IV – Aristóteles e o potencial humano.
Aristóteles estudou na Academia Platónica durante vinte anos, antes de fundar a escola Peripatética no templo do Liceu. Enquanto Platão apontava para o reino das Ideias, Aristóteles era um realista que trouxe a filosofia de volta a este mundo.
Sócrates procurou a sabedoria para superar o auto-engano, Platão deu-nos uma teoria estrutural da psique para explicar como poderíamos reduzir o nosso conflito interior, Aristóteles, por outro lado, fornece-nos um relato do crescimento e desenvolvimento do nosso carácter, que está ligado a uma ideia de sabedoria como significado para a vida.
O génio de Estagira foi um dos pensadores mais influentes da história da civilização ocidental. Aristóteles abordou quase todos os campos do conhecimento de sua época: biologia, física, metafísica, lógica, poética, política, retórica, ética e economia. A filosofia, definida como “amor à sabedoria”, passou a ser compreendida por Aristóteles em sentido mais amplo, ambicionando tornar-se a ciência das ciências.
Influenciado pelos filósofos de Mileto e por Heraclito, Aristóteles traz-nos a noção de mudança, de como crescemos e nos desenvolvemos e do processo que torna as nossas vidas mais carregadas de significado. Como uma cobra, devemos derramar a nossa velha pele e renovar-nos ou morrer. A sabedoria é a capacidade de cultivar virtudes para sermos razoáveis e capazes de reflectir sobre as coisas que verdadeiramente nos importam. Aristóteles usa a palavra acrasia (literalmente, não ter comando sobre si mesmo), que é o que nos impede de fazer escolhas acertadas.
Sabedoria não é apenas saber discernir o que está certo, mas também fazer o que está certo. Assim, a ignorância é não saber o que está certo, enquanto a idiotia é sabê-lo, mas ainda assim fazer a coisa errada. De novo surge a batalha dialéctica entre a razão e os apetites. Cultivar o nosso carácter, realizar a sabedoria, superar o auto-engano e melhorar a estrutura da nossa psique e o nosso contacto com a realidade, é o caminho para a existência realizada e racional.
Quando vivemos de acordo com o nosso potencial estamos no caminho para uma vida virtuosa, que Aristóteles definiu como um ponto entre uma deficiência e um excesso, que não está no meio exacto desses extremos, mas num local por vezes mais próximo de um extremo do que de outro, tal como a confiança está mais próxima da vaidade do que da auto-depreciação. Ao definirmos com precisão essa geografia áurea da excelência humana e da virtude ficamos mais perto de uma vida plena, cumprida em harmonia connosco, com os outros e com a natureza.
V – Escolas pós-platónicas: a filosofia terapêutica.
No seu desenvolvimento pós-platónico, a filosofia helénica surge como uma solução para as preocupações, angústias e misérias humanas. Para os Cínicos esses síndromas são provocados por constrangimentos e convenções sociais; para os Epicuristas derivam da busca de falsos prazeres; para os Estóicos, pela demanda do prazer e do egoísmo; e para os Cépticos, por falsas opiniões.
Os filósofos helenistas concordaram com Sócrates que os seres humanos estão mergulhados na miséria, na angústia e no mal porque existem na ignorância. A principal causa do sofrimento da humanidade são as paixões, que têm um significado diferente do sentido moderno do termo. Referem-se a desejos não regulados e a medos exagerados. As pessoas são impedidas de viver verdadeiramente porque são dominadas pelas pequenas preocupações do quotidiano. A filosofia aparece assim, em primeiro lugar, como uma terapia destinada a curar a angústia. Cada escola tinha o seu próprio método terapêutico, mas todas elas pretendem transformar profundamente o modo de ver e de ser do indivíduo. Esta escolha é a escolha da filosofia, e é graças a ela que podemos obter tranquilidade interior e paz de espírito.
VI – O Cinismo: Diógenes à procura de um homem.
A filosofia cínica foi delineada por Antístenes, um discípulo de Sócrates, no entanto Diógenes, o Cínico, é visto como a sua figura central. O Cínico (literalmente: semelhante a um cão), denuncia convenções sociais e insta ao regresso a uma vida simples, em conformidade com a natureza. O modo de vida cínico opunha-se não só à vida dos não-filósofos, mas até mesmo à vida dos filósofos. Rejeitavam aquilo que a maioria das pessoas considerava as regras elementares e as condições indispensáveis para a vida em sociedade: higiene, brio e cortesia, por exemplo. Praticavam actos desavergonhados deliberadamente em público, não tinham problemas em mendigar e desprezavam a opinião popular, o dinheiro e o luxo, preferindo viver uma vida simples, sem posses. Viviam sem pátria nem cidade, como miseráveis vagabundos, subsistindo com aquilo que em cada dia conseguiam obter.
“O cinismo era geralmente considerado uma filosofia; mas era uma filosofia em que o discurso filosófico era reduzido ao mínimo. Tomemos, por exemplo, a seguinte anedota simbólica: quando alguém declarou que o movimento não existia, Diógenes simplesmente levantou-se e começou a andar”.
Pierre Hadot . What is Ancient Philosophy?
O Cínico acreditava que o estado da natureza era superior às convenções da civilização. Diógenes deitou fora a sua tijela e o seu copo quando viu as crianças prescindirem de tais utensílios, e sentiu-se satisfeito em relação ao seu modo de vida quando viu um rato comer algumas migalhas ao abrigo da escuridão. O modo de vida cínico consistia num treino constante para suportar a fome, a sede e o mau tempo, de forma a que o indivíduo fosse capaz de se adaptar a todas as circunstâncias e pudesse adquirir liberdade, independência, força interior, alívio de preocupações e paz de espírito. Segundo a lenda, quando Alexandre o Grande visitou Diógenes e lhe concedeu um desejo, o cínico respondeu:
“Sai da minha frente, estás a bloquear a luz solar”.
Alexandre ripostou:
“Se eu não fosse Alexandre, então desejaria ser Diógenes”.
Ao que Diógenes respondeu:
“Se eu não fosse Diógenes, ainda assim desejaria ser Diógenes”.
Intrépido e intratável, o filósofo de Corinto passeava-se no mercado em plena luz do dia com uma lanterna acesa e quando lhe perguntavam o que estava a fazer, respondia:
“Estou à procura de um homem”.
Para Diógenes, a maioria das pessoas nem sequer se qualificava como homem, eram todos malandros e canalhas e esta era uma forma de expor a hipocrisia e a farsa das convenções e das cortesias sociais. Ser digno da espécie humana exige virtude e um humano virtuoso, para os cínicos, age exclusivamente de acordo com a natureza e de acordo com a razão. As pessoas que andam pela vida preocupadas com dinheiro, poder e convenções sociais são os verdadeiros “loucos”. Neste contexto, Diógenes tinha dificuldade em encontrar pessoas sãs e razoáveis.
Criticando e sabotando as palestras de Platão, o cínico comprazia-se a distrair e provocar e interromper com episódios anedóticos os polemistas da Academia de Atenas. Quando Platão deu a sua definição de homem como um bípede sem penas, Diógenes correu para a Academia com um frango depenado dizendo:
“Vejam! Trouxe-vos um homem”.
Platão terá dito de Diógenes que ele era um “Sócrates ensandecido”. Tal como Sócrates, Diógenes pensava que lhe tinha sido confiada a missão de levar as pessoas à reflexão, e de denunciar os seus vícios e erros com os seus ataques cáusticos e o seu modo de vida despojado e excêntrico.
VII – O Pirronismo: Buda em Atenas.
Pirro de Élis, um contemporâneo de Diógenes, também pode ser considerado um Sócrates extravagante. Ou o Buda do Mediterrâneo. É o primeiro dos cépticos e o fundador do Pirronismo, escola de cepticismo filosófico fundada no século IV a.C. Como Sócrates e Diógenes nada deixou escrito, ensinando a filosofia através das acções desprendidas que tomava e da força de carácter que exibia.
O comportamento de Pirro pode ser perfeitamente resumido numa palavra: indiferença. Ele procurava evitar emoções ou mudanças na sua disposição decorrentes de fenómenos externos, não vendo diferenças entre o que é normalmente considerado perigoso e o que é inofensivo; entre tarefas julgadas superiores e as chamadas inferiores; entre o que é sofrimento e o que é prazer; entre a vida e a morte. A conceptualização dos ensinamentos de Pirro chegou-nos através das obras sobreviventes do filósofo Sextus Empiricus, que escreveu:
“Porque a pessoa que acredita que algo é por natureza bom ou mau é constantemente perturbada; quando não possui as coisas que parecem ser boas, pensa que está a ser atormentado por coisas que são por natureza más, e persegue as coisas que supõe serem boas; depois, quando as obtém, cai em ainda mais tormentos por causa de exultação irracional e imoderada, e, temendo qualquer mudança, faz absolutamente tudo para não perder as coisas que lhe parecem boas. Mas a pessoa que não toma posição quanto ao que é por natureza bom ou mau, não evita nem persegue intensamente. Como resultado, ele consegue a ataraxia”.
Sextus Empiricus . Esboços do Pirronismo
Ataraxia é um termo grego usado pela primeira vez por Pirro e subsequentemente por Epicuro e pelos Estóicos para descrever um estado de imperturbabilidade e tranquilidade. Isto é necessário para provocar a eudaimonia (o estado de ser habitado por um bom daemon, um bom génio, e, em geral, é traduzido como felicidade ou bem-estar).
A infelicidade das pessoas provém do facto de quererem obter o que pensam ser bom, ou escapar ao que pensam ser mau. Se nos recusarmos a fazer este tipo de distinção, e nos abstivermos de fazer juízos de valor sobre as coisas; se dissermos a nós próprios: “Isto não é melhor do que isso”, conseguiremos paz e tranquilidade. A premissa é conhecida como epoché, a suspensão do julgamento de todos os assuntos não evidentes (dogmas), que nos liberta da preocupação e da ansiedade.
“Epoché é um estado do intelecto em razão do qual não negamos nem afirmamos nada. Ataraxia é um estado de tranquilidade da alma”.
Sextus Empiricus . Esboços do Pirronismo
Assim, de acordo com a filosofia de Pirro, o nosso objectivo deveria ser procurar um estado de perfeita estabilidade e paz connosco próprios, em completa indiferença com variáveis externas, existindo na liberdade interior, que é divina. Esta não é uma tarefa fácil, uma vez que requer o despojamento total do homem ou a libertação total da subjectividade e sensualidade humanas.
A filosofia de Pirro – como a de Sócrates e como a dos cínicos – é assim uma filosofia de práxis existencial, um exercício de transformação do modus vivendis.
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