A profusão normativa e regulamentar de que sofre o sistema de ensino, por via da contínua e labiríntica produção legislativa, indicia que o Estado português tem alguma dificuldade em compreender o que é e para que serve a escola1. Por outro lado, essa produção contínua de leis, decretos, portarias, despachos, regulamentos, que se vão sobrepondo e anulando uns aos outros, servem para afundar numa permanente instabilidade o sistema de ensino, colocando os seus agentes sob o domínio da incerteza.
A especialização e a complexificação de normas, procedimentos e enquadramentos teóricos, são um sinal do nosso tempo. Mas também são um sintoma de desorientação, que impede a estabilização de modelos operativos que permitam conferir eficácia e previsibilidade às soluções encontradas e dar sentido à necessidade colectiva de transmitir, transformar e produzir conhecimento. Afinal, deve ser esse o principal propósito dos sistemas educativos.
A avaliação das aprendizagens, neste contexto, resulta num processo complexo, assente em premissas que se multiplicam à velocidade da produção normativa, de estratégias políticas assentes no primado da estatística e dos paradigmas pedagógicos que vão nascendo da especulação académica, em torno de modelos muitas vezes desajustados da realidade quotidiana. Essa realidade, cruelmente material, espelha-se, por exemplo, na crescente dificuldade em manter níveis aceitáveis de urbanidade na sala de aula, de proteger a respeitabilidade – para não referir o banido termo “autoridade” – do professor, de preservar a sua integridade profissional, moral e física, de garantir, enfim, as condições mínimas exigíveis a uma relação pedagógica susceptível de dar cumprimento ao preceito constitucional segundo o qual todos têm direito ao ensino com garantia do direito à igualdade de oportunidades de acesso e êxito escolar2.
Porém, uma escola inclusiva, que garante a todos o direito à igualdade de oportunidades de acesso e êxito escolar, não é uma escola que desiste de ensinar, de transmitir, transformar e produzir conhecimento. Não é uma escola resignada, que busca o mínimo denominador comum da aprendizagem e abdica da exigência, fundamental num sistema de ensino que se propõe transmitir e criar conhecimento, em favor de uma pseudo-democraticidade no acesso ao saber, cujo resultado, muitas vezes, é esse saber não chegar a ninguém. Não é uma escola permissiva que, em nome de paradigmas pedagógicos críticos, e da fábula republicana de uma educação para a cidadania, se demite do seu papel regulador dos comportamentos e da sua missão formadora de condutas. Se por mais não fosse, o relatório de 2023 do Conselho Nacional de Educação3 deveria fazer reflectir os responsáveis pelas políticas educativas nacionais sobre o caminho que, enquanto comunidade, estamos a trilhar no ensino:
Em todos os níveis de escolaridade do ensino básico e em várias disciplinas, há percentagens elevadas de alunos que não aprendem o que está previsto no currículo. São particularmente inquietantes os resultados nas disciplinas de matemática e os desempenhos no domínio da língua escrita. O mesmo se pode dizer relativamente às competências digitais. Por exemplo, nas provas de aferição, 69,7%, 57,5% e 60,8% dos alunos do 2.º ano, assim como 75,8%, 90,4% e 79,7% do 8.º ano, revelaram dificuldades, respectivamente, nos domínios da matemática de números e operações, geometria e medida, organização e tratamento de dados.
A escrita é um desafio para mais de metade das crianças do 2.º ano, 56,0%, que revelaram dificuldades ou não conseguiram de todo responder às tarefas.
(Conselho Nacional de Educação, 2024)
Segundo o citado relatório do CNA, no 8º ano do ensino básico cerca de 90,4% dos alunos apresentaram resultados inquietantes e não aprendem o que está previsto no currículo no domínio da geometria e da medida. Qualquer professor de Educação Visual do 3º Ciclo testemunha as dificuldades que os estudantes manifestam na compreensão e execução de traçados geométricos simples (para não falar sequer em saber pegar no lápis), como a mediatriz, a bissectriz, a divisão do segmento de recta, a inscrição no círculo de polígonos regulares. Porém, a média nacional das classificações finais escolares da disciplina de Educação Visual no 9º Ano, em 2022/2023, foi de 3,9 valores (numa escala de 1 a 5), ou seja, uma classificação equivalente a Bom. Alguma coisa parece não estar bem ou, como se costuma dizer, não diz a bota com a perdigota.
No mesmo ano lectivo, a média das classificações escolares finais de Matemática foi de 3,1 valores, enquanto a dos respectivos exames nacionais foi de 43%, correspondente a 2,1 valores na escala de 1 a 5. Ou seja, as classificações escolares de Educação Visual espelham uma realidade incompatível com as conclusões da CNA – e dificilmente conciliável com o senso comum – , enquanto as de Matemática estão 20% acima da média dos exames nacionais.
Esta inconformidade estatística, que em maior ou menor grau se revela nas restantes disciplinas, instala a dúvida sobre as metodologias de avaliação e respectivos critérios usados pela escola pública na classificação dos seus alunos, criando uma percepção, sobre a aquisição de conhecimentos e o dito sucesso escolar, que dificilmente se adequa à realidade. Mais do que isso, permite que se infira que a estatística está a ser usada no sistema de ensino, não como instrumento de aferição dos resultados da aplicação de políticas públicas de educação, nomeadamente no âmbito curricular e pedagógico, expressos na aquisição efectiva de conhecimentos por parte dos alunos, mas como dispositivo político destinado a criar percepções não confirmadas pela experiência concreta.
BRUNO SANTOS
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1 Ou, então, compreende muito bem.
2 Artigo 74º, nº 1 da Constituição da República portuguesa
3 Conselho Nacional de Educação. (2024). Estado da Educação 2023 (D. Fernandes, Ed.). Conselho Nacional de Educação (CNE).
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