Todas essas coisas, mulher, me preocupam; mas muito eu me
envergonharia dos Troianos e das Troianas de longos vestidos,
se tal como um covarde me mantivesse longe da guerra.
Nem meu coração a tal consentiria, pois aprendi a ser sempre
corajoso e a combater entre os dianteiros dos Troianos,
esforçando-me pelo grande renome de meu pai e pelo meu.*Fala de Heitor a Andrômaca, Canto VI da Ilíada
Como vimos no capítulo anterior, no seu estertor de morte Pátroclo provoca Heitor, afirmando que o troiano não foi o único responsável pelo seu fim, e aproveita para lhe rogar uma praga:
Não será por muito mais tempo que viverás, mas
já a morte de ti se aproxima e o fado irresistível,
pois morrerás às mãos do irrepreensível Eácida, Aquiles.*
Acontece que nas obras de Homero em particular e na literatura helenística em geral, quando alguém faz uma profecia deste género podemos acreditar que o prognóstico, mais tarde ou mais cedo, será cumprido, ainda por cima quando é proferido nas mais dramáticas circunstâncias e dirigido a um dos personagens centrais da história.
Heitor porém responde com cepticismo à condenação oracular do seu inimigo agonizante: de que vale anunciares a minha morte, se sabes tanto como eu em relação ao futuro? Posso eu cair, sob a lança de Aquiles, pode Aquiles cair primeiro sob a minha espada. Pode não parecer à primeira leitura, mas o que Homero está a fazer é a destacar a humanidade do príncipe de Troia. Na sua resposta a Pátroclo, Heitor reconhece as limitações de se ser humano, a ignorância sobre o futuro e a impotência sobre o destino. Esta posição contrasta porém com a de Aquiles, que como já vimos num outro artigo desta série, fui informado pela sua mãe, que por acaso é uma deusa, que tem dois destinos à sua escolha: pode recusar a peleja entre gregos e troianos e morrer de velho, gozando de uma vida repleta de confortos materiais e do amor familiar, mas sacrificando a posteridade do seu nome, ou pode embrenhar-se na batalha onde morrerá, garantindo no entanto a eternidade da sua lenda e a proverbialidade da sua glória.
Enquanto o semi-divino Aquiles pode optar pela morte ou pela vida, Heitor, herói humano, não tem opções quanto ao seu fado. Assume a incerteza da condição humana e entrega a sua sorte aos deuses, enquanto cumpre apenas aquilo que crê ser o seu dever.
Numa cena anterior no Canto XII, Heitor é abordado por uma vidente que essencialmente lhe diz para não sair e lutar naquele momento, porque os presságios não são bons. O príncipe, que não se deixa inebriar facilmente pela superstição, responde-lhe: queres que eu obedeça aos pássaros? Não me interessa para que lado voam os pássaros, para a direita no nascer do sol ou para a esquerda ao anoitecer. E se te apanhar a convenceres alguém a desistir de lutar por causa dos teus presságios vais conhecer o arrepio da minha espada no calor das tuas entranhas. Também aqui, Heitor assume que não pode adivinhar acontecimentos futuros. Não tem super poderes. É um homem apenas. Que luta contra um inimigo que é mais que um homem, já que tem poder sobre o porvir.
Homero coloca-se assim num plano dialéctico que quase obriga o leitor a identificar-se mais com Heitor do que com Aquiles. O que não deixa de ser surpreendente, já que quem nos conta a história é grego, mas parece ter como herói um troiano; parece favorecer o inimigo. Seria de esperar que Homero atribuísse a Aquiles todo o tipo de nobres qualidades e fizesse de Heitor um vilão desumano e frio, líder bárbaro entre selvagens. É porém exactamente o oposto que faz. Heitor é o epítome da humanidade e há algo em Aquiles que é simultaneamente menos que humano e mais do que humano.
Enquanto a supra-humanidade do louro guerreiro passa pela sua transcendente capacidade como guerreiro e pelo conhecimento do futuro, a sua infra-humanidade plasma-se na motivação para o combate, ou para a recusa do combate, sempre fundamentada em motivos egoístas, como a vaidade e o orgulho.
E ao contrário de Aquiles, que não é um homem de família e que não está naquela maldita praia para defender a sua pátria nem o seu povo, Heitor dá-se ao combate para defender a sua família, o seu pai e o seu rei, o seu povo e o seu reino. É em nome dos outros que enfrenta a morte. Ele preferia até não o fazer, mas o dever do homem nobre, que quer proteger os seus e sabe que o o futuro do seu país está em jogo, não lhe permite a cobardia ou a resignação.
E é assim que se enquadra até a decisão de Aquiles para, enfim, regressar à guerra: Não o faz por Agamémnon, que despreza; não o faz pela família, que não tem; não o faz pela pátria, à qual a partir desse momento sabe que não vai voltar. Aquiles volta a erguer a sua lança porque a ira vence o ressentimento. Não porque ao perder Pátroclo tenha perdido um amigo, mas porque perdeu a honra, ao permitir que o amigo pelejasse sem a sua protecção.
Aquiles vai agora lutar à procura de vingança e não de justiça. Não quer saber se os gregos ganham ou perdem, ele está agora decidido a pelejar como um indivíduo isolado, em contraste com Heitor, que defende uma comunidade humana florescente.
E a história, contada assim, é um alerta que ecoa na eternidade: sempre que partes para a guerra, podes ter como inimigo o mais nobre dos homens. Podes ter como aliado um narciso. Prepara-te para sobreviver a esse dilema.
* Tradução do grego original de Frederico Lourenço
__________
Outros artigos no Contra sobre o legado literário de Homero:
Uma introdução à obra de Homero.
A Ilíada,Canto I: Aquiles, Agamémnon e a disputa das concubinas.
A Ilíada,Canto III: A repreensão de Heitor, a insensatez de Páris e a interferência dos deuses.
A iliada, Canto III, parte II: Sobre a civilidade dos bárbaros e a barbaridade dos civilizados.
Ilíada, Canto IX: Os dois destinos de Aquiles.
A Ilíada, Canto XVI: Os três assassinos de Pátroclo.
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