Apesar do fascismo escolástico que recusa a discussão do assunto, quanto mais leio Platão mais convencido fico da natureza heteronímica de Sócrates. Sei bem que esta é uma questão arrumada pelos epistemologistas mais sérios de todo o planeta académico, mas como não sou académico, tenho toda a liberdade para me divertir com o assunto. O que se segue é um exercício descarado de pura especulação, mas, pelos deuses todos da sabedoria clássica, não me parece menos especulativa a ideia geralmente aceite de que o iniciático palrador que fundou o pensamento ocidental tenha existido realmente como um homem de carne e osso. Eu explico.
TESE: SÓCRATES, O ANIMAL PERFEITO.
Vida e morte de um mito.
A versão oficial é convenientemente picaresca: Sócrates nasce em Atenas, provavelmente no ano de 470 a.C., para se tornar um dos principais pensadores da antiguidade. Filho de um escultor e de uma parteira (facto que lhe possibilitou vários exercícios metafóricos), passa por aristocrata durante toda a sua vida. Em jovem aprende música e literatura, mas cedo acaba por se dedicar exclusivamente à meditação e ao desvario filosófico, actividade de que faz profissão se bem que recusando peremptoriamente a cobrança de honorários. Já adulto, notabiliza-se como cidadão íntegro, soldado intrépido e intelectual credenciado. Combate heroicamente as várias batalhas da Guerra do Peloponeso, e – por isso – são-lhe atribuídos alguns cargos públicos que cumpre com desinteressado escrúpulo. Na verdade, o grande Moscardo não deseja trabalhar nem precisa de ganhar a vida. Ostentando a sua austeridade, prefere simplesmente viver à conta das festanças entre os amigos que por acaso até fazem consistente parte da nata social de Atenas.
Casado com Xântipe, tem constantes problemas matrimoniais, provavelmente derivados do alheamento que dedicava aos assuntos materiais e domésticos, tanto como por causa do seu conhecido gosto por colóquios bem regados e simpósios orgíacos (convém informar a gentil audiência que Sócrates seria um reputadíssimo seca adegas, conhecido por permanecer sóbrio mesmo quando todos na festa já estavam completamente bêbados).
Apesar dos diversos chamamentos, faz sempre o possível por se conservar afastado da vida pública e política, servindo a cidade por viver justamente e por formar cidadãos sábios, honestos e temperados. Tudo isto à borla e por antítese dos sofistas, que agiam para seu próprio proveito e formavam grandes egoístas, capazes unicamente de se acometerem uns contra os outros e escravizar o próximo.
Sócrates era porém um revolucionário. Armado da sua dialéctica prosápia, sai pelas ruas a fazer perguntas incómodas, a pregar a ética, a reduzir os dogmas a cinzas e as convicções a fumo. Libertário por essência, incomoda deveras a Oligarquia dos 30, que se agita em desconfortos e protestos. Às páginas tantas, Mileto, Anito e Licon, três importantes burocratas da tirania ateniense do pós-guerra do Peloponeso, acabam por acusá-lo de impiedade, de corromper a mocidade e de negar os deuses da pátria. Sócrates entrega-se ao julgamento com toda a calma do mundo e aproveita a audiência para mais uma sábia palestra. Para escapar à cicuta só tem que mostrar um comedido arrependimento, mas Sócrates recusa semelhante ignomínia e, insistindo na necessidade de uma sentença exemplar, acaba por ser condenado pelos jurados, que transpiram embaraço.
Da sentença à execução passam 30 dias de conferências de imprensa na sua cela transformada em Grande Auditório. No entretanto, um dos seus discípulos – Criton – prepara a fuga do Mestre, mas Sócrates recusa a hipótese, por não querer desobedecer às leis da pátria. No dia marcado, ingere tranquilamente o veneno. Tem 71 anos.
Como testamento da sua intransigente integridade ética, as últimas palavras daquele que será, talvez, o mais destacado e influente filósofo da história da humanidade são as seguintes:
“Críton, devemos um galo a Asclépio… Paguem-lhe, não se esqueçam.”
Pensamento e método.
Como Cristo e Confúcio, Sócrates não escreve uma linha; prefere dar-se descontraidamente à palheta com mulheres e crianças, pedintes e escravos, ricos e pobres. Nunca fundará uma escola, opta por filosofar alto nos espaços públicos, nos fóruns e nos ginásios. Respeitando obstinadamente o método dialéctico e interrogativo (maiêutica), que leva o interlocutor a esbarrar em contradições e a confrontar-se com os seus dogmas, o diálogo socrático (na verdade um monólogo entrecortado por interjeições de concordância vindos da audiência, mesmo que hostil) procura a catarse e a educação para o auto-conhecimento, única fonte de sabedoria.
Sócrates preocupa-se sobretudo com as questões elementares da existência humana, procurando definições gerais para os conceitos de justiça, amor e virtude, e definindo a alma como uma singularidade ética e racional, coisa que apenas irá influenciar decisivamente o pensamento ocidental para todo o sempre. Em certo sentido, até Cristo é socrático: só é feliz quem é moral. E só através da perfeição moral é liberta a alma da vida terrena para as esferas celestes. Viveremos o tempo que for preciso e as vidas que forem necessárias até aprendermos a ter um comportamento decente.
Isto tudo apesar de um discurso eminentemente anti-programático. Sócrates não facilita a vida a ninguém. Não se chega à frente com verdades absolutas e praticamente não oferece respostas às suas próprias perguntas. Como Descartes fará um bom bocado de tempo depois, o humilde pagão gosta de instalar a dúvida e usa-a como instrumento do saber.
Os suspeitos do costume.
Como não era dado à pena, a existência e o pensamento de Sócrates deve-se fundamentalmente aos testemunhos de 4 homens: Platão, Xenofonte, Aristóteles e Aristófanes. Não incluo Plutarco, como é costume bibliográfico, porque não o considero uma fonte directa. Plutarco viveu três séculos depois do decorrer da acção e era já um poeta greco-romano, interessado sobretudo em entreter os césares com os mitos de Atenas. Levá-lo a sério como testemunho da vida de Sócrates é equivalente a darmos como certa a existência real de Ricardo Reis mediante o relato do último ano da sua vida feito por José Saramago.
Platão escreveu mais de duas dezenas de Diálogos, que chegaram inteiros à modernidade. Com a exceção do último – As Leis – em todos os outros Sócrates é um dos personagens, e na maioria deles é o personagem principal.
Existe uma certa controvérsia entre os estudiosos a respeito de quais são os diálogos em que Platão reproduz realmente a doutrina do seu mestre, por oposição àqueles em que se limita a utilizar o velho moscardo para expressar a sua própria filosofia. De qualquer maneira, é geralmente aceite que muitos dos Diálogos são relatos de factos historicamente ocorridos, constituindo a fonte primeira para o conhecimento da vida de Sócrates.
Xenofonte deixou-nos em “Ditos e Feitos Memoráveis de Sócrates”, a segunda fonte mais importante sobre a pessoa e o pensamento do incómodo inquiridor. No entanto, nesta obra, Xenofonte relata que Sócrates conhece bem diversos assuntos alienígenas à tradição académica ateniense. Como o filósofo nunca se ausentou da Cidade, a não ser para andar à cabeçada com os espartanos, e não consta que tivesse grandes contactos com os congéneres do sul da Itália, nem com os da Ásia Menor, nem que se desse a viagens ao Egipto ou à Pérsia, não está bem claro como é que o santo homem dominava esses assuntos.
Aristóteles refere-se um punhado de vezes a Sócrates mas em função da sua filosofia e não da sua biografia.
Apesar do seu pacifismo meio hippie, Aristófanes (450-355 A.C) era, por natureza, um agressor. Criava comédias para morder as canelas dos incautos, sátiras para massacrar os livres de espírito e poemas para azucrinar a consciência dos reformistas. Contundente crítico das artes sofistas da persuasão, feroz inimigo do teatro de Eurípedes e adepto da liderança de Péricles, Aristófanes ataca a dialéctica de Sócrates na famosa comédia “As Nuvens”, ridicularizando o filósofo por ignorar os deuses, comparando-o algo injustamente, diga-se, com os sofistas e colocando-o, despudoradamente, no grande saco dos demagogos. Esta peça é a única escrita por Aristófanes que se queda num embaraçoso terceiro lugar nas Dionisíacas, uma espécie de olimpíadas da literatura grega que o homem estava habituado a ganhar invariavelmente.
ANTÍTESE: SÓCRATES, O HOMEM IMPOSSÍVEL.
Super-Estruturas: Estado e Academia.
É minha convicção que a figura de Sócrates não é histórica, mas literária: um heterónimo de Platão. Para elaborar convenientemente os argumentos a favor desta ideia, convém começar pelas super-estuturas psicológicas e institucionais e entender a democracia dos cidadãos de Atenas, bem como a sua abordagem à filosofia como disciplina literária.
As regras da democracia helénica não são as da democracia liberal do século XVIII. Numa cidade de 230 mil pessoas, 150 mil eram escravos e 60 mil, mulheres, ambos os segmentos demográficos sem qualquer direito político. Restavam portanto 20 mil homens, que eram facilmente manipulados por uma elite de aristocratas e burocratas que detinham os cargos públicos. Deve também dizer-se que a democracia, em Atenas, aconteceu de cima para baixo: foram as elites que ofereceram os direitos à massa urbana e rural e não o contrário. Não houve qualquer evento revolucionário em Atenas e o poder – em termos políticos, sociais e económicos – nunca mudou de mãos nas transições entre as oligarquias e as democracias. Dou um exemplo: quando Atenas perde a guerra do Peloponeso, Esparta instala no poder 30 tiranos. A maior parte deles eram funcionários das instituições públicas do anterior regime. Alguns seriam, segundo Platão e inclusivamente, discípulos de Sócrates. Daqui se conclui que a mobilidade social da República era pouco mais ou menos equivalente a zero. Um nobre será um nobre, um plebeu será um plebeu, um escravo será um escravo até que a morte os conduza à igualdade das cinzas.
Depois, há que ter sempre em mente, para compreender o meu argumento, que a tradição filosófica grega é eminentemente literária e oral, ou seja: não ensaística. O seu processo pedagógico evolui através de rábulas, de parábolas e da construção de personagens que se debatem numa comédia de costumes. A filosofia apreende-se como uma dramaturgia e ensina-se pelo diálogo. É, fundamentalmente, uma charada.
Acresce que todo o imaginário ideológico sobre o qual decorre a acção é dominado por duas escolas adversárias: a da Academia de Atenas e a da corrente Sofista. A primeira é fundada por Anaxágoras (500-428), será dirigida, no seu apogeu, por Platão e é dialéctica e moralista. A segunda é essencialmente retórica, niilista e mercenária. Um sofista é uma espécie de Maquievel pré-histórico, disposto a justificar filosoficamente qualquer acto do seu príncipe, a troco de justa avença. É claro que esta visão cínica dos sofistas se deve ao lamentável facto de terem ficado para a posteridade apenas nas linhas de Platão e Aristóteles, seus adversários de sempre.
Uma história mal contada.
O primeiro facto biográfico de Sócrates começa logo por ser muito suspeito: de origem plebeia, terá desde cedo uma vidinha boa de aristocrata, primus inter pares. Dir-me-ão que o homem conquistou o seu estatuto através do bravo comportamento em combate, o que é de uma inocência que dói. O filho de uma parteira e de um escultor (leia-se: pedreiro) seria apenas mais um soldado nas fileiras do exército, cujas façanhas, por muito heróicas que se manifestassem, estariam invariavelmente condenadas ao anonimato (Aquiles, o maior guerreiro da história da humanidade, para ser o herói de Homero teve que descender dos deuses).
O facto da mãe de Sócrates ser parteira é também estranhamente convergente com o entendimento que o sábio mostrava da filosofia: o conhecimento é intrínseco ao individuo, permanece adormecido no útero da sua alma e compete ao filósofo apenas ajudar a tornar consciente, a parir, essa sabedoria moral. Convenhamos que dá mesmo jeito à metáfora, não é?
A juventude de Sócrates é curiosa: a sua educação baseia-se em duas disciplinas caras a Platão (a música e a literatura) e, sabe-se lá porquê – acaba por embicar com a filosofia. Não se lhe conhece um mestre, um professor ou a frequência de qualquer academia. Como Platão (e como Aristóteles), confessa-se influenciado por Anaxágoras (outro condenado pelos cidadãos de Atenas) e despreza os sofistas. Ora, numa cidade que deu à estampa da história mais filósofos por metro quadrado que pedras na Via Ápia, este é o único caso de um pensador que surge por geração espontânea. Não pertence a qualquer escola das ideias do seu tempo, é um desalinhado. Não aprendeu a pensar com ninguém, é um auto-didata. Faz lembrar um pouco aqueles personagens do Kafka, transparentes e isolados, sem relações com o mundo que transcendam o estrito âmbito da funcionalidade narrativa. Sócrates não tem professores, tem discípulos. Não tem amigos, tem interlocutores. Não se apaixona (se exceptuarmos o episódio de Alcíbiades, que é relatado por Plutarco e que tem a credibilidade de uma aventura de Dan Brown), não vai às putas, não tem fraquezas nem vícios e nunca se encoleriza. É humilde e honrado, soldado bravo e intelectual sensível (uma impossibilidade ontológica); austero sem deixar de marcar insaciável presença nas orgias dos oligarcas. Se a tudo isto, adicionarmos a proverbial alergia ao dracma e o total desinteresse pela vida material (não faz simplesmente sentido que o maior pensador da antiguidade se comportasse como um mendigo, vivendo do vinho esmolado e do ar mediterrânico) começamos a perceber que não é de um ser humano que estamos a falar, mas sim de um personagem de ficção.
O seu casamento também é de banda desenhada. Sendo portador das notáveis qualidades já citadas não se percebe porque raio aceita casar com Xântipe, uma megera (cito Platão) sem interesses físicos, intelectuais ou financeiros, de quem passa a vida a fugir a sete pés. Porém, se pensarmos no horror e na desconfiança que Platão nutria pela mulheres, entendemos melhor a dicotomia: Sócrates representa o homem modelar que define a virtude e a grandiosidade; Xântipe traduz a mulher comum, que sintetiza a vilania e a mesquinhez. Desconfio até que Platão devia concordar com Nietzsche neste ponto: um filósofo casado pertence à comédia.
Seja como for, Sócrates mostra-se, em vida como na morte, mais digno que Jesus Cristo. Este, pelo menos, tem ataques de mau feitio, pactua com prostitutas e não esconde o sofrimento do calvário nem o suplício da cruz. A forma como Sócrates leva até ao fim o seu processo judicial e como, sendo inocente, na verdade, aceita a pena máxima com toda a naturalidade e algum excesso de zelo até, é, de todo em todo, extraterrestre. Além disso, o episódio do julgamento de Sócrates parece-me, em si mesmo, bastante improvável. Anaxágoras, por motivos que excederam largamente a simples palheta subversiva, também foi acusado de impiedade, mas a pena ficou-se pelo exílio. E não cabe na cabeça de ninguém com juízo que um colectivo de juízes contrafeito, mandatado por uma oligarquia que incluía alguns dos seus discípulos, condene Sócrates à morte por beliscar a sensibilidade pública. Da mesma forma que é difícil acreditar que um homem de carne e osso exija a sua própria condenação, tanto mais dado o pormenor infeliz de estar inocente!
Uma conspiração de espertos.
Tenho consciência de que, em favor do ponto de vista que defendo, terei de vos convencer que Platão contou com a cumplicidade das restantes fontes que testemunham a vida real de Sócrates, o que até não é assim muito difícil. Para já porque Platão, Xenofonte e Aristóteles são contemporâneos. Depois porque são amigos. Acresce que partilham a mesma cor política. E por último, talvez o mais importante: se Aristóteles é discípulo de Platão, Xenofonte é fã deste e os dois acreditam firmemente no novo conceito que o seu mestre inventou para revolucionar para sempre a história do pensamento: o ser humano é constituído dualmente por um corpo e por uma alma.
Da maneira que vejo as coisas, o que estava em causa era de tal forma importante que tanto Xenofonte como Aristóteles não hesitaram em corroborar a existência de Sócrates, alimentando a falácia em nome de uma nova e fundamental visão moral do homem. (Lembro, a título comparativo, a cumplicidade estética e filosófica entre Almada Negreiros e Fernando Pessoa, que teve resultados surpreendentes como as famosas dedicatórias de Almada a Álvaro de Campos. Tudo em nome do triunfo do Modernismo). Não custa nada imaginar um acordo de cavalheiros, baseado numa sensibilidade epistemológica mútua, que possibilitasse a criação de um personagem credível sobre as eras.
Em qualquer caso, a solicitação de Platão não é exigente: a Aristóteles, cabe a missão nada complicada de utilizar na sua obra, a espaços, a figura intelectual de Sócrates, corroborando o seu património filosófico e não biográfico. Já Xenofonte, dedica a Sócrates uma compilação de textos sem grande interesse, redundantes e elogiosos (como o episódio do Oráculo de Delfos), nitidamente redigidos por encomenda.
Mais achas para a fogueira.
Encontramos mais razões para desconfiar da existência real de Sócrates se pensarmos em Homero, que sendo a grande referência literária do Ocidente, provavelmente nunca existiu como ser humano concreto (tudo indica que se trata de um alter ego utilizado por sucessivos escribas que passaram ao papiro a tradição oral da literatura cosmogónica grega). Se soubermos que o verdadeiro nome de Platão era Arístocles e que ele sim fez as tais viagens que faltavam a Sócrates para dominar os assuntos todos de que fala Xenofonte. Se percebermos que toda a filosofia de Sócrates explora a distorção entre o aparente e o real, manifesta integralmente através da Alegoria da Caverna. Se consciencializarmos que há textos atribuídos a Platão que não são de Platão, como apócrifa é uma parte significativa do novo Testamento e de outros textos bíblicos. Se tivermos sempre presente que mesmo os personagens secundários da acção como Criton, o fiel e prestável discípulo de Sócrates, ou Mileto, Anito e Licon, os seus três acusadores, devem a sua existência apenas aos escritos de Platão. Se equacionarmos todas estas variáveis, não é disparatado conceber que este é um universo, de todo em todo, ficcionado.
Aristófanes e as nuvens da dúvida.
Mas se as fontes que revelam a existência real de Sócrates não são fiáveis porque são oriundas todas do mesmo e militante esquema ideológico, que dizer de Aristófanes então, um arrivista dissidente, inimigo virulento de Sócrates, a quem recomendava que fosse para casa cuidar da sua esposa mal amada, em vez de andar pelas rua a envenenar as mentes com perguntas cínicas para as quais nem ele tinha respostas.
“As Nuvens” é uma peça que data de 423 antes de Cristo (mas também há quem refira o ano de 419). E é aqui que se coloca verdadeiramente o mais forte contra-argumento: Sócrates não pode ser uma invenção literária de Platão, já que este tem apenas 4 anos (ou 7, ou 14) quando Aristófanes ridiculariza o personagem. A acreditarmos nestas datas, a minha pobre tese cai aos trambolhões pela escada do bom senso a baixo.
Porém, a datação das obras literárias clássicas é, no mínimo, polémica e a acreditarmos na versão oficial, Aristófanes tinha já escrito, pelo menos, 8 grandes êxitos de bilheteira com a singela idade de 27 anos, recorde que deixa a performance de Shakespeare a milhas. Mas, mais importante, a data da peça insere-se em pleno período da Guerra do Peloponeso (431-404 a.C.). Ora deixem-me que vos pergunte: é lógico supor que um jovem crítico da guerra, numa nação em guerra, seja aclamado? A Grécia Clássica não vive uma realidade política análoga à da civilização ocidental contemporânea. Não podemos cometer o pecado de inocência de pensar que um puto cheio de talento, com muita veia e com alguma piada pudesse fazer e desfazer a seu belo prazer as instituições democráticas. Voltando à metáfora anterior: a cabeça de Ricardo Araújo Pereira, se bem que mais ajuizada, teria já desaparecido do seu lugar natural.
O problema da datação é aliás evidente dentro de si próprio. O tal vergonhoso terceiro lugar das Dionisíacas, acontece apenas em 420 a.C. Mais: sabe-se que Aristófanes introduziu alterações à peça posteriormente, embora não se perceba exactamente quando, nem qual o teor dessas mexidas. Para reforçar a incerteza, a própria data de nascimento do célebre parodiante é inúmeras vezes colocada em causa. Há quem aponte para o ano de 445 d.C.; há quem indique 446 e há quem refira 450.
Há também quem posicione o problema de pernas para o ar e defenda que Aristófanes caricaturava um filósofo “pré-socrático” e que aquele representado por Platão era um pensador mais maduro, que tinha sido precisamente influenciado pelas críticas do célebre comediante grego. Há ainda outros académicos que olvidam completamente o imbróglio da datação e assumem que “As Nuvens” é um trabalho que só poder ser entendido à luz da histórica rivalidade entre modos de pensar poéticos e filosóficos, encarando a peça como uma disputa intelectual directa entre o seu autor e Platão.
Assim, sendo, a datação desta peça, por si só e dadas as distâncias temporais e os nevoeiros da história, não me convence.
Datas à parte, a coisa torna-se mais clara. O contra-argumento de que Aristófanes não é do clube de Platão e que não tem, por isso, interesse político em corroborar a sua personagem de estimação, não é lá muito sólido: Aristófanes é uma figura altamente contraditória. Fascistóide em democracia, torna-se rapidamente um inimigo da Tirania dos 30, muito simplesmente por lhe impossibilitarem a literatura feérica. Oscila entre um conservadorismo seminarista e a raiva libertária para acabar os seus dias como militante da Academia de Atenas, negando que alguma vez considerou Sócrates (ou Platão) inimigos políticos e surgindo até nos Diálogos como delicado e reverencial interlocutor do velho moscardo. De tal forma que, quando morre, tem em Platão um fã incondicional, como se percebe por esta frase do autor da “República”:
“As Graças procuravam um altar eterno.
Acharam-no na inteligência de Aristófanes.”
Aproveito o balanço e pergunto-vos, por minha defesa: porque é que se sabe tão pouco da vida de Eurípedes, que é só o redactor número um da Tragédia Grega, e tanto de Aristófanes, um simples cómico? Não será a sua peça menos aclamada – “As Nuvens” – aquela que lhe garante afinal um lugarzinho porreiro no Louvre da posteridade? Vista a coisa deste prisma, sobra um excelente negócio para ambas as partes: Aristófanes conquista a infame e imortal reputação de ter sido um dia senhor com fôlego satírico para ridicularizar um dos raros seres humanos da história universal que não é ridicularizável. Platão ganha mais um adereço para o disfarce.
Mesmo que a cumplicidade que insinuo em cima, não se verificasse de todo, outra possível proponho: quando Fernando Pessoa se zanga com os estudantes de Coimbra (por causa de um absurdo ataque puritano dirigido à lírica mais ou menos gay de António Botto), o que é que faz o génio? Puxa do seu heterónimo sensacionista de sempre e chuta o “Aviso por Causa da Moral”, um dos mais sublimes bocados de prosa de intervenção da língua portuguesa. O facto de Aristófanes esconjurar Sócrates em vez de Platão não quer dizer tanto assim sobre a existência de Sócrates, mas é bastante elucidativo quanto ao poder e ao estatuto de Platão. Fernando Pessoa mascara-se de Álvaro de Campos, Aristófanes esconde-se em Sócrates. É claro que todos sabem quem são de verdade, mas não é isso que importa pois não? Como já tive ocasião de demonstrar em parágrafos anteriores, os gregos do tempo apreciavam a charada. E não foi por acaso que inventaram a máscara.
Acresce que o proverbial desprezo de Platão pelas mulheres – detectável pelo menos de 3 em 3 páginas da “República” (só um exemplo) – é uma tendência sociopata que, a certa altura, parece ser partilhada por Aristófanes. Já convertido ao pensamento reformista, o comediógrafo escreve a “Assembleia das Mulheres”, sátira montada sobre a ideia de um Estado administrado por matronas, que resulta na violação da propriedade e numa tirania das velhas fêmeas sobre os moçoilos imberbes. Este, parece-me, mais uma vez, um texto encomendado. Como é bom de ver, Aristófanes e Platão tinham mais em comum do que pode entender a imaginação de Horácio.
SÍNTESE: SÓCRATES, O HETERÓNIMO IDEAL.
Enumeradas as contradições e os lapsos, já dissecada a sintaxe do crime, resta-me a semântica do seu motivo.
Descendente de Codros, rei mítico de Atenas, corre nas veias de Platão o puro sangue azul da divina linhagem; o homem é um aristocrata Classe A que não pode ser herói aos quadradinhos da filosofia explicada ao cidadão comum. O mesmo argumento, aliás, tem sido utilizado desde o princípio do Século XX em favor da hipótese de Francis Bacon ser o verdadeiro autor de grande parte das peças de Shakespeare, não passando o bom William de um limitado produtor teatral que de bom grado oferecia o seu nome como protecção ao lorde chanceler, redactor de grandes e sucessivos blockbusters, já que na Inglaterra Isabelina a criação dramática estava uns degraus abaixo da conduta exigida a um nobre.
Ora, de forma a consagrar a dimensão oral e literária da filosofia grega, Platão precisava de um personagem moralmente superior, um super-herói acima das necessidades e dos vícios próprios da condição humana, cuja voz impoluta trouxesse legitimidade a uma Filosofia da Ética e pregasse pelas ruas a nova verdade. Um homem de origem humilde que não ofendesse os pobres, mas de comportamento exemplar e esmerada educação para viver com naturalidade entre os poderosos e ser reconhecido por eles. Um profeta Zen e um guerreiro temível. Enfim e em síntese, 19 séculos antes de um certo alemão torturado pelas enxaquecas, Platão teve que inventar o seu próprio Zaratustra.
A virtude sobre-humana com que Platão dotou Sócrates percebe-se. Para desacreditar os sofistas e o seu esquema amoral da consciência humana, para afirmar que as exigências do corpo devem ser vencidas de forma a atingir a transcendência da alma, será necessário alguém que não tenha um passado realmente vivido, uma falha de carácter, um erro cometido, uma injustiça perpetrada, uma ressaca mal curada, um insulto a despropósito, uma vaidade declarada, uma fraqueza da carne. E é claro que este tipo de gente só se pode encontrar nos territórios infindáveis do reino do faz de conta.
Assim, à conveniência de um herói que se recusa a escrever uma linha que seja – justificando-se a ausência de testemunho próprio e a necessidade de um narrador – junta-se a utilidade de um indivíduo cujo discurso é a cem por cento coerente com a sua praxis quotidiana.
A filosofia de Sócrates é, também, apropriadamente ambígua. O Mestre não confessa mais do que a sua ignorância perante o mistério, deixando a verdade filosófica para o capítulo subjectivo de cada alminha. O grande pensador não ilumina com respostas, elucida com perguntas. Assim, fica liberto o programa de acção para que seja Platão a estabelecer os sólidos paradigmas do pensamento clássico, baseados numa rudimentar Filosofia do Não, meio visionária por só ter sido reencontrada em Bachelard, vinte e três séculos depois. Sócrates, o profeta, abre assim caminho para Platão, o redentor. Enquanto um pergunta pelo que é justo, o outro define a justiça. Enquanto um se interroga sobre a beleza, o outro determina o que é belo. Enquanto um faz implodir os velhos dogmas o outro cria dogmas novos e assim por diante. Na competição pelo primeiro lugar das olímpiadas da posteridade é, naturalmente, Platão que sai a ganhar (ninguém alimenta uma paixão socrática, mas todos sabemos o que quer dizer um amor platónico). O que é aliás de inteira justiça.
Em resumo: porque a história da vida de Sócrates é de telenovela e tem lapsos evidentes e tem contradições profundas, eu alimento suspeições. Porque as fontes que testemunham a sua existência real são escassas e dominadas pela interacção com Platão, eu entretenho desconfianças. Porque Platão precisava de um personagem absolutamente moral – portanto ficcional – que lhe vendesse a mercadoria filosófica já madura de sentido ético, eu proponho o revisionismo. Porque é Platão que acaba por fechar o sistema que Sócrates deixa em aberto, eu alvitro a heteronímia. O disfarce. O fingimento.
Erasmo conclui o seu célebre Elogio da Loucura desculpando-se perante aqueles que o acharam desvairado: é que falou como uma mulher. Considerando o horror de Platão pelo género feminino e o seu obsessivo gosto pelas charadas, imagino que lhe agradaria um final assim.
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