Breve introdução à Universidade de Michael Sugrue.
A World Wide Web é como tudo na vida: tem de péssimo tanto como de magnífico. De péssimo, as redes sociais, que nos escravizam ao ódio e à vaidade, que nos conduzem à vacuidade de tudo e às sobredoses de informação e às subdoses de verdade. A pornografia massificada, material ou imaterial, a invasão sobre a privacidade individual e a monitorização dos comportamentos, o controlo social e a crescente pressão sobre a liberdade do pensamento e do discurso. Os telemóveis espertos e a trans-humanização das telecomunicações, que hoje são como que um complemento biológico do ser humano. Entre outros pesadelos.
Mas do outro lado da moeda, a rede digital que nos atira uns contra os outros também oferece um revolucionário acesso ao conhecimento e nisso é de facto um instrumento de incomparável significado histórico e epistemológico. É hoje possível assistirmos, sem nos endividarmos para a vida toda, às aulas de um curso de Física em Berkeley, ou de Literatura em Princeton, ou de Filosofia em Oxford. Sem sairmos de casa, somos elevados ao privilégio de testemunhar a oratória dos grandes professores e académicos das últimas duas ou três gerações: Feynman, Penrose, Peterson, Swinburne, Holmes vivem online e ensinam-nos a civilização, se os quisermos ouvir.
Sendo o ContraCultura um media que procura fugir às convenções e às referências mainstream, a série de artigos que agora se inicia é centrada nas lições de literatura e filosofia de Michael Sugrue, um professor brilhante, mas obscuro, quando leccionava um curso sobre as grandes referências da cultura ocidental, nas Universidades de Columbia e de Princeton, no princípio dos anos noventa do século passado.
A oratória de Sugrue é pungente e contagiante. O seu estilo apaixonado e vivaz contrasta com o fôlego intelectual, a profundidade da análise e a mestria com que domina e cruza os objectos do seu estudo. Ainda assim, talvez por ser um académico conservador, que nunca procurou o carreirismo académico ou o protagonismo mediático e sempre foi fiel à sua pura missão de ensinar; talvez porque fez a maior parte da sua carreira num universidade católica que não faz parte do restrito e pedante clube da Ivy Leage – a Ave Maria University of Florida – este professor de sonho nem uma página na Wikipedia merece e se excluirmos os seus antigos alunos e os 100.000 subscritores do seu canal no Youtube, é um perfeito desconhecido.
Esse desconhecimento é um crime que o ContraCultura quer, na sua comedida escala, combater. Bem-vindos portanto à Universidade de Michael Sugrue. Uma academia alternativa, para mentes curiosas e espíritos livres.
Marco Aurélio ou o oráculo de Platão
“A essência da grandiosidade é a percepção de que a virtude é suficiente.”
Ralph Waldo Emerson
“Aquilo que não tem utilidade para o enxame não é útil à abelha.”
Marco Aurélio . Meditações, VI, 54
Imagina, criativo leitor, que tens todo o poder do mundo conhecido. Todas as riquezas podem ser tuas. Tudo o que desejas será colocado a teus pés, num estalar dos dedos. Imagina que és um imperador romano, no apogeu do domínio militar, cultural e territorial do império.
O que é que achas que vai acontecer com a tua alma, rapidamente?
Se é verdade que o poder absoluto corrompe absolutamente, também não é mentira nenhuma que a excepção é Marco Aurélio (121-180 D.C.). Único imperador filósofo, no sentido platónico, da história da humanidade, o último dos Antoninos viveu de acordo com os princípios estoicos que defendia. Durante os intermináveis 19 anos do seu mandato absolutista, resistiu com bravura a todas as tentações. Foi frugal, quando vivia na opulência; foi justo, quando podia ser iníquo; foi racional, quando era fácil deixar-se levar pelas emoções; foi constante, quando podia ser temperamental; foi virtuoso, por entre a corrupção generalizada.
Seguiu invariavelmente as suas próprias máximas morais: preocupa-te com o que controlas, não te aflijas com aquilo que sai fora da tua esfera. Nada temas porque, independentemente do que faças, as forças do destino ultrapassam largamente a tua capacidade operacional. Sê resiliente e tolerante com a condição humana. Aceita a desgraça, a doença, o sofrimento, a morte, como leis naturais e inescapáveis da vida, contra as quais és impotente. Concentra-te no que podes fazer pela salvação da tua alma e pela edificação do bem geral, em cada dia.
“A injustiça é um pecado. A Natureza constituiu seres racionais para seu próprio e mútuo benefício, cada um ajudando os seus semelhantes de acordo com o seu valor, e não há bom senso em fazê-los sofrer, e antagonizá-La é claramente pecar contra, entre todas, as mais venerandas divindades.”
Para Marco Aurélio, acabar por ser o sumo pontífice do maior império da antiguidade clássica não foi um triunfo, mas um infortúnio. Teve o azar de ter que lidar com uma corte de militares ambiciosos, aristocratas conspiradores, senadores egotistas e familiares invejosos. Aconteceu-lhe esta desgraça de ter poder sobre a morte e a vida de milhões de seres humanos. Pesou-lhe a responsabilidade de liderar, de legislar, de mobilizar, de fazer a guerra ou a paz, de construir ou destruir, num quadro em que cada decisão teria inevitavelmente consequências transcendentes. Por isso, sofreu a bom sofrer e conseguimos perceber nas páginas do seu filosófico testamento, as “Meditações”, que travava uma quotidiana batalha interior, de forma a permanecer íntegro, equidistante e sobretudo, ético.
“O que fazemos em vida, ecoa na eternidade.”
Aprisionado na cela da solidão definitiva que todos os grandes reis experimentam, as “Meditações” servem como um diálogo que mantém de si para si (como nunca titulou a sua obra, nas primeiras edições o livro circulou como “Os Escritos de Marco Para Si Mesmo”). Uma forma de se obrigar a ser dialéctico e correcto e humilde, um lembrete de que deve viver de acordo com as suas mais elevadas e exigentes convicções, como Platão não se cansou de recomendar. Marco Aurélio sabia bem que era da elevação do seu espírito que dependia a sanidade da sua existência e da existência dos seus súbditos.
“A felicidade da tua vida depende da qualidade dos teus pensamentos.”
Com o inexorável passar dos séculos, o mais lúcido e digno dos Antoninos transformou-se num símbolo da filosofia práctica, concreta, que anseia por virtudes imediatas que são acessíveis a todos os seres humanos e não apenas aos génios ou aos profetas. O estoico não precisa de ser como Sócrates. E como não anseia pela santidade nem pela perfeição, não tem desculpa para a indulgência. Dadas as contingências da existência, todos sofremos. Mas nem todos temos que nos lamentar da nossa sorte. Todos morremos, mas nem todos morremos a chorar pela vida.
Quem tem um mínimo interesse em História e Filosofia vai certamente apreciar esta épica, entretida e articulada palestra do Professor Michael Sugrue, dedicada a Marco Aurélio e à obra prima que escreveu para si próprio.
Quem não tem interesse nestas matérias, pode ir ver o telejornal.
Relacionados
5 Out 24
Diógenes Laércio e o elo sagrado entre a filosofia e a religião.
Como os gregos antigos, também os cristãos modernos não devem separar a religião da filosofia, porque o campo divino é racional e a consciência moral provém da sabedoria.
18 Set 24
O Eclipse da Razão,
de Max Horkheimer
Contrariando o iluminismo, o empirismo, o marxismo e qualquer tentativa de economia intelectual, Horkheimer desconstrói e dessacraliza dogmas caros à filosofia, à sociologia e à ciência política do Século XX. Um livro escrito noutro contexto histórico, para ler agora.
7 Set 24
Ética e Educação
A missão principal do professor, que é tanto ética como política, é a de ajudar os seus estudantes a fazer opções conscientes no umbral do “jardim dos caminhos que se bifurcam”. Um ensaio de Bruno Santos.
6 Set 24
Sexo, ciência & satanismo: Jack Parsons e as origens ocultas da NASA.
Jack Parsons, o homem que fez dos foguetões uma realidade e co-fundou o Laboratório de Propulsão a Jacto da NASA, era um excêntrico satanista, que se entregava a rituais orgíacos, magia negra e toda a espécie de ocultismos ensandecidos. Este é a sua história.
30 Ago 24
Ser moral é uma escolha.
Paulo H. Santos conclui que a recusa da moral cristã no Ocidente, é também a decisão de restringir a experiência da realidade histórica. Como testemunhamos nos tempos que correm, o preço a pagar por essa recusa e por essa decisão é excessivamente alto.
21 Ago 24
Sobre as origens do mal:
O caso brasileiro.
Na estreia da sua colaboração com o ContraCultura, Walter Biancardine procura na história do Brasil as origens dos seus males de agora, num breve ensaio de luminosa profundidade.