“O verdadeiro conhecimento reside na consciência da extensão da nossa ignorância.”
Confúcio

 

Os Analectos de Confúcio constituem o documento central da escola confucionista, uma selecção de diálogos entre o mestre e os seus discípulos. A obra ocupa uma posição fundamental, ao lado do cânone taoista e das escrituras budistas, no grande legado cultural da antiguidade chinesa.

Ao longo do tempo, a obra foi tão lida na China quanto a Bíblia no Ocidente, sendo considerado o único registo fiável dos ensinamentos do filósofo.

Confúcio viveu na China, entre 551 e 479 a.C., e exerceu e ainda exerce profunda influência na cultura chinesa,  em especial no que diz respeito à educação e à moral, tendo, como centro, o homem. Como Sócrates ou Jesus Cristo, os outros dois membros do triunvirato mais influente da História Universal, nada escreveu. Os seus ensinamentos eram ministrados oralmente. Os Analectos são uma colectânea de aforismos feita pelos seus discípulos. A obra é de interpretação difícil (os aforismos de Confúcio rivalizam com as parábolas dos Evengelhos em intrincada semântica), de tradução complicada, tanto devido ao carácter pictogramático da escrita quanto pela sua densidade simbólica, mas de leitura obrigatória para o entendimento da cultura chinesa.

A menção mais antiga aos Analectos é feita no Fang chi, um capítulo do Li chi, o que indicia que a obra já circulava antes da dinastia Han. Aí são referidas três versões dos Analectos:

Lu lun em 20 livros;
Ch’i lun, em 22 livros (os dois extras são “Wen wang” e “Chih tao”);
Ku lun, em 21 livros (versão com dois livros de mesmo nome, “Tzu-chang”; essa versão teria sido descoberta nas paredes da casa de Confúcio).

Lu Te-ming (556-627 d.C.) dá mais detalhes, afirmando que o Ch’i lun não continha apenas dois livros extra, mas que os capítulos e versos eram muito mais numerosos que o Lu lun, demonstrando que as variantes existentes àquela época eram já consideráveis. Esse mesmo autor afirma que Huan T’an (24 a.C.-56 d.C.) cita que no Ku lun a ordem dos capítulos era diferente, havendo mais de quatrocentas variantes.

Os ensinamentos de Confúcio são extensos e complexos, mas podemos deles retirar mandamentos fundamentais: Ritos, mitos, tradições, costumes e instituições devem permanecer imutáveis e fiéis aos seus princípios fundadores. Há que considerar a cultura ancestral, essas instituições e esses valores acima das nossas ambições e sobranceria. Aceitemos o destino que nos é dado, o de escravo ou o de imperador, com a mesma solicitude (como também pensavam os estoicos, na Antiguidade Clássica ocidental). Respeitemos os mais velhos e as hierarquias, obedecendo-lhes. Prestemos especial atenção à linguagem e à nomenclatura, que são pilares da civilização. O pragmatismo supera o misticismo. As causas transcendentes não são dadas ao entendimento humano.

13.3 Zilu perguntou: “Se o soberano de Wei te confiasse o governo do país, qual seria a tua primeira iniciativa?” O Mestre disse: “Rectificar os nomes, sem sombra de dúvida!” Zilu disse: “A sério? Não seria um pouco exagerado? Rectificá-los para quê?” O Mestre disse: “Não passas de um rústico, Zilu! Um homem de bem nunca se pronuncia sobre aquilo que ignora. Se os nomes não estiverem correctos, a linguagem não tem objecto. Quando a linguagem não tem objecto, nenhum assunto pode ser resolvido. quando nenhum assunto pode ser resolvido, os ritos e a música definham. Quando os ritos e a música definham, os castigos e as sanções falham o alvo. Quando os castigos e as sanções falham o alvo o povo não sabe porque linhas se há-de coser. Por isso, tudo aquilo que o homem de bem concebe, deve poder dizê-lo; e tudo aquilo que diz deve poder fazê-lo. Em matéria de linguagem, o homem de bem não deixa nada ao acaso.”

Como Sócrates, o filósofo chinês sublinhava a necessidade ética de termos plena consciência das nossas limitações cognitivas e operacionais e daquilo que não sabemos. Como Cristo, aconselhava a humildade e a precisão no uso da linguagem, bem como uma lógica de reciprocidade que é fundamento de todo o comportamento ético e social.

15.24 – Zi Gong perguntou: “Existe alguma palavra que possa guiar uma pessoa ao longo da vida?” O Mestre respondeu: “Que tal ‘reciprocidade’! Nunca imponhas aos outros o que não escolherias para ti”.

Não como os seus congéneres ocidentais, Confúcio era um conservador radical. A sua bandeira era a da imutabilidade. A sua luta era a da permanência da cultura e das instituições no tempo e no espaço.

1.6 – O Mestre disse: “Um jovem, quando em casa, deve ser filial e, no exterior, respeitoso com os mais velhos. Ele deve ser sério e verdadeiro. Ele deve transbordar de amor por todos e cultivar a amizade dos bons. Quando ele tiver tempo e oportunidade, após a realização dessas coisas, ele deve empregá-los nos estudos civilizados.”

Confúcio parece dizer-nos por entre os milénios que é possível levarmos um homem à Lua sem nos perguntarmos pela existência de Deus. Que é possível fazer ciência que reconheça os limites filosóficos da condição humana. Que é possível ser moral sem saber de metafísica. Que é possível estabelecer com rigor matemático até que ponto podemos ir, na senda da verdade. Que é mil vezes preferível fazer silêncio sobre aquilo que não entendemos. Que é até recomendável fazer política sem articular sobre religião e arte sem conspurcar o Mistério. Para todos os efeitos, a actividade humana que está fora do âmbito religioso não deve querer saber do Mistério para nada.

“Podemos escutar e recolher os ensinamentos do Mestre no que se refere ao saber e à cultura, mas não há maneira de o fazer falar da natureza última das coisas nem da vontade celeste.”
Queixa de um discípulo de Confúcio

A procura de soluções fáceis, que descartem as normas morais em nome da expedição de tarefas e da resolução de problemas é desaconselhável. Recursos que recusem a ética vão sempre deixar os homens de bem insatisfeitos e os vilões insaciáveis.

13.25 – O Mestre disse: “É fácil servir um homem de bem, mas não é fácil agradar-lhe. Tenta agradar-lhe por meios imorais, e ele não ficará satisfeito; mas nunca te exigirá nada que esteja para além das tuas capacidades. Não é fácil servir um homem vulgar, mas é fácil agradar-lhe. Tenta agradar-lhe, mesmo por meios imorais, e ele ficará satisfeito; mas as suas exigências não têm limites.”

O idealista e o sonhador podem embarcar rapidamente em sedutoras aventuras. Mas depressa irão constatar que necessidades logísticas suplantam vontades de epopeia. O bom senso e a razão, a cautela e o planeamento, precedem o entusiasmo, como a experiência tem autoridade sobre a juventude.

5.7 O Mestre disse: “O Caminho não prevalece. Vou meter-me numa jangada e fazer-me ao largo. Tenho a certeza que Zilu me acompanhará.” Ao ouvir isto, Zilu ficou contentíssimo. O Mestre disse: “Zilu é mais audacioso do que eu. Mas onde encontraremos madeira para a nossa embarcação?”

A doutrina de Confúcio ajuda deveras ao entendimento da história não só da China como das Coreias, do Cambodja e do Vietname. Enquanto a maioria dos grandes pensadores do Ocidente clamavam por reformas e revoluções, o filósofo primeiro da cultura oriental fazia a apologia do que é estático e imutável e amaldiçoava a insubordinação, o desrespeito de regras e leis seculares, a vontade de mudança.

Em “O Império Imóvel ou o Choque dos Mundos”, Alain Peyrefite conta a história da primeira embaixada britânica enviada ao Império do Meio. É o relato de um fracasso tremendo, claro. Ingleses e chineses recusam entender-se. Esforçam-se até por se desentenderem. Do protocolo à geo-estratégia, há um mundo que os divide. Até porque os chineses rejeitam completamente as pretensões imperiais do esforço diplomático britânico, porque não conseguem simplesmente imaginar que uma nação bárbara e tão mais insignificante na escala geográfica, demográfica e ontológica das coisas, possa realmente representar uma ameaça ao império estático e eterno por natureza decorrente da filosofia confucionista. Umas poucas décadas mais tarde, vão aprender, não pela diplomacia mas pela eficácia dos canhões, que um império imóvel não tem grandeza. E foram humilhados por uma só frota britânica, que subjugou Pequim à primeira tentativa. Este episódio ilustra perfeitamente a influência de Confúcio na mentalidade chinesa.

Mas a verdade é que desse erro, velho de 230 anos, está agora a recuperar a China comunista, que não sendo por definição confucionista (os aparelhos filosóficos de Confúcio e Mao não podem ser conceptualmente mais antípodas), mantém a resiliência, a paciência, a força dos séculos aliada a uma certa imutabilidade, uma certa ideia da natureza do tempo e do valor da vida humana, que são de facto e ainda derivativos dos Analectos. E que lhe permitem subsistir como grande potência mundial.