Chegámos finalmente a um modo tecnológico em que já não podemos acreditar em nada do que vemos ou ouvimos. Quer dizer, podemos se quisermos, mas também podemos optar por não acreditar, porque a apresentação de qualquer coisa numa fotografia, num vídeo ou numa gravação áudio já não é uma prova fiável da realidade.

Em breve, não poderemos confiar no que vemos mesmo à nossa frente quando estamos a dar um passeio no que acreditamos ser o mundo real. De facto, nem temos de esperar por isso, porque o fenómeno é já imanente.

A tecnologia holográfica pode enganar milhões de seres humanos e fazer-nos acreditar em algo que vemos acontecer naquilo que consideramos como território da realidade. Dentro do denso e intenso mundo das teorias da conspiração, há quem proponha, por exemplo, que os aviões que voaram contra o World Trade Center eram holográficos. O Contra, que até entende a teoria da conspiração como um método científico para chegar à verdade fenomenológica deste século ensandecido, não vai por aí. Mas também é verdade que, 22 anos passados sobre esse evento, é muito provável que já exista tecnologia para o fazer, ainda escondida do público num qualquer laboratório do Pentágono, embora a que já é acessível a artistas, criadores e programadores impressione na mesma:

 

 

Por outro lado, a inteligência artificial – que ainda está a dar os seus primeiros passos mas já cria imagens e poemas, realiza filmes, projecta cenários em 3D e até compõe música que passa muito bem por algo criado pela sensibilidade humana – está também a deformar a fronteira entre o real e o imaginário. É verdade que esta imagem de um agitado Donald Trump a ser manietado pela polícia ainda não consegue passar por verdadeira. Mas quantos anos são precisos para que a tecnologia evolua e crie fotos e vídeos de tal forma realistas que sejam verossímeis?

 

 

Quando todos soubermos que é possível às tecnologias digitais a fabricação de uma realidade paralela, então não confiaremos em nada. Tudo nos parecerá inautêntico. De facto, a própria palavra “autêntico” não terá qualquer significado. Estaremos então claramente a co-habitar o país de Alice, incapazes de distinguir entre o sonho e o sonhador, perdidos numa espécie de labirinto de espelhos, sem sabermos quais os que reflectem a realidade e os que projectam ilusões.

Esta diluição do que é concreto numa sopa de conceitos abstractos – ou simplesmente falsos – não resulta apenas da tecnologia, claro, e é até tão antiga quanto o homem. Mas, pelo menos até meio do século XX, o Sapiens – e a ideia de civilização que foi a custo erigindo – sempre conseguiu sobreviver à mentira, à falsificação, à fraude, ao engodo, à manipulação. Sempre acabou, mais tarde ou mais cedo, por saber discernir entre o facto a e ficção, critério essencial para uma existência estável e construtiva.

As coisas foram ficando, no entanto, mais complicadas desde o pós-guerra e principalmente nestas primeiras décadas do século XXI. E se aqui há cerca de oito anos atrás se começou a falar em pós-verdade, a propósito das notícias falsas e da falência do jornalismo como foi entendido durante um século e meio, vivemos agora, neste exacto momento, um apogeu da falsificação da realidade no discurso político, científico e económico que está muito para além desse termo vago e talvez excessivamente académico.

As super-estruturas que detêm o poder no mundo ocidental não são simplesmente capazes de articular a verdade dos factos. E quando ouvimos Trudeau, Biden, von der Leyen, Macron, Sunak, Gates ou Schawb, é impossível não nos lembrarmos de Zamyatin, Orwell ou Huxley. A dualidade do discurso, a inversão da semântica, a projecção nos outros dos pecados próprios, a alienação do senso comum e da experiência que temos da vida e do mundo; a vontade de escamotear, omitir, adulterar, manipular a realidade é de tal forma nítida que nos perguntamos se os próprios mentirosos acreditam nas mentiras que disparam a uma velocidade vertiginosa.

 

É claro que não acreditam. A intenção não é sequer a de que acreditemos neles. A intenção é, claramente, a de nos confundir, de nos retirar as referências, de nos deixar sem coordenadas para bem entender a existência e o cosmos.

Tudo isto costumava ser uma fantasia de ficção científica. Agora já não é. A vertente tecnológica, aliada ao vector político está a terratransformar a percepção que temos das coisas. E a Singularidade não tarda nada; esse momento em que a realidade não tem como ser validada.

Não foi assim há tanto tempo que as provas visuais reinavam, nos tribunais como na opinião pública. Se alguém entregasse a uma mulher casada uma fotografia do seu marido na cama com a secretária, a infeliz não a questionaria como prova de infidelidade. Agora já não é bem assim. E a curtíssimo prazo qualquer criança de 10 anos poderá produzir as provas incriminatórias que desejar, com alguns cliques no rato.

E se assim é, o que não poderá ser quando as máquinas de propaganda se dedicarem à mistificação digital? Que tal uma falsa evidência que dê início a uma guerra? E porque não simular uma invasão de extra-terrestres, em directo, no telejornal? Ou fabricar uma pandemia inexistente, fornecendo aos ávidos e servis meios de comunicação social, imagens realistas de milhares de cadáveres em valas comuns, hospitais a abarrotar de mortos-vivos e pânico de multidões, nas cidades de um país remoto da Indochina?

Muito para além das graves implicações destes cenários, há uma falência mais profunda, que é aquela contada na proverbial rábula de Pedro e do Lobo, que é a de não sabermos o que é real e o que não é. E essa dúvida será devastadora. Todos terão a sua opinião subjectiva sobre quase tudo, todos serão especialistas, todos poderão acreditar naquilo em que decidirem acreditar, seja qual for a razão. Ninguém confiará em nenhum dos habituais fundamentos probatórios da verdade.

O velho adágio bíblico de “ver para crer” deixará de ter qualquer significado.

Pior: as pessoas vão aceitar a submissão a este processo com a mesma atitude passiva, a mesma filosofia bovina com que aceitaram outros processos mais grosseiros de desagregação da realidade. As pessoas não vão sentir qualquer angústia em relação a nada disto, simplesmente não se vão importar. Vão até engolir as “vantagens do progresso”, mesmo que ensandeçam no entretanto. Vão encolher os ombros, mesmo quando estiverem definitivamente perdidas numa qualquer e tenebrosa novela virtual. Vão ver um vídeo de uma frota de discos voadores a atacar uma cidade e não vão pestanejar. Apenas assumirão que nada é de confiança – excepto aquilo de que estão convencidas que é verdadeiro, por qualquer razão obscura, mesmo que de verdadeira essa crença integre menos que zero.

É aqui que reside o perigo fundamental: quem quer que seja ou o que quer que seja que se apodere da psique colectiva e consiga convencê-la de que o que diz é verdade, não precisará de provas reais para fortalecer a sua posição. Se as pessoas acreditarem que tal ou tal pessoa está a dizer as coisas como elas são, então tudo o que essa pessoa ou instituição apresentar como verdade probatória será aceite.

Vemos isto acontecer neste momento. As massas acreditam na autoridade de um Fauci, de um Zuckerberg, de um Bourla, de um Zelenskyy, de um Ricardo Araújo Pereira ou de um reles pivot de telejornal, cuja profissão é precisamente a de afastá-las da verdade.

Não haverá verificação, não haverá confiança no senso comum, não haverá investigação inteligente para determinar se o que estão a ver é real ou não. Nada do que costumava ser uma prova da realidade é fiável, pelo que seremos todos facilmente manipulados.

E esta conjectura está muito para além de qualquer ideia que possamos ter do inferno.