O primeiro século do cristianismo está envolto em mistério. O que sabemos com algum grau de certeza, em contraste com o que nos dizem os relatos tradicionais, provém de um vasto corpo de documentos e testemunhos, frequentemente contraditório.
Os documentos cristãos mais antigos de que dispomos são as cartas de Paulo, datadas dos anos 40 a 60. Estas epístolas contêm os pormenores mais importantes sobre a crucificação de Jesus. Temos também as cartas de João e Pedro, que podem ou não ser apócrifas, mas que são, no entanto, textos do final do século I e início do século II, escritos por cristãos.
A maioria dos estudiosos datam os 3 Evangelhos Sinópticos do final do século I e início do século II, começando com Marcos por volta de 70, depois Mateus entre 85-95, e os Actos de Lucas no início ou meados do século II. O Evangelho de João é datado pela maioria dos académicos entre os anos 90 e 140 (mas há estudiosos cristãos que os datam de tempos anteriores). Todos estes quatro evangelhos, originalmente, não tinham os nomes dos autores. Por isso, nem sequer sabemos, com certeza historicista, se foram realmente escritos por Marcos, Mateus, Lucas e João.
Uma nota: O Contra está convencido que foram. Seja como for, as nomenclaturas dos evangelhos foram atribuídos por clérigos posteriormente, no século II, tudo indica.
Os primeiros fragmentos físicos destes textos de que dispomos datam dos finais desse século e do seguinte. E a cópia completa mais antiga da Bíblia que existe é o Codex Sinaiticus, de 325 d.C.
O Evangelho de Tomé, que já foi um importante texto dos primeiros cristãos, é datado entre o final do século I e o início do século II (alguns argumentam mesmo que poderá ser o mais antigo), mas não foi selecionado para o cânone bíblico pelos pais da Igreja no século IV. Isto embora o seu impacto no cristianismo primitivo tenha sido enorme. Para além disso, existe uma grande quantidade de evangelhos e textos produzidos pelos primeiros cristãos no século II.
No século IV, Eusébio fornece uma lista pormenorizada dos primeiros bispos da Igreja em Antioquia, Roma, Alexandria, Atenas, Corinto, e Esmirna, entre outros locais. Estas listas mostram uma sucessão directa dos apóstolos, como André, consagrando o pai do herético Marcião, Filólogo, o primeiro bispo de Sinope, bem como consagrando o primeiro bispo de Corinto, chamado Apolo, que é mencionado nas cartas de Paulo. E Marcos foi o primeiro bispo de Alexandria consagrado por Pedro, sendo Pedro o primeiro bispo tanto de Antioquia como de Roma, consagrando tanto Lino como Evódio. E, claro, eles listam Tiago como o líder e primeiro bispo da Igreja de Jerusalém. E é a partir deles que surgem os 70 apóstolos enumerados nos Actos, com nomes que são mencionados nas cartas de Paulo. Estas elaboradas listas de sucessão mostram o que parece ser uma Igreja Unida que tem uma linha directa de Ortodoxia desde Jesus até Constantino.
No entanto, as fontes primárias mostram que isso não é apenas problemático, mas impossível em alguns casos. Muitas das fontes apresentam listas contraditórias entre si e as pessoas consideradas vivas em determinadas épocas estão de alguma forma vivas em épocas em que deveriam estar mortas. E os textos sobreviventes que temos são tão poucos e distantes entre si, que se torna um pesadelo tentar juntar toda a informação de forma coerente.
Para complicar mais as coisas, as influências pagãs (gregas e romanas), fenícias, egípcias e semitas no cristianismo iniciático é intensa e omnipresente, criando seitas e facções antípodas, bem como interpretações díspares da vida de Jesus e da sua natureza divina.
Não é por acaso que a morte de Sócrates e de Cristo são conceptualmente tão parecidas. Nem tão pouco se podem atribuir variáveis aleatórias às semelhanças retóricas entre o discurso público de um e do outro. E isto deve ser sublinhado sem qualquer intenção de retirar ao messias o seu carácter sagrado, ou ao moscardo de Atenas a sua vertente platónica. O Novo Testamento foi escrito em grego. É apenas natural que a influência helénica seja profunda nas escrituras.
Não é até destituída a ideia de que o caminho para o cristianismo monoteísta, com conceitos claros de bem e de mal, e uma promessa de céu e de inferno, estava já aberto por Platão e Aristóteles, que manifestaram nas suas obras um profundo descontentamento com os mitos fundacionais da civilização grega e a tradição literária de génese homérica, como num outro artigo, o Contra já sublinhou.
Por outro lado, rituais cristãos como o do baptismo estavam já presentes, séculos antes do nascimento de Cristo, em aparelhos religiosos como o que se relaciona com o persa Zoroastro (que Nietzsche recuperou como Zaratustra), em que o ritual permite a ascensão ao plano divino.
A verdade é que o cristianismo primitivo foi desviado, caso a caso, por tradições religiosas e místicas de toda a ordem e era, nesse sentido, gnóstico. Também por isso estava longe ser um movimento coerente e unificado. Era tão diverso que os cristãos dos dois primeiros séculos estavam mais afastados do que um mormon está hoje de um católico, por exemplo.
Este ensaio visual sobre os primeiros anos do cristianismo do canal Gnostic Informant apresenta-nos precisamente uma abordagem gnóstica do assunto, e o Contra aconselha, àqueles que têm interesse no tema, vivamente o seu consumo.
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