“Que será do homem sem Deus e sem a imortalidade? Tudo é permitido nesse caso, tudo é lícito.”
Escrita em 1879, dois anos antes da morte do autor e talvez por isso, inacabada, “Os Irmãos Karamazov”, de Fiódor Mikhailovitch Dostoiévski (1821-1881) é uma das mais importantes obras da história da literatura. A narrativa relata os infortúnios da família Karamazov e de um crime que é cometido no seu seio, mas é pela sua componente translata, ao nível da leitura psicológica e filosófica da condição humana, que o romance ganha o seu carácter universal.
O problema central de “Os Irmãos Karamazov” resulta de uma dialéctica que podemos personalizar não em Dostoievski, apesar do génio russo muito ter debatido os seus internos dilemas, mas em Nietzsche e em Carl Jung. Enquanto o filósofo alemão decretava a morte de Deus e depositava no Homem a responsabilidade de criar um novo conjunto de valores para-morais que melhor se adaptassem à sua natureza e ao seu destino último, numa espécie de transcendência sem metafísica, o psiquiatra suíço desconfiava que o ser humano é incapaz de criar um sistema de valores que sirvam favoravelmente o seu percurso existencial. Jung achava que Deus era necessário à ética, Nietzsche que a ética era desnecessária.
Ora, Fiódor Dostoiévski estava necessariamente de acordo com Jung, antes de Jung ter sequer nascido, e “Os Irmãos Karamazov”, como a generalidade das suas obras, dedicam-se precisamente a retratar a queda do homem niilista, que assassinou Deus e desistiu de perseguir qualquer quadro moral que não se situe precisamente no território que Nietzche explorou em “Para Além do Bem ou do Mal”.
Abandonados por Deus ou a Deus tendo abandonado, os personagens de “Os Irmãos Karamazov” até dão pena. As mulheres são neuróticas, esquizofrénicas, hesitantes quando devem ser assertivas, impulsivas quando se devem mostrar ponderadas. Tanto Catierina Ivanovna como Grúchenka denunciam um comportamento febril e incoerente que as leva a situações de sofrimento excruciante e constrangedor, que podiam ter evitado facilmente, se pudessem recorrer a uma, mesmo que simplista, bússola moral. Os homens são ainda mais ensandecidos. Fiódor Pavlovitch, o pai Karamazov, é um palhaço devasso e fanfarrão que subiu na vida principalmente devido aos dotes de suas duas mulheres, ambas mortas de forma precoce, e à sua mesquinharia. Dmitri Fiodorovitch, o filho mais velho, é um desgraçado sem carácter nem lucidez, trágico-cómica personagem bipolar, cujo temperamento oscila entre a violência e a compaixão, a razão e o delírio. Na sua desonra clama pela honorabilidade, no amor encontra o inferno e no ciúme, redenção. Ivan Fiodorovitch é uma espécie de Fausto: inteligente para sua danação (as personagens que Dostoievski criava para serem antagonistas do seu pensamento moral são, regra geral, intelectualmente dotadas), sofista por natureza e ateu por convicção científica, Aliêksei é o prototipo do homem que coloca tudo em causa, que questiona todos os valores, que anula a validade de qualquer axioma civilizacional. Sem que disso tire, claro, qualquer proveito.
O único personagem que apresenta um carácter sólido, estabilidade psicológica e emocional, e um constante comportamento ético, é Aliêksei Fiodorovitch, o mais novo dos irmãos, crente e místico, monge piedoso que circula pela intriga como um santo: solícito, correcto, amável e fiel, é a encarnação do homem puro, que existe em harmonia com o divino. Apesar de ser, aparentemente, o herói da história, é difícil de perceber em que medida influencia o seu decorrer. Aliocha transmite recados, ouve confissões, acalma os exaltados, anima os deprimidos, ouve pacientemente as prédicas dos ateus e as dúvidas dos religiosos, mas dir-se-ia inoperante sobre os grandes eixos da acção. Nesta pequena cidade russa, o bem é impraticável.
Novela de inaudita profundidade analítica, experiência ensaística em teologia, drama tchekhoviano antes de Tchekhov e crítica de costumes, “Os Irmãos Karamazov” é também um romance policial: embora na verdade Fiódor Pavlovitch seja o primeiro responsável pelo seu próprio assassinato, dadas as características lamentáveis do seu carácter, somos conduzidos por Dostoievski numa trama de mistério sobre o autor do crime, que só é desvendado no último terço da narrativa. Engalfinhado com o pai por questões financeiras e românticas, (Fiódor e o filho mais velho apaixonam-se pela mesma mulher), Dimitri acaba por ser suspeito, preso, julgado e condenado por parricídio. Isto embora o assassino seja o criado Smierdiakóv, um personagem também repugnante que julgou ter carta verde para o crime por parte de Aliêksei (o relativismo moral deste paga o mais caro preço do sangue). A justiça dos homens, laica e preconceituosa, cega e ufana, não deixa de condenar um inocente.
Nesses últimos momentos da história, é possível acreditar na redenção de Ivan. Depois de ter descoberto a identidade do verdadeiro assassino e de um ataque de febre o ter levado a um estranho diálogo com o diabo, o personagem tenta desesperadamente afirmar a inocência do irmão, no seu depoimento em tribunal. Mas a verdade é que o veredicto não deixa muito espaço à salvação da sua alma.
Obra última, talvez a maior daquele que é um dos grandes génios da literatura, “Os Irmãos Karamazov” é um romance por concluir. E se bem que pareça apontar para um epílogo dentro do cânone da comédia (Dimitri foge da prisão e emigra para a América com Grúchenka, enquanto surge a hipótese de um relacionamento amoroso entre Ivan e Catierina), o leitor está condenado a desconfiar desse “final feliz”. Porque no território existencial de Dostoiévski, não são propriamente permitidas as conclusões idílicas. Nem foi para que casalinhos sociopatas vivessem felizes para sempre, que Cristo desceu à Terra.
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