É suposto que a imparcialidade e o rigor característicos da actividade científica impeçam que a política influencie as decisões de um país em matéria de cuidados de saúde. Isto já não é verdade no caso dos Estados Unidos e da doença renal crónica (DRC), que consiste na diminuição da capacidade dos rins para eliminar resíduos, toxinas e excesso de fluidos do sangue. Esta doença afecta mais de 35 milhões de adultos nos EUA. No entanto, no caso da DRC, as políticas raciais sobrepuseram-se à objectividade científica – e com a bênção dos Institutos Nacionais de Saúde e da liderança de muitas organizações médicas.

O diagnóstico e o tratamento da DRC são orientados por uma medida global da saúde dos rins conhecida como taxa de filtração glomerular (TFG). Embora a TFG possa ser medida directamente num hospital ou numa clínica de investigação, no consultório médico é geralmente estimada com base nos níveis de creatinina no sangue. Há mais de duas décadas que os níveis de creatinina são avaliados em rastreios e tratamentos de rotina; níveis mais elevados de creatinina no sangue estão associados a uma TFG mais baixa. Quanto mais baixa for a TFG, maior é a gravidade da DRC.

Em média, os adultos negros americanos têm uma taxa de creatinina no sangue mais elevada do que os não negros com o mesmo nível de função renal. Uma “explicação biológica plausível” é o facto de a creatinina ser segregada para o sangue pelas células musculares e de o adulto negro americano médio ter mais músculo do que o adulto não negro médio. No passado, esta diferença nos níveis de creatinina era tida em conta por um factor de correcção racial na fórmula da TFG. É por isso que os negros tendem a ter uma TFG cerca de 16 a 21% mais elevada do que os não negros com as mesmas concentrações de creatinina.

Este factor de correcção destinava-se a fornecer aos doentes negros e não negros o mesmo diagnóstico e tratamento da DRC com base na melhor estimativa da sua TFG medida directamente, que pode ser diferente dos seus níveis de creatinina. É por esta razão que os relatórios laboratoriais costumavam apresentar duas categorias diferentes de estimativas da TFG – uma para os afro-americanos e outra para os restantes pacientes.

Isto até que estudantes e activistas apresentaram com êxito uma petição aos principais hospitais para eliminarem a correcção racial, que caracterizaram como estando “enraizada na injustiça histórica e num legado de justificação para a colonização, a escravatura e o genocídio”.

Portanto: índices científicos de dignóstico da doença renal crónica “justificam a escravatura e o genocídio”. Espantoso.

Além disso, os activistas afirmaram que o factor de correcção promovia o racismo ao perpetuar falsas crenças de que a fisiologia é biologicamente diferente nos negros e nos não negros. A correcção relativa à raça também violava a premissa fundamental destes tresloucados de que as disparidades nos cuidados da saúde se devem em grande parte ao racismo, quando é óbvio que – e principalmente nos EUA – se deve à capacidade financeira de cada um, ou à sua classe social. A Comissão de Meios e Modos da Câmara dos Representantes do Congresso também exerceu pressão sobre os médicos para que fosse eliminado o factor de correcção. Artigos na Internet e outros meios de comunicação social repetiram frequentemente as afirmações de que a correcção era racista.

 

Não mais do lado da ciência.

A National Kidney Foundation (NKF) e a American Society of Nephrology (ASN) são duas organizações norte-americanas proeminentes que representam pacientes renais e os seus provedores de tratamento. Em 2020, a NKF / ASN formou uma equipa para “Reavaliar a Inclusão da Raça no Diagnóstico da Doença Renal”, porque

“os recentes apelos de justiça social galvanizaram segmentos da comunidade médica em mais discursos e açcões para alcançar maior equidade nos cuidados de saúde, incluindo a afirmação da raça como uma construção social, não biológica.”

Decidiram retirar a raça da fórmula de cálculo da taxa de filtração glomerular. A sua decisão foi motivada não por discussões científicas sobre a utilidade clínica da raça, mas antes pela afirmação estatisticamente irrelevante e de qualquer forma disparatada de que a “raça” não tem base biológica.

Até aqueles que deviam defender os interesses dos doentes, decidiram sacraificá-los no altar da religião woke.

A exclusão do critério racial foi assim produto de um juízo preconcebido, orientado por uma agenda política, e não a consequência de uma avaliação estatística rigorosa, produzindo um enviesamento estatístico que promove o diagnóstico errado de DRC em negros à custa de doentes não negros que deixam de ser correctamente diagnosticados.

Além disso, o grupo de trabalho ignorou o seu dever de garantir que as estimativas devem ser “baseadas em ciência rigorosa”, fornecer uma “avaliação imparcial” da função renal e não afectar desproporcionadamente qualquer grupo de indivíduos.

Os perigos da politização da medicina.

O impulso para a adopção imediata de um estimativa de TFG sem poderação da raça resultou numa aceitação pela comunidade médica norte-americana de 70% em Outubro de 2022. Quando totalmente adoptada, a nova fórmula de cálculo da TFG s é projectada para eliminar diagnósticos de DRC em pouco mais de 5,5 milhões de brancos, hispânicos, asiáticos e outros adultos não negros dos EUA que provavelmente têm a doença, bem como reclassificar diagnósticos anteriores como menos graves em outros quase 4.6 milhões de não negros. Tudo isto será feito para alargar a elegibilidade para tratamento a 434.000 negros que, à partida, não são susceptíveis de ter doença renal e a 584.000 negros anteriormente diagnosticados com casos menos graves.

Esta nova filosofia clínica é de tal forma estúpida – e promove uma gestão de recursos de tal forma ensandecida – que é até difícil (des)classificá-la.

Ao eliminar o facctor de correção racial, o grupo de trabalho conseguiu redefinir a DRC de uma doença que afectava os negros e os brancos de forma semelhante no Inquérito Nacional de Saúde e Nutrição de 2015-2018 (6,4% e 7,7%, respectivamente) para uma doença que afecta desproporcionadamente os negros (9,3% e 5,8%, respectivamente), invertendo a realidade em função da ideologia. Mesmo antes das recomendações do grupo de trabalho, muitos negros tinham mais probabilidades do que os brancos de receber tratamento, de se submeter a testes adicionais e de consultar um médico especializado em cuidados renais. Os negros estavam mais conscientes do seu estado de DRC e os médicos que os tratavam também estavam mais conscientes de que os seus doentes negros tinham DRC.

Exagerar a prevalência da DRC nos negros poderá exacerbar as diferenças de tratamento entre negros e não negros. De facto, o maior acesso a oportunidades de tratamento é o benefício mais frequentemente citado da estimativa da TFG sem o critério da raça. Mas a diminuição do acesso ao tratamento nos não negros nunca é discutida.

Estas e outras questões relacionadas com a remoção da raça do diagnóstico e tratamento da DRC são discutidas em profundidade num artigo revisto por pares publicado na revista científica Cureus. Este artigo sublinha que o objectivo do factor de correcção racial sempre foi o de melhor estimar a “TFG medida” num contexto clínico com base em biomarcadores, sexo, idade e relato do doente, incluindo a raça relatada ou avaliada clinicamente. O factor de correcção da raça permite uma previsão mais precisa da TFG.

 

Um caminho que levará inevitavelmente ao descrédito total da classe médica.

Os comités de consenso científico desempenham um papel importante na síntese da literatura médica em tratamentos accionáveis através de uma rigorosa revisão crítica da literatura. Em contraste, a equipa da NKF/ASN citou a raça como “uma construção social e não biológica” e o “apelo nacional para reavaliação do uso da raça em algoritmos clínicos” como razões para remover o factor de correcção racial. A adopção da estimativa da TFG sem ponderação da raça parece ter sido um facto consumado e a criação de um grupo de trabalho o meio para esse fim.

Embora a sua decisão possa ter sido adoptada sem críticas pelo National Institutes of Health e outros institutos congéneres, violou declaradamente o dever dos médicos de basear as decisões de tratamento na melhor ciência disponível – e de prestar os melhores cuidados de saúde a todos.

As questões levantadas vão muito para além da DRC. A nova estimativa da taxa de filtração glomerular pode ser um prenúncio de alterações no tratamento médico, motivadas pelas políticas de identidade. Quando as práticas médicas são ditadas pela indeologia e não pela ciência, a confiança do público nas instituições de cuidados de saúde cairá, necessariamente, a pique.

E como o Contracultura já documentou, está a acontecer exactamente o mesmo fenómeno em relação à anemia falciforme (AF), uma doença genética que afecta os glóbulos vermelhos, que pode afligir qualquer pessoa mas que, por incidir sobretudo na população negra, está a ser tratada como um diagnóstico de natureza cultural, ligado ao racismo sistémico das sociedades ocidentais.

Uma sondagem recente mostra que, até agora, os americanos têm os médicos em muito maior consideração no que diz respeito à honestidade e às normas éticas do que os jornalistas, os advogados e os membros do Congresso. Mesmo depois dos erros monumentais da pandemia, de que foram cúmplices. Este é um legado que a classe médica não devia desbaratar.