O estoicismo e a natureza do poder.
Porque valorizamos coisas que não podemos controlar, essas coisas que valorizamos controlam-nos e o poder é essa capacidade de controlo sobre o que valorizamos. Se damos valor ao dinheiro, qualquer pessoa ou entidade que o possa fornecer detém poder sobre nós. Se valorizamos o elogio, procurá-lo-emos com todas as nossas acções e ficaremos dependentes das opiniões dos outros. Qualquer pessoa ou qualquer coisa que nos possa dar ou tirar aquilo que valorizamos tem o poder de nos controlar. Somos incapazes de viver a vida nos nossos próprios termos porque o nosso comportamento é continuamente influenciado por outras pessoas e acontecimentos. Somos escravos de quem quer que controle aquilo com que nos preocupamos. Assim, o segredo para nos libertarmos da influência de qualquer tirania é valorizar aquilo que podemos controlar mais do que valorizar aquilo que não podemos. A filosofia estoica ensina-nos um método para essa libertação. Os estoicos estão livres de qualquer tipo de influência e poder, porque valorizam acima de tudo algo que só eles podem controlar: o seu carácter:
“O que assusta as pessoas e as mantém subjugadas? Não pode ser o tirano e os seus guarda-costas; os próprios pensamentos de uma pessoa desencorajam-na. Se um tirano ameaçar acorrentar a nossa perna, quem quer que tenha a sua perna em alta consideração implorará por misericórdia, enquanto que a pessoa que se preocupa mais com o seu carácter responderá: Vai em frente e acorrenta-a, se é isso que queres.”
Epicteto . Discursos IV, 1
Epicteto (50 d.C. – ??) foi um filósofo grego estoico que viveu a maior parte de sua vida em Roma, como escravo. A sua vida é pouco conhecida e não deixou nenhum trabalho escrito de sua autoria. O seu discípulo Lúcio Flávio Arriano de Nicomédia assegurou a transmissão da sua obra, publicando as notas tomadas durante as aulas do mestre, em oito livros, metade dos quais já perdidos. O “Manual de Epicteto” e os “Discursos” tiveram influência sobre o imperador Marco Aurélio e vários autores do Renascimento. É sobre os ensinamentos desta última obra que este artigo se debruça.
O Poder do carácter.
A pessoa que se preocupa mais do que tudo com o seu carácter não pode ser coagida a agir contra a sua vontade. O carácter é a verdadeira medida do indivíduo e nada pode realizar o que um carácter forte pode. Sócrates enfrentou a sua morte sem preocupação e sem trair a própria filosofia que o tinha condenado, e ao fazê-lo, tem servido a humanidade com a sua sabedoria, nos últimos vinte e três séculos. Diógenes, que nada mais desejava senão preservar a verdade do seu espírito, podia agir e falar sem medo na frente de Alexandre o Grande, e chegou mesmo a ganhar a sua admiração.
O carácter é, sem qualquer dúvida, o maior bem de uma pessoa. Mas como podemos realmente começar a valorizá-lo acima do que nos preocupamos com outras coisas? A fama, a riqueza e o estatuto têm um apelo muito forte. Fundamentalmente, preocupamo-nos com as coisas porque elas são úteis, agradáveis, ou valiosas de alguma forma. Por isso, temos de compreender como o foco no nosso carácter é ainda mais valioso do que qualquer outra coisa. Temos de compreender os benefícios de fazer do carácter a nossa principal prioridade.
Encontrar a liberdade.
Ao valorizarmos o nosso carácter acima de tudo, ganhamos liberdade, uma vez que deixamos de querer coisas que os outros controlam. As nossas escolhas conduzem o nosso comportamento, o nosso comportamento torna-se rotineiro e os nossos hábitos constroem e influenciam o nosso carácter. Assim, preservar o carácter é uma escolha que podemos fazer a qualquer momento, e nada se pode intrometer no seu caminho.
“Tenham confiança em tudo o que está fora da vontade, e sejam cautelosos em tudo o que está sob o controlo da vontade. Pois se o mal é uma questão de vontade, então é necessário cautela; e se tudo o que está fora da vontade e não sob o nosso controlo é irrelevante para nós, então essas coisas podem ser abordadas com confiança”.
Epicteto; Discursos II, 1
Ao abordarmos com cautela as nossas escolhas, podemos estar confiantes nas variáveis que nos são exteriores, uma vez que não só estão fora do nosso controlo, como também são insignificantes para nós. Tornamo-nos livres e tranquilos; nenhum acontecimento será capaz de nos perturbar.
Encontrar a força.
Se soubermos focar o pensamento e a acção no nosso carácter seremos mais fortes. Ao valorizarmos o carácter acima de tudo, preocupamo-nos com as escolhas que fazemos numa situação e não com a situação em si. Portanto, quer estejamos perante dificuldades ou experimentando a prosperidade, não valorizamos o que temos ou o que podemos obter, mas sim como agimos e respondemos a cada situação.
“A morte não deve ser temida, mas morrer como um cobarde deve.”
Epicteto; Discursos
O foco aqui não está nas circunstâncias em si, mas na forma como respondemos a elas. Quando nos preocupamos com as nossas escolhas e carácter, as circunstâncias tornam-se irrelevantes para nós; preocupamo-nos apenas com a forma como respondemos a elas. Em vez de nos sentirmos feridos pelas circunstâncias, mantemos a nossa integridade e compostura. Não só seremos capazes de enfrentar a vida e as suas dificuldades com sensatez e equilíbrio moral, como também encontraremos grande satisfação em fazê-lo.
Recuperar o Poder.
Uma outra vantagem de preservar os fundamentos da nossa índole é que invertemos a dinâmica do poder. Qualquer pessoa que tente exercer influência sobre nós falhará inevitavelmente, a menos que concordemos com tal pessoa por nossa própria vontade. Alguém que seja extorquido por um tirano com promessas ou ameaças não só ficará livre do poder do tirano, mas tornar-se-á ele próprio o poderoso, pois o tirano é incapaz de o controlar.
“Se um tirano me ameaça em tribunal, eu digo: ‘O que é que ele ameaça? Se ele diz, ‘Vou acorrentar-te’, eu digo, ‘Ele está a ameaçar as minhas mãos e os meus pés’. Se ele disser, ‘decapitar-te-ei,’. Eu digo: ‘Ele está a ameaçar-me o pescoço’. Se ele diz, ‘Vou atirar-te para a prisão’, eu digo, ‘Ele está a ameaçar todo o meu corpo’. Se ele ameaça o exílio, eu digo o mesmo. ‘Bem, então, não será a minha vida um pouco ameaçada?’ Se eu sinto que essas coisas não são nada para mim, não. Mas se temo por alguma delas, então sim, sou eu que sou ameaçado. Quem me resta temer, e o que é que ele controla? Não o que está em meu poder, porque ninguém controla isso, excepto eu próprio. Quanto ao que não está no meu poder, não me interessa”
Epicteto; Discursos I, 29
Ao salvaguardarmos as nossas escolhas e carácter, ganhamos de novo poder sobre a vida. Nada nem ninguém é capaz de influenciar o nosso comportamento. Só nós temos esse privilégio.
Poder para oferecer.
Há uma última variável a considerar quando se analisa a razão pela qual as nossas escolhas e carácter são mais valiosas do que qualquer outra coisa. As nossas escolhas – o que pensamos, fazemos e dizemos – têm o poder de afectar o mundo. A razão última pela qual os estoicos se concentram no que podem controlar é a de contribuir para algo que importa e melhorar a vida de alguma forma. Enquanto a maioria das pessoas que perseguem coisas como riqueza, fama ou sexo estão preocupadas em ganhar alguma coisa; mas os estoicos mantêm o seu foco no que podem oferecer. Tudo o que desejam obter – isto é, o florescimento do seu carácter – obtêm-no de si próprios. É isto que torna os estoicos tão fortes, livres, e poderosos. O seu desinteresse pelas coisas externas leva-os a encontrar dentro de si tudo o que precisam para viverem uma vida plena.
Conclusão: liberdade para transcender as contingências da existência material.
Quando começamos a viver livres da influência que o mundo exerce sobre a maioria das pessoas, experimentamos a existência nos nossos próprios termos, ganhamos a capacidade de enfrentar as dificuldades com compostura e conseguimos manter o foco no que realmente importa, contribuindo para algo mais valioso que o simples trajecto do indivíduo e das suas vontades egotistas. Tornamo-nos assim intocáveis e imparáveis, porque o nosso carácter é o bem mais valioso. Dá-nos mais do que qualquer riqueza material, fama ou prestígio alguma vez podem oferecer: dá-nos significado e transcendência.
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