O Trindade opera à velocidade espantosa de três cegos por hora.
São cegos curáveis, claro, com retinas disfuncionais e córneas destruídas.
São cegos com esperança. A pior espécie de cegos que há.
Andam de lá para cá, no labirinto da clínica,
com pensos nos olhos, com peso nos ombros,
com as pupilas dilatadas e com a alma encolhida;
esperam, cabisbaixos; esperam, vulneráveis; esperam, religiosos;
pelo exame, pela consulta, pela gloriosa e redentora faca hi-tech do Trindade.

O Trindade não faz milagres, mas cura para cima de cem cegos por dia;
os curáveis, claro, porque os cegos que são mesmo cegos são corridos com desprezo.
(Enquanto o Trindade perde tempo com os cegos incuráveis
não pode curar os cegos curáveis à razão de três mil por mês).

O Trindade não gosta de se explicar aos cegos.
Nem aos curáveis nem aos incuráveis.
Ele faz o que faz, os cegos curáveis passam a ver,
os cegos incuráveis continuam invisuais
e é assim.

Como o Trindade é, na verdade, um bruto, as enfermeiras sentem a responsabilidade
de ser tão simpáticas, tão prestáveis, tão piedosas,
que tratam os cegos curáveis como se fossem cegos incuráveis,
o que causa alguma confusão aos que não são cegos
– aos que estão lá só para fazer companhia aos cegos –
porque assim é impossível distinguir
os cegos com esperança dos cegos desenganados.

Ao Trindade raramente lhe falha a faca:
é um homem com uma missão.
Já aos cegos, falha a coragem:
arrastam-se de lá para cá, ansiosos e aflitos,
como crianças sem pernas
nos corredores escuros que foram abertos
entre o medo e a esperança.