, a evolução humana dependeu nos últimos 11 milénios (altura em que as sociedades começaram a divergir na sua organização funcional), de quatro eixos fundamentais: diferenças continentais nas espécies selvagens de plantas e animais disponíveis para a domesticação, que condicionaram o acesso à produção de excedentes alimentares; os diferentes ritmos de migração de povos e difusão de conhecimentos nas várias regiões do planeta; a localização dos continentes e a natureza dos seus eixos de desenvolvimento; e, por último, a relação entre as áreas continentais e as suas realidades demográficas.

O leitor deve, no entanto, manter o espírito crítico. Esta não é a única tese válida sobre o assunto. Por exemplo, Daron Acemoglu e James A. Robinson, dois académicos do MIT e de Harvard, respectivamente, defenderam recentemente (4) que o sucesso e o falhanço das nações assenta numa premissa de grande simplicidade: as nações triunfam quando apresentam estruturas inclusivas (leia-se, estruturas de estado de direito, democrático, semi-liberal, que premeiam o investimento e o mérito e que permitem a mobilidade social e a distribuição do rendimento pelas diversas classes sociais) e as nações que fracassam apresentam estruturas extractivas (repúblicas totalitárias, monarquias absolutistas, estados de feudo tribal, unidades geopolíticas não centralizadas, etc., cujos motores económicos são constituídos para promover os ganhos das elites oligárquicas). Esta tese alternativa, se bem que reduzida aos últimos séculos da história, foi também aclamada pelo meio académico internacional.

Talvez o mais famoso biólogo vivo, Edward O. Wilson, editou também muito recentemente uma teoria alternativa para a evolução humana (5). O extenso estudo de campo que o aclamado professor de Harvard desenvolveu com as formigas eusociais (organizadas em grupos pela divisão altruísta do trabalho), permitiu-lhe apresentar argumentos concludentes que sustentam a sua arrojada tese evolucionista: a selecção natural premeia a complexidade social, sendo esta determinante na equação da origem das espécies e da evolução das sociedades humanas.

Num trabalho que é referido no seu posfácio de 2003, o próprio Jared Diamond menciona uma outra tese de Jack Goldstone que destaca a importância da “ciência dos motores”(6) e do aproveitamento eficiente da energia para o desenvolvimento das sociedades. Esta tese, embora muito focada nos casos britânico e europeus, “revela que o desenvolvimento da ciência dos motores poderá ter sido o resultado casual de circunstâncias específicas, extremamente contingentes que por acaso surgiram na Grâ-Bretanha seiscentista e setecentista”. Jared Diamond reconhece que, se o raciocínio do seu colega estiver correcto, a “busca de explicações geográficas ou ecológicas profundas não valerá de nada.”

Ao determinismo geográfico, opõe-se também um notável trabalho de história contrafactual coordenado por Niall Ferguson (7), que explora a probabilidade de certos episódios históricos com grande peso epistemológico não terem sucedido de todo, ou terem sucedido de forma diversa. A história é muitas vezes contingencial e muito menos determinista do que somos levados a pensar e nem tudo no registo da actividade humana teria necessariamente que ocorrer como ocorreu… Por exemplo, teriam os mongóis imperado na Eurásia não fora a tenacidade – e a crueldade – de Genghis? A verdade é que nenhum dos seus filhos conseguiu manter o império na sua integridade. E o mesmo, claro está, poderíamos dizer sobre Alexandre. E se Júlio César tivesse respeitado a tradição secular de deixar o exército no lado norte do Rubicão? Que consequências teria esse gesto avisado no mundo de hoje? Que século XX teríamos se Gravillo Princip não decidisse prosseguir com o assassinato do Arquiduque Franz Ferdinand, mesmo depois do plano inicial ter abortado? E se o atentado de 20 de julho de 1944 tivesse vitimado Hitler fatalmente? Como seria a geografia política da Europa contemporânea?

Por outro lado, há também factores de ordem sociológica que não são inteiramente abordados nesta obra. A queda do império romano às mãos dos “bárbaros” do norte da Europa e a rendição do império chinês ao ímpeto dos mongóis do norte da Ásia não se explicam à luz das conclusões deste trabalho, mas têm inegáveis raízes de ordem social que não podem ser ignoradas.

A anulação do papel arbitrário e caótico do génio individual e das dinâmicas sociais no entendimento da evolução humana é arriscado, mas também é verdade, como advoga Diamond, que ao cientista cabe determinar o que é acessível à ciência e que os factores indetermináveis devem ser postos de parte. Por outro lado, esses factores podem alterar e frequentemente alteram o curso dos acontecimentos. É um dilema difícil de resolver, aquele com que o autor termina a sua obra, embora o faça com optimismo no rigor metodológico das ciências humanas e no seu potencial como disciplinas que possibilitam entender as circunstâncias que deram forma à modernidade, para uma edificação mais consciente das estruturas do futuro.

 

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(1) – Colapso – Ascensão e Queda das Sociedades Humanas – Jared Diamond – Gradiva – 2006
(2) – O Grande Livro das Coisas Horríveis – Mathew White – Texto Editora – 2011
(3) – Göbekli Tepe – The Birth of Religion – Charles C. Mann – National Geographic – Junho 2011
(4) – Porque Falham as Nações – Daron Acemoglu e James A. Robinson – Circulo de Leitores – 2012
(5) – A Conquista da Terra – A Nova História da Evolução Humana – Edward O. Wilson – Clube do Autor – 2013
(6) – Why Europe? The Rise of the West in World History -1500-1850
(7) – História Virtual – Niall Ferguson (Coord.) – Tinta da China – 2006
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Este texto foi originalmente publicado a 14/04/15 no website Deus Me Livro