Influenciado inicialmente pelo pensamento de Schopenhauer e incondicional admirador do trabalho de Karl Marx, Max Horkheimer (1895-1973) levantou nos anos 30 – na companhia de outras grandes figuras da filosofia do seu tempo, como T. W. Adorno, Erich Fromm, Leo Lowenthal e Walter Benjamin – um importante legado do pensamento filosófico do Século XX, que hoje conhecemos por Escola de Frankfurt e que, rejeitando o pensamento liberal e pragmático de algumas escolas ocidentais, bem como a instrumentalização do pensamento marxista levada a cabo pelos sovietes, propunha o estabelecimento de um novo paradigma para a filosofia social baseado na teoria crítica.
Sustentando a sua lógica desconstrutiva na sociologia anti-positivista, na psicanálise e no existencialismo, os teóricos de Frankfurt propunham uma abordagem que partia do método marxista para uma aventura interdisciplinar que procurava contrariar a razão instrumental através do uso da razão crítica.
Porém, o legado deste escola de pensamento é, feitas as contas, bastante sinistro, já que está na origem da programação ideológica de extrema-esquerda das maior parte das universidades contemporâneas ocidentais e é um alicerce teórico do pós-modernismo, que arruinou as artes.
Ainda assim, porque convém conhecermos bem os nossos inimigos, e porque a obra de Horkheimer tem particularidades interessantes e, a espaços, singulares, vale a pena perscrutar o o seu pensamento.
Publicado em 1947 – a partir de um conjunto de palestras dadas em 1944 na Universidade de Columbia -, “O Eclipse da Razão” (Antígona, 2015) é fruto, também, de um natural pessimismo decorrente dos horrores da II Guerra Mundial, da prevalência de estados totalitários na Europa continental e do capitalismo anglo-saxónico, de que o autor era feroz antagonista. Este infeliz conjunto de circunstâncias dever-se-ia, para os filósofos de Frankfurt, à crise da razão, que teria sido sujeita, desde o seu estado virtuoso na antiguidade clássica, a sucessivos graus de subjectivação e formalização.
Logo no arranque do primeiro capítulo, Max Horkheimer define e separa a razão objectiva, que diz respeito ao interesse social e que advém de Platão, à razão subjectiva, que se refere ao interesse individual e que, tendo raízes na escolástica aristotélica, ganhou um novo impulso com os valores e as conquistas do Iluminismo e do progresso técnico.
Neste aspecto a obra ganha profundidade, já que o pensamento do autor é deveras original e bastante lúcido. Para dar um breve exemplo das conclusões verdadeiramente alternativas de Horkheimer, a vertente laica do Iluminismo é abordada nestes termos:
«Os filósofos do Iluminismo atacaram a religião em nome da razão mas no fim de contas o que mataram não foi a igreja mas a metafísica e o próprio conceito objectivo de razão.»
De facto, acreditando no filósofo alemão, a economia intelectual decorrente do Iluminismo e do empirismo, que leva à categorização e abstração do indivíduo (fenómenos a que ainda hoje assistimos pela rotulagem imediatista a que os oráculos do programas noticiosos submetem os sujeitos das reportagens – fulano tal é “vítima”; beltrano é “agressor”; cicrano é “desempregado”, etc.), essa economia intelectual é um facilitismo intolerável, que desvaloriza a razão em função das pseudo-virtudes da experiência e do senso comum, ao qual o autor declara guerra. Contrariando teóricos como Heidegger, Gadamer e Chesterton no que respeita à valorização do senso comum e o empirismo britânico de John Locke, Francis Bacon e David Hume, Horkheimer desconstrói e dessacraliza, nas densas e veementes páginas deste livro, muitos dos princípios mais caros à civilização ocidental.
As democracias da sua época, por exemplo, por se encontrarem dependentes da demagogia dos seus líderes políticos e do mandato opressor dos interesses económicos, não oferecem na verdade qualquer garantia contra a tirania. A maioria democrática não é racional, muito simplesmente porque há uma diferença imensa entre o que as pessoas querem e o que é melhor para elas. Neste contexto, as palavras de Horkheimer podem na verdade servir os actuais argumentos globalistas (as pessoas não sabem o que é melhor para elas), mas também favorecer as teses populistas (as democracias dirigidas por líderes políticos ambiciosos e desonestos e mergulhadas no capitalismo corporativo não oferecem qualquer garantia contra a tirania).
Sintomático manifesto da decadência da razão é o facto de a arte se ter transformado, para Max Horkheimer, numa mercadoria cultural. Até a Eroica de Beethoven é consumida pelas massas como «sinfonia de museu» ou, diríamos nós nos dias de hoje, produto de stream, desprovida já do seu fundamental contexto político e social.
A capacidade da Ciência para gerar verdades filosóficas – que, para o Director do famoso (ou infame) Institut für Sozialforschung, são as únicas possíveis – também é posta em causa. A verdade científica, laboratorial e empírica está para além ou muito aquém dos absolutos do pensamento racional e, ao contrário do que nos querem fazer querer os tecnocratas, a ciência não é apenas destrutiva quando é desvirtuada. A deontologia positivista não consegue suster a destruição da razão objectiva:
«Um corpo oficial de cientistas de acordo com a teoria positivista, é mais independente da razão que o colégio de cardeais, uma vez que o último tem, pelo menos, de se referir ao evangelho».
Claro que o Tomismo – a corrente filosófica que, desde S. Tomás de Aquino, procura conciliar o cristianismo com a tradição aristotélica – também não escapa à lâmina devastadora de Horkheimer. Mas o que surpreende é o ímpeto da crítica que o autor dedica aos intelectuais. Estes devem a sua existência e o seu ócio ao sistema de dominação de que tentam emancipar-se e, talvez por sentimentos de culpa que daí decorrem, acabam por glorificar a classe trabalhadora. O argumentário freudiano, que está muito presente no DNA da Escola de Frankfurt, é transversal sobre toda a obra. Esta tendência para a psicanálise social leva a conclusões que já não serão tão originais para o leitor contemporâneo: a educação burguesa, a indústria e a igreja escravizam, oprimem e traumatizam o indivíduo. E assim, o histerismo colectivo nacionalista e mimético surge como escape dessas tensões acumuladas. Por outro lado, o conflito latente entre o homem e a natureza não se resolve com o Iluminismo e o progresso técnico, pelo contrário, nem com o regresso ao primitivismo de Rousseau, que é ingénuo. A solução para estes conflitos – entre o homem e a civilização e entre a civilização e o ambiente – só se podem resolver através do pensamento independente e da razão objectiva.
E cumprindo os 360 graus da sua crítica, Max Horkheimer não se mostra nada tolerante com a praxis marxista do regime soviético. O comunismo, tanto como o capitalismo, conspira para a morte do eu porque o trabalhador passa de objecto do capital a objecto do trabalho. A sua liberdade e a capacidade que tem para exercer a individualidade, o pensamento independente, é, nos dois casos, muito reduzida. Mas porque «o individuo completamente desenvolvido é o consumar de uma sociedade completamente desenvolvida» é imperativo regressar ao paradigma platónico da razão que serve eticamente o bem comum, a única capaz de devolver ao homem a sua verdade essencial. Até porque, apesar de tudo, «as pessoas são geralmente melhores do que pensam, ou dizem ou falam.»
Este aparente optimismo não pode porém iludir o leitor. No momento da história em que o utilitarismo resultou numa substituição do filósofo pelo engenheiro e em que o poder industrial está a liquidar o indivíduo, há que assumir que a filosofia não é útil nem tem que o ser. Há que afirmar a filosofia como um «esforço consciente para combinar todo o nosso conhecimento e compreensão numa estrutura linguística na qual as coisas são chamadas pelos seus nomes justos.»
A adequação da coisa ao nome como verdade filosófica, que indicia uma aproximação à primeira fase do pensamento de Ludwig Wittgenstein, habilita o pensamento a superar os efeitos desmoralizadores e amputadores da razão formalizada. E, em certo sentido, dá a Max Horkheimer um aliado poderoso e improvável, do outro lado do hemisfério: quando certa vez um discípulo perguntou a Confúcio qual seria a sua primeira medida se lhe fosse dado o poder absoluto de todos os reinos da China, o mestre respondeu-lhe: “Fácil. Começava por mudar os nomes.”
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