Os meios de comunicação social corporativos estão algures entre uma grande e uma pequena ameaça à democracia. Longe de ser um sentimento partilhado apenas pelas franjas da sociedade, esta é agora a opinião da maioria do povo americano, de acordo com uma sondagem ironicamente encomendada pelo ícone da infame indústria: o The New York Times (NYT).
Numa sondagem realizada este mês pelo Siena College Research Institute para o pasquim nova-iorquino, 74% dos “prováveis eleitores” inquiridos acreditam que a democracia está actualmente sob ameaça, e 83% acreditam que é a imprensa que configura essa ameaça.
Enquanto o Presidente Joe Biden, o antigo Presidente Donald Trump, os partidos Democrata e Republicano, o Supremo Tribunal, as máquinas de voto electrónico e até o Colégio Eleitoral são muito maltratados pela sondagem, os meios de comunicação social superaram todas as outras variáveis, com 59 por cento dos prováveis eleitores a chamá-los de “ameaça maior à democracia”, e outros 24 por cento a chamá-los de mera “ameaça menor”.
Os resultados do estudo foram uma surpresa brutal para o principal analista político do NYT, Nate Cohn, que admitiu no seu relatório sobre o inquérito que estava mais concentrado nas ameaças à democracia preferidas pelos seus colegas na imprensa e os spin doctors da Casa Branca: os eleitores republicanos, bem como “elementos antidemocráticos do governo eleito americano como o Colégio Eleitoral, o “gerrymandering” (arranjo territorial dos distritos eleitorais com o fim de tirar vantagem nas eleições) e o Senado“.
Num ataque de sinceridade (que no NYT é sempre uma exercício difícil), o rapaz confessou que tinha assumido que todos os americanos pensavam como ele e que a liberdade de opinião e os últimos vestígios da república constitucional americana (o Colégio Eleitoral e o Senado) eram os maiores perigos para a democracia.
O povo americano, ao que parece, pensa o contrário. O que deixa os apparatchiks dos meios de comunicação social muito nervosos.
No mesmo dia em que a sondagem foi publicada, o repórter político sénior do Washington Post, Aaron Blake, apressou-se a partilhar as conclusões que tirou da sondagem: o problema, escreveu ele, é que os Democratas não tinham conseguido convencer os americanos sobre a terrível ameaça à democracia colocada pelos republicanos em geral e por todos aqueles que não estão conformados à narrativa da imprensa em particular.
Embora muitos democratas, lamentou, acreditem que Trump é uma ameaça, não conseguiram fazer com que isso se traduzisse na metade do país que o apoia. Ficou surpreendido ao saber que os americanos fora de Washington, Nova Iorque e São Francisco pensam que os democratas são um perigo maior para a democracia do que os republicanos, e ainda mais surpreendido ao saber que os independentes concordaram. Mas em vez de fazer um exercício de auto-análise sobre a responsabilidade que os legacy media detêm nos resultados que tanto o surpreenderam, afirmou, sem ironia, que os democratas devem renovar e intensificar a propagação da ideia de que os seus opositores políticos são perigosos terroristas e fascistas danados.
Também a propósito desta sondagem, a pivot da MSNBC e antiga funcionária da administração Bush, Nicolle Wallace, afirmou que o motim de 6 de Janeiro foi o “ataque mais mortífero ao Capitólio na nossa história” (quando a única pessoa que morreu foi uma manifestante – Ashley Babbitt), e o ex-agente do FBI Peter Strzok concordou, dizendo que as forças de segurança americanas deveriam investir “no mesmo tipo básico de guerra” em relação aos republicanos que seguiram em relação à Al Qaeda:
“Quer dizer, o 11 de Setembro foi uma tragédia… Mas quando se olha para algo que é um ataque à democracia – algo que pode realmente trazer uma mudança fundamental à governação americana tal como a entendemos – o 11 de Setembro não é nada em comparação com o 6 de Janeiro”.
Na manhã seguinte ao lançamento da sondagem, o antigo repórter do New York Times, Anand Giridharadas, foi ao “Morning Joe” da MSNBC dizer que a América está “num ponto morto entre a democracia e o fascismo”, informando a audiência que tinha falado com um “perito em cultos” para o ajudar a compreender a “ameaça autoritária” dos republicanos. Os anfitriões acenaram com a cabeça de forma silenciosa. Os produtores da MSNBC publicaram o clip no seu website.
24 horas depois, a candidata a governadora da Geórgia, Stacey Abrams, participou no mesmo programa. Quando lhe perguntaram o que podia fazer, caso fosse eleita, para combater o aumento do custo de vida, a senhora sugeriu que a solução passava por um aumento dos abortos.
“Falando claro: os filhos são a razão pela qual as pessoas se preocupam com o preço da gasolina e dos alimentos.”
Horas depois, Anna Skinner, da Newsweek, num daqueles exercícios transformistas a que os activistas da imprensa gostam de chamar “verificação de factos”, escreveu que:
“Os Republicanos estão a visar a candidata democrata ao governo da Geórgia por ter relacionado o aborto à inflação durante uma entrevista à MSNBC. Essa relação é falsa.”
Stacey Abrams afinal não tinha dito o que na verdade disse.
Esta breve sequência de eventos, quântico exemplo do pântano infernal que grassa no panorama mediático americano, ilustra ainda assim e lindamente as razões pelas quais a maioria dos americanos despreza e desconfia da comunicação social convencional, que já constitui lixo tóxico há muitas décadas, que se tornou insuportável nos últimos dez anos e que é hoje factualmente perigosa: a maior ameaça à verdade e à integridade moral na América contemporânea e, assim, um poderoso e insidioso inimigo da democracia.
A boa notícia é que já há muita gente que percebeu isso.
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