Fyodor Dostoyevsky . Vasily Perov . 1872 . Wiki Commons

 

“Deus, que nos deu a vida, deu-nos a liberdade. As liberdades de uma nação podem ser garantidas quando eliminamos a convicção de que essas liberdades são um dom de Deus? Na verdade, tremo pelo meu país quando reflicto que Deus é justo e que a Sua justiça não pode dormir eternamente.”
Thomas Jefferson . Notas sobre o Estado de Virgínia


“Se não fosse pela Igreja de Cristo, na verdade não haveria restrição ao criminoso e às suas más ações. Se alguma coisa protege a sociedade mesmo no nosso tempo, e até mesmo reforma o próprio criminoso e o transforma numa pessoa diferente, é apenas a lei de Cristo
, que se manifesta no reconhecimento da própria consciência”.
Fyodor Dostoyevsky . Os Irmãos Karamazov

 

Os acontecimentos da última semana deixaram bem claro que Israel já não pode coexistir com o Hamas. A violência desencadeada pelos terroristas contra civis desarmados, incluindo mulheres, crianças e idosos – boa parte dela transmitida em directo online – chocou o mundo.

O Ocidente não vê este tipo de barbárie há quase 80 anos (os horrores da guerra na Ucrânia não são mediatizados da mesma forma), e a maioria de nós recua diante dela com horror e incompreensão.

Por outro lado, o estado de Israel será seguramente culpado de crimes de guerra contra a população civil palestiniana, embora não haja como negar que há diferenças na intensidade do niilismo e da ferocidade das iniciativas militares e para-militares que não são despiciendas: não todos, mas a maior parte dos actos bárbaros dos israelitas contra a população civil da Faixa de Gaza é inadvertida e decorre da densidade demográfica do território, bem como do Hamas utilizar pessoas e estruturas civis como escudos. Já a organização terrorista que impera despoticamente sobre a Faixa de Gaza ataca intencionalmente inocentes, alimentando até um processo chamado “Pagar para assassinar“, que premeia com uma renda mensal vitalícia aqueles que matem israelitas ou até simples turistas em Israel.

Para além de enfrentar e derrotar e extinguir o Hamas, Israel terá que enfrentar o juízo do mundo ocidental em geral. Matar inocentes como reacção à morte de inocentes, para além de inflamar o mundo muçulmano e poder activá-lo para uma cruzada de consequências imprevisíveis, mas certamente devastadoras, não vai cair bem em vastos sectores da geografia do poder no Ocidente.

E há também uma multitude de inimigos declarados de Israel na Europa e nos estados Unidos, muitos deles em posições de poder legislativo e económico. Imediatamente após as atrocidades do Hamas, foram organizadas manifestações de apoio ao movimento em todo o Ocidente. Aqueles que marcharam nas ruas, que assinaram declarações estudantis, que publicaram memes online, são fanáticos da esquerda radical (ou neo-nazis), activistas da Antifa, do BLM e dos movimentos LGBT, militantes da imigração sem freio, do aborto até ao último momento da gravidez e por aí fora.

As pessoas que aplaudem actos terroristas são, naturalmente, aquelas que também aplaudem o massacre de bebés no útero. Eles são, tal como o próprio Islão, anti-cristãos, e a sua moralidade, tal como a moralidade do Hamas, é decididamente pagã. Isto significa que não acreditam nos direitos humanos universais ou na inerente dignidade humana, e muito menos na doutrina cristã e nos imperativos morais que dela decorrem. A filosofia que defendem não entende a moralidade como um dado objectivo ou a verdade como um valor fundamental. Rejeitam, assim e em suma, todos os preceitos cristãos que constituem a base da civilização ocidental.

Estes são os bárbaros que residem dentro dos portões do Ocidente. Eles acreditam apenas no poder e farão tudo o que puderem para conquistá-lo. Uma vez que o detenham, irão exercê-lo como acharem adequado, sem serem limitados por referências éticas do que é certo ou errado, ou noções de justiça e moralidade cujas premissas rejeitam. Não terão escrúpulos quanto à sua própria hipocrisia ou inconsistência. Os apelos à compaixão e à misericórdia cairão em ouvidos surdos.

Afinal, estas são as mesmas pessoas que insistem que “as palavras são violência” e que os debates, a liberdade de expressão e até o humor devem ser suprimidos devido ao “dano” que causam às pessoas vulneráveis e marginalizadas. Se um qualquer cidadão diz que um homem não pode engravidar, eles procuram imediatamente identificá-lo, silenciá-lo, despedi-lo, destruir a sua vida. Se um conservador afirma que não devemos castrar e mutilar crianças em nome da ideologia de género, eles exigem que o estado lhe retire os próprios filhos. Confrontados com o massacre em massa de mulheres e crianças por homens armados, respondem com um encolher de ombros e uma justificação do género “olho por olho” (que também prospera, infelizmente, junto dos defensores incondicionais do estado sionista de Israel). Não se importam com a violência como tal, porque objectivam muito simplesmente exercê-la em exclusividade.

Estas pessoas não estão apenas confusas nem são meramente ignorantes. São pagãos ou ateus radicais e, tal como os terroristas do Hamas que defendem, não podem ser persuadidos nem acomodados. Se é óbvio que Israel e o Hamas não podem coexistir, é igualmente claro que estes dois mundos, o cristão e o niilista, também não podem conviver. Dostoievsky passou a vida a alertar-nos para esta questão: aqueles que rejeitam a origem divina dos princípios morais, acabam inevitavelmente por viver sem nenhuns.

Sob tais circunstâncias, precisamos de reconhecer esta luta pelo que ela é: um combate fundamentalmente religioso entre duas cosmovisões irreconciliáveis. Era após era, o Ocidente cristão foi capaz de ver isto claramente. É por isso que a Igreja Católica trabalhou incansavelmente durante séculos para erradicar o paganismo no norte da Europa. É por isso que os conquistadores espanhóis, confrontados com cultos de sacrifícios humanos e a barbárie dos fundamentos civilizacionais do Novo Mundo, os derrubaram e arrasaram os seus templos. Independentemente dos métodos violentos e, em certos casos, das práticas genocidas (que de qualquer forma são difíceis de julgar hoje em dia, dada a diametral alteração dos contextos históricos), eles compreenderam que não poderia haver paz nem prosperidade em regimes assim niilistas.

Portanto, o problema que enfrentamos hoje é antigo. Mas será que temos a capacidade, a esta hora tardia, de reconhecer o problema e fazer o que for necessário? Provavelmente não. Provavelmente estamos muito avançados no processo de descristianização.

A resposta ao 11 de Setembro é um bom exemplo. Os erros cometidos pela América e pelos seus líderes decorreram do facto dos ataques de 11 de Setembro não terem sido reconhecidos como um acto de volição religiosa. Na verdade, as elites em Washington recusaram activamente que o massacre tivesse motivação religiosa e, por isso, não responderam adequadamente. Convém recordar as palavras infames do então presidente George W. Bush imediatamente após o massacre de 3.000 americanos. Rodeado por líderes islâmicos que partilhavam mais ou menos a visão de mundo básica dos terroristas da Al-Qaeda, ele proclamou que o Islão era uma “religião de paz” e insistiu que não poderia haver qualquer ligação entre o acto terrorista e a fé que os assassinos professavam.

O que se seguiu foi o desastre. O Iraque foi invadido sob falsas premissas e na convicção que o país podia ser ocidentalizado. O Departamento de Estado enviou cientistas políticos para Bagdad para conceber uma base “islâmica” para o constitucionalismo e o Estado de direito. Os resultados foram nulos. No Afeganistão, os americanos foram muito além de oferecer educação às raparigas e mulheres nativas e, em vez disso, passaram décadas e incontáveis milhares de milhões de dólares a evangelizá-las na teoria do género e nos estudos queer. Durante anos, os nossos líderes repetiram ad nauseum a noção estúpida de que, no fundo, todas as pessoas querem viver de acordo com os princípios existenciais e civilizacionais de um subúrbio da Pensilvânia.

Todas estes acontecimentos eram indicações de que a América tinha finalmente cortado os laços com o seu passado cristão e caminhado firmemente, embora talvez de forma inadvertida, rumo a um futuro pagão. As causas profundas do 11 de Setembro nunca foram seriamente abordadas, ou relacionadas com a religião e com o conflito histórico que opõe o cristianismo à fé muçulmana. Essa discussão ficou totalmente ausente da praça pública. Os americanos limitaram-se a acreditar na mentira de que todas as religiões são iguais, ou igualmente infames ou igualmente virtuosas, que a democracia e o liberalismo clássico são transaccionáveis como uma qualquer mercadoria e que podem ser impostos facilmente a qualquer cultura.

Mas uma análise consistente à história do Ocidente terá que reflectir sobre a importância do cristianismo na emergência do estado de direito, da democracia, do progresso científico e tecnológico e da prosperidade material que daí resultou. E não é por certo por acaso que o primeiro princípio da independência americana afirma que todos os homens são iguais perante Deus, ideia revolucionária que é alienígena a todas as restantes religiões no mundo.

A mentira monstruosa – e perigosa também – que podemos viver moralmente sem valores transcendentes e que podemos exportar modelos civilizacionais desapegados dos contextos teológicos e filosóficos de que decorrem é hoje ilustrada por todo o lado, com eloquente intensidade. O conflito que se desenrola no Médio Oriente é fundamental e obviamente uma disputa entre credos. O que é menos óbvio, porque somos um povo pós-cristão, é que o conflito intestino que se desenrola no Ocidente é também de carácter religioso

É óbvio que Israel e o Hamas não podem coexistir. É igualmente óbvio que o Ocidente cristão e o Ocidente anti-cristão não podem coexistir. E num caso como noutro, é difícil descortinar uma solução construtiva. Ou pacífica.