O ContraCultura inicia com este artigo a publicação de um série de conteúdos que apresentam ao seu gentil público um extenso trabalho poético, inspirado na tradição lírica japonesa do haiku, que tem sido publicado no Blogville desde 2010. Dado o carácter muito específico deste tipo de estrutura poética, a série implica uma introdução, que se destina a familiarizar os leitores com os seus formalismos.

 

Sintaxe e universo semântico.

O haiku (俳句) é um tipo de poesia minimal, originária do Japão, que pode ser atribuída à influência da poesia tradicional chinesa.

O haiku tradicional japonês consiste em três frases compostas por 17 unidades fonéticas (chamadas on em japonês, que são semelhantes a sílabas) num padrão 5, 7, 5; que incluem um kireji, ou “palavra de corte”; e um kigo, ou referência sazonal. No entanto, o haiku de poetas clássicos japoneses, como Matsuo Bashō, também se desvia do padrão 17-on e, por vezes, não contém um kireji. Poemas semelhantes que não aderem a estas regras são geralmente classificados como senryū.

O haiku tem origem nos segmentos de abertura de um género superior de poesia japonesa chamado renga. Estes haiku escritos como estrofe de abertura eram conhecidos como hokku e, com o tempo, começaram a ser escritos como poemas autónomos. O haiku recebeu o seu nome actual através do escritor japonês Masaoka Shiki, no final do século XIX. Originário do Japão, o haiku é actualmente escrito por autores de todo o mundo, circunstância em que é definido como haicai. Em inglês e noutras línguas tem formalismos diferentes, embora continue a incorporar aspectos do registo tradicional. Além disso, um movimento minoritário dentro do haiku japonês moderno (gendai-haiku), apoiado por Ogiwara Seisensui e seus discípulos, tem criado alternativas e variações à tradição das 17 sílabas, bem como aos temas tratados.

Para todos os efeitos o Contra continuará porém a chamar haiku aos versos que vai publicar em português.

Em japonês, o haiku é tradicionalmente impresso numa única linha, mas quando é vertido para outras línguas ou criado noutras línguas aparece frequentemente em três linhas, embora existam variações. Existem várias outras formas de poesia japonesa relacionadas com o haiku, como o tanka, o haibun e o haiga. Em qualquer caso, porém, cada haiku terá necessariamente que valer como uma narrativa única, sem precisar de outros haiku ou quaisquer complementos, para ser apreciado e entendido.

Os elementos tradicionais kiru e kireji aparecem normalmente no final de uma das três frases do verso. Um kireji desempenha um papel análogo ao de uma volta nos sonetos e ajuda a marcar as divisões rítmicas. Dependendo do kireji escolhido e da sua posição no verso, pode cortar brevemente a corrente de pensamento, sugerindo um paralelo entre as frases anterior e seguinte, ou pode proporcionar um final digno, concluindo o verso com um sentido elevado. O kireji empresta suporte estrutural ao verso, permitindo que ele permaneça como um poema independente. O Kiru é o elemento que conduz o poema à natureza, sendo que a generalidade dos haiku tradicionais são eminentemente contemplativos, procurando descrever, de forma minimal, a envolvente paisagística, que se relaciona com o estado de espírito do poeta.

 

Matsuo Bashō, o poeta iniciático.

Matsuo Bashō (1644 – 1694), nascido Matsuo Kinsaku, mais tarde conhecido como Matsuo Chūemon Munefusa, foi o mais famoso poeta japonês do período Edo. É hoje reconhecido como o maior mestre do haiku e também admirado pelos seus ensaios de viagem. A poesia de Matsuo Bashō é internacionalmente conhecida e, no Japão, muitos dos seus poemas são reproduzidos em monumentos e locais tradicionais. Eis dois dos seus haiku mais célebres, traduzidos pelo Contra:

 

古池や蛙飛び込む水の音
furu ike ya kawazu tobikomu mizu no oto

Versão do Contra:

Venerando lago –
As rãs saltam
Ao som da água

 

初しぐれ猿も小蓑をほしげ也
hatsu shigure saru mo komino o hoshige nari

Versão do Contra:

Primeiro aguaceiro –
Até o macaco parece desejar
Um chapéu de palha

 

馬をさへながむる雪の朝哉
uma wo sae nagamuru yuki no ashita kana

Versão do Contra:

Um velho cavalo
Acorda os meus olhos
No nevão da manhã

 

Kobayashi Issa, o grão-mestre do haiku.

Kobayashi Issa (1763-1828) foi um poeta japonês e sacerdote budista leigo do Jōdo Shinshū. É conhecido pelos seus geniais haiku e muitas vezes nomeado apenas por Issa (一茶), um pseudónimo que significa literalmente ‘Chávena de Chá’. É considerado um dos quatro mestres do haiku no Japão, juntamente com Bashō, Buson e Shiki – “Os Quatro Grandes”.

Reflectindo a popularidade e o interesse em Issa como homem e poeta, as edições poéticas, obras biográficas e críticas japonesas sobre Issa são mais numerosas do que as de Buson e quase no mesmo número àquelas dedicadas a Bashō.

Para quem gosta de ler e escrever haikus, Kobayashi Issa será sempre um bálsamo e um motor de inspiração. Apesar dos problemas de tradução da poesia oriental, já referidos num artigo publicado no Contra a respeito da poesia de Li Bai, a colectânea de poemas dedicados ao reino animal, reunida e traduzida por Joaquim M. Palma e editada pela Assírio & Alvim, é um triunfo editorial que se recomenda vivamente a quem tenha interesse ou curiosidade pela breve, sintética e requintada arte do Haiku e pela poesia clássica japonesa. Deixam-se aqui alguns poemas, para que quem não conhece este autor magistral, não morra ignorante:

 

és caracol
mas um dia
serás Buda!

 

corvos patetas
no meio da neblina
discutindo desde a manhã

 

um cuco interrompeu-me
agora que era
a minha vez de falar

 

apontando
para o escaravelho que se peida
Buda ri

 

depois do grande bando
dos gansos a caminho do norte
silêncio

 

atenção grilo!
muita atenção!
momento de urinar

 

sabe sempre qual é a cama
que lhe pertence
o gato louco

 

pardais pais
pardais bebés
uma montanha feliz

 

dentro da minha cabana
em viagem de negócios
uma rã

 

vou-me embora —
arrendei a minha casa
às abelhas


flor aberta —

uma abelha penetra-a
com o ferrão

 

a minúscula abelha
pensa em grande —
flores do aniversário de Buda

 

as abelhas do campo
passam zumbindo
por dentro do templo



as abelhas com filhos
trabalham freneticamente
e recebem o seu salário



as abelhas
em volta do poste
reunião de condomínio

 

A Assírio & Alvim publicou também uma outra colectânea de haikus de Kobayashi Issa, “Primeira Neve“, com tradução de Jorge Sousa Braga, de que deixamos um punhado de exemplos:

 

Entrada do templo –
O som do sino fica preso
No ar gelado

 

Que bela manhã
O carvão crepita
De bom humor

 

Que beleza –
O buraco feito na neve
Ao mijar

 

O que se diz do boneco
De neve não dura mais
Que o boneco de neve

 

Tão pobre a minha cabana
Até as moscas conservam
A família pequena

 

Onde há pessoas
Há moscas
E Budas

 

Pulgas da minha cabana
Tão magras
Que metem dó

 

Cogumelos –
Também há beleza
Nos assassinos

 

Vento de Primavera –
À mostra as nádegas
Do trolha no telhado

 

A primavera
Deixou na soleira da Porta
Os tamancos enlameados

 

O apanhador de nabos
Aponta o caminho
Com um nabo

 

Vento de Outono
Até a sombra da montanha
Tirita

 

 

Sobre os Haikus do Contra.

No portfólio de haikus que vão ser publicados pelo Contra, encontramos aqueles que respeitam algumas, todas ou nenhumas das suas regras tradicionais. Os temas também saem frequentemente do âmbito canónico, embora procurem respeitar, no sentido lato, o espírito contemplativo, introspectivo e sintético do haiku. O leitor vai notar que as referências ao cenário natural e às estações do ano marcam presença frequente nestes versos, já que na sua maioria foram escritos fora do ambiente urbano (muitos deles na quietude cenográfica da falésia de Sesimbra).

Eis alguns exemplos, com indicações da sua conformidade e inconformidade com o cânone.

 

17 sílabas e kireji:

Samurai –
Se não usas a espada
A pena esmorece

 

17 sílabas, kireji e kigo:

Primavera –
A aranha no meu quarto
Não dá por ela

 

kireji:

Puta da idade –
Mesmo diante do diabo
Sinto dores no joelho

 

kireji e kigo:

Da praia sobe o ruído
De ondas e crianças –
Deus também tem cócegas

 

17 sílabas:

Ninguém fará a guerra
Depois de uma boa
Refeição

 

Livre:

Por mais flautas que Bach faça tocar
O silêncio é sempre
O maestro

 

O Contra espera sinceramente que esta série de publicações agrade à sensibilidade dos leitores e que lhes desperte a curiosidade para a leitura da poesia oriental, que é rica – e consoladora.