A propósito de um vídeo-ensaio de Carl Benjamin, o fundador e CEO do Lotus Eaters, sobre o assunto em epígrafe, que deixo no fim deste texto, peço a atenção da gentil audiência para um dado estatístico que nesse ensaio é mencionado e que é de significado inequívoco.
Como podemos constatar na página da Wikipedia que lista as obras literárias de conteúdo distópico publicadas ao longo do tempo, a produção editorial sobre o tema começa no século XVIII, com As Viagens de Gulliver, de Johnathan Swift, e estende-se prolixa até 2020. E enquanto entre o ano 2000 e o ano de 2019 foram publicadas centenas de obras dedicadas ao assunto, nos quatro anos da presente década contamos apenas três. Há que notar também que o ritmo de produção literária de âmbito distópico perde ímpeto a partir de 2013.
Reparem:
E porque é que este facto é significativo? Porque demonstra que o apetite de autores e leitores para a literatura distópica se esvaziou repentinamente. E porque é que esta conclusão é importante? Porque ninguém tem vontade de escrever ou de ler distopias quando vive numa. Regra geral e com raras excepções, como a de Yevgeny Zamyatin, os autores distópicos não vivem em distopias. Vivem em democracias liberais.
Como Carl Benjamin, sou da opinião que vivemos, no Ocidente da terceira década do século XXI, já enfiados num contexto distópico. A democracia liberal morreu, por falência da representatividade, fraude eleitoral, conluio de elites, ausência de agentes independentes de escrutínio, colapso da separação de poderes e capitalismo corporativo. A retórica dos protagonistas da vida política é agora mais orwelliana de que Orwell pensou possível, e assistimos quotidianamente à inversão semântica da linguagem: a guerra é paz, a pobreza é prosperidade, a repressão é liberdade. Interditam-se partidos para salvar a democracia e voa-se de jacto privado para salvar o planeta; a censura é espoletada em defesa da verdade, o genocídio é cumprido em nome da saúde pública e a desagregação social é promovida com argumentos humanitários. A desinformação é industrializada por aqueles que a dizem combater, o ‘discurso de ódio’ é proibido por aqueles que do ódio fazem ofício, e a violência psicológica sobre as massas vem mascarada de paternalismo.
No entretanto, os cidadãos são empobrecidos a um ritmo recordista, substituídos nas suas próprias nações por gentes com as quais não partilham qualquer conjunto de valores que promova a convivência pacífica, massacrados com propaganda, relegados a categorias deploráveis ou promovidos à ordem terrorista; alienados com entretenimento de baixa indústria, assustados com garantias de apocalipse, conduzidos como gado e desdenhados como servos da gleba. A classe dirigente tem nojo das massas e as massas têm nojo de si próprias.
Burocratas e tecnocratas não eleitos reinam sobre os destinos de milhões de pessoas, legislando sobre os mais atómicos detalhes da sua existência, assassinando Deus, abolindo costumes e tradições milenares e alterando profundamente as suas vidas de acordo com agendas que ninguém retificou.
A fealdade, a sujidade, o crime, o caos invadiram os grandes centros urbanos.
A ciência foi grosseiramente politizada e as academias escrupulosamente subornadas. A história foi obliterada para ser transformada num exercício contrafactual de culpa e ressentimento. A filosofia é agora uma arte fantasmática. A arte deixou de perseguir o ideal do belo para reproduzir o ideário destrutivo dos poderes instituídos.
As variáveis viscerais que não são dominadas pelos indivíduos, como a raça e o sexo, passaram a significar virtude ou vilania, enquanto características individuais decorrentes da personalidade e da enculturação como o talento, o mérito, a coragem e a integridade foram radicalmente desvalorizadas ou até consideradas indesejáveis.
Como redactor e editor do ContraCultura, aflige-me quotidianamente a sensação de que a realidade supera a ficção e que nem na imaginação dos Huxley e dos Bradbury e dos Asimov e dos K. Dick deste mundo couberam certas abominações de agora.
E Carl Benjamin está carregado de razão: Se o projecto utópico tem em vista a felicidade humana, aquilo a que assistimos hoje em dia é a uma incessante promoção da infelicidade. Afinal, o último objectivo da distopia.
Porque só aqueles que são profundamente infelizes dão bons escravos. E vice-versa.
Paulo Hasse Paixão
Publisher ContraCultura
Relacionados
18 Abr 25
Democracia: entre o ideal e a ilusão.
É necessário reconsiderar o significado de viver numa democracia. Não basta cumprir formalidades ou organizar eleições periódicas; a verdadeira cultura democrática exige justiça e cidadania. Uma crónica de Francisco Henriques da Silva.
17 Abr 25
A minha pátria é Jesus Cristo.
Não há no Ocidente contemporâneo motivos válidos para o amor à pátria, essa mãe por todo o lado inveterada. Ao contrário, o que não faltam são triunfos morais e argumentos irredutíveis em favor da humanidade e do bem supremo, nos ensinamentos de um apátrida.
16 Abr 25
A escuridão cedeu lugar à Luz Eterna.
Longe do nosso alcance, para além da carne e da lógica, brilha uma luz infinita, altiva, insuportavelmente bela. Fonte de toda claridade. Luz das luzes. Uma oração de Paulo H. Santos.
15 Abr 25
A Europa cansou de si mesma.
Há algo de profundamente constrangedor em assistir ao suicídio cerimonial, espécie de eutanásia ideológica, de uma civilização que já foi o pináculo do espírito humano. Uma crónica de Marcos Paulo Candeloro.
14 Abr 25
Donald Trump dedica-se à ficção científica.
Talvez sob o efeito de drogas alucinogénicas, Trump afirmou na semana passada que os EUA têm armas tão poderosas que ninguém faz sequer ideia do seu poder. Nada mau para um país que não conseguiu sequer derrotar os talibãs no Afeganistão.
11 Abr 25
Taxar Trump ou tributar a China?
É curioso ver a histeria provocada pela imposição de tarifas à China - um país que, entre outras delicadezas, mantém campos de reeducação, manipula a sua moeda como um mágico de circo bêbado e trata patentes como sugestões facultativas. Uma crónica de Marcos Paulo Candeloro.