“Eu sou inteiramente corpo, e nada além”.
Friedrich Nietzsche . Assim Falava Zaratustra

 

As pessoas passam mais tempo a olhar para os ecrãs do que a interagir com o mundo real. Hora após hora, dia após dia, são apenas olhos e ouvidos que actuam como entradas; e bocas e dedos que actuam como saídas. O ser humano do século XXI tem a mente noutro lugar que não o corpo. O uso excessivo das tecnologias da informação desliga-nos da fisiologia e empurra-nos para uma forma esquizofrénica de experimentar o mundo.

“A distinção entre mente e corpo é uma dicotomia artificial… A continuidade da natureza nada sabe sobre essas distinções antitéticas que o intelecto humano é forçado a estabelecer como ajuda à compreensão”.
Carl Jung, Tipos Psicológicos

Num estado de saúde óptimo, estamos firmemente enraizados no nosso corpo, o mental e o físico são experimentados como um fenómeno unitário, não como entidades separadas. No entanto, a ligação entre o corpo e a mente pode ser perturbada, como que descarnada. Nesse estado descarnado, não sentimos que somos um corpo, mas que possuímos um corpo. Em vez de estarmos firmemente enraizados no nosso corpo, sentimo-nos alienados dele, e tendemos a ver o físico não como parte integrante do nosso ser, mas como uma coisa, ou colecção de coisas, que transportamos connosco.

As tecnologias baseadas no ecrã alteraram o modo dominante de percepção sensorial na nossa sociedade e de formas que promovem o divórcio entre o indivíduo e o seu organismo, colocando-nos numa trajectória em que a visão reina suprema sobre todos os outros sentidos. Vivemos no contexto de uma sociedade ocular, e como Giovanni Stanghellini e Louis Sass explicam no seu jornal The Bracketing of Presence:

“Numa sociedade centrada na visão, o indivíduo não se torna apenas um receptor passivo de imagens provenientes dos meios de comunicação; as relações entre as pessoas também se tornam cada vez mais mediadas e produzidas por imagens. O outro torna-se uma imagem para mim – e eu uma imagem para o outro. Numa tal sociedade, os tipos de experiência visual mais participativos e imersos são substituídos por formas passivas de ver: um testemunho de meras imagens e representações.”
Giovanni Stanghellini e Louis Sass . The Bracketing of Presence

Por razões tecnológicas, profissionais, económicas e também políticas, as interacções sociais de corpo presente, principalmente entre homens e mulheres, vão progressivamente rareando, ao contrário do que se passou durante praticamente toda a história humana. Agora são imagens, vídeos, links de texto, emojis e outras formas mediatas de representação que definem muitas das nossas relações.

“Tudo o que foi vivido directamente recuou para uma representação”.
Guy Debord . A Sociedade do Espectáculo

As tecnologias digitais também levaram a um aumento das formas de trabalho e passatempos que cortam a ligação entre o corpo e a mente. Muitos de nós passam mais de 8 horas por dia a olhar para um ecrã e a tocar num teclado ou rato enquanto o resto do nosso corpo permanece estacionário (é o caso do redactor deste texto). No  lazer, os jogos vídeo, as séries da Netflix, o futebol televisionado e a navegação na web são actividades direccionadas para a mente, e esvaziadas de apelo para o corpo.

Nos últimos anos tem havido um novo acelerador destas tendências, nomeadamente, os confinamentos e o medo da COVID, ou como Sass e Stanghellini escrevem:

“A visão é um toque usurpador. As imagens são corpos depositários. A virtualidade está a substituir a realidade. . . E agora o medo de ser contaminado pelo vírus COVID reforçou ainda mais as tendências para a o abandono do que é físico, a desmaterialização e o isolamento social, pelo menos em termos de relações corpo-a-corpo”.
Giovanni Stanghellini e Louis Sass . The Bracketing of Presence

Em vez de trabalhar na presença de outros e participar em reuniões cara-a-cara em carne e osso, os lockdowns forçaram muitos a trabalhar à distância e a confiar na conversação remota e desincorporada. Algumas pessoas ficaram com tanto medo das outras que os eventos sociais por vídeo se tornaram a norma. As crianças foram também condicionadas ao medo: por fecho das escolas ficaram largos períodos sem sociabilizar,  as brincadeiras com os amigos acontecem agora em chat rooms e jogos online, e até as visitas médicas foram, durante  a pandemia, feitas remotamente. Enquanto alguns superaram este medo neurótico da presença física de outras pessoas, outros permaneceram petrificados e continuam a trabalhar à distância, socializando com imagens e participando em actividades que carecem da presença de pessoas reais.

Uma ruptura da ligação entre corpo e mente é desorientadora e leva a uma miríade de problemas existenciais. Para compreender alguns destes problemas podemos recorrer à condição de esquizofrenia, que consiste precisamente numa desmaterialização extrema, uma sensação de separação radical do próprio ser como entidade física.

Logo à partida, a alienação do corpo afecta o movimento. Quando desligados do corpo, não nos movemos da forma graciosa:

“O movimento corporal ‘sacudido’, já se encontra no prólogo da esquizofrenia (isto é, antes de a doença se manifestar)”.
Iain McGilchrist . The Matter With Things

O descarnar do corpo também perturba a capacidade de explorar o poder do eu intuitivo. Intuição é conhecimento ou sabedoria que não é precedida por cadeias de pensamento ou raciocínio explícito. Para aceder às nossas intuições, temos de estar firmemente ligados ao corpo e capazes de sentir os sinais físicos que dele emanam. Mesmo que as intuições se manifestem cognitivamente, elas são encarnadas, no sentido de que são informadas e informam o movimento dos nossos membros, a respiração e o pulso, as emoções juntamente com o sentido de alerta, e a percepção inteligente, tudo se manifesta na interacção com o mundo.

Quando desligado do corpo, a capacidade de agir com a capacidade intuitiva do senso comum, vacilará. O senso comum é a derradeira habilidade encarnada e muito do sofrimento dos esquizofrénicos, surge da sua ausência, ou como explica McGilchrist:

“A perda de senso comum é talvez o acompanhamento mais invariável da esquizofrenia, enquanto o seu retorno é um sinal de recuperação.”
Iain McGilchrist . The Matter With Things

Na ausência do senso comum, o esquizofrénico vai passar a pensar demais. A mente esquizofrénica corre à solta num estado de hiper-consciência à medida que processa conscientemente a informação que para outros é tratada implicitamente com o poder da intuição. Os esquizofrénicos tentam compensar a perda de intuição e bom senso, dessa apreensão vital e pré-reflexiva da realidade, por uma espécie de pseudo-filosofia, ou ‘hiper-reflexão’ da experiência – essencialmente uma doença de excesso de consciência, na qual as coisas que deveriam correr sem problemas ao nível preconsciente são puxadas para o foco da consciência, onde a vida chega a um impasse crítico.

Não é apenas o esquizofrénico que pensa demais em resposta à falência do senso comum, mas este maneirismo cognitivo, embora de forma mais suave, espalhou-se por toda a população em geral. Desconectados do corpo, muitos de nós confiamos muito pouco na sua sabedoria intuitiva e  demasiado no poder da consciência racional:

“A consciência crescente é um perigo e uma doença”.
Friedrich Nietzsche . A Gaia Ciência

Estas tendências sociais desincorporantes, alimentadas pelo uso excessivo de tecnologias baseadas em ecrã, não nos estão a conduzir numa direcção positiva, nem a explorar plenamente o potencial humano. Se formos encorajados a avançar na direcção de um mundo virtual, ou de um metaverso, onde as representações inundam todos os nossos sentidos, podemos chegar ao ponto em que a representação se torna mais importante do que a realidade por detrás dela, fenómeno que resultará numa sociedade que prefere o signo à coisa significada, a cópia ao original, a representação à realidade, a aparência à essência. Em 1962, quando as tecnologias digitais ainda estavam na sua infância, Daniel Boorstin alertou para o drama dessa visão fantasmática:

“Somos principalmente vítimas não dos nossos vícios ou das nossas fraquezas, mas das nossas ilusões. Somos assombrados, não pela realidade, mas por essas imagens que colocámos no seu lugar”.
Daniel Boorstin . Sobre a Imagem

Acresce que as tecnologias da informação, construídas em rede global, bombardeiam-nos constantemente com um excesso de dados, notícias, referências, conteúdos. Como Douglas Coupland sugeriu em “Geração X”, esse bombardeamento tem duas consequências contraditórias, que são ambas falsificadoras da realidade: a “Subdose Histórica”, quando o caos informacional que consumimos através da web nos leva à conclusão de que nada de significativo se está realmente a passar,  e a “Overdose Histórica”, quando o caos informacional que consumimos através da web nos leva à conclusão de que tudo o que é significativo se está a passar ao mesmo tempo. As duas conclusões, inteiramente racionais, são porém e invariavelmente falsas e disruptoras de uma mais rigorosa e fiável relação com o mundo.

Sempre que a representação for mais importante do que a realidade, o homem tornar-se-á cada vez mais desenraizado do seu corpo e dos mecanismos de sobrevivência e de relação com o mundo com que está equipado e, assim, ficará mais perto de uma condição esquizofrénica. No entanto, ao contrário do esquizofrénico, vivemos neste mundo desencarnados por nossa própria vontade. Escolhemos participar nas actividades que nos desligam do nosso corpo, e optamos por fazê-lo a cada momento, dia após dia. Mas podemos fazer escolhas diferentes.

Podemos aumentar a quantidade de tempo que passamos com pessoas de carne e osso, participar em actividades que utilizam mais do que apenas os olhos, os ouvidos e as pontas de dedos, e limitar a frequência com que olhamos para os ecrãs. Tais escolhas serão um passo em direcção à revitalização da vida, pois, como Nietzsche escreveu:

“O corpo é um grande sábio, onde muitos componentes têm um só propósito; uma guerra e uma paz, um rebanho e um pastor… O corpo faz mais sentido que a melhor sabedoria”.
Friedrich Nietzsche . Assim Falava Zaratustra