Platão foi um dos maiores talentos poéticos e filosóficos da Grécia antiga – e da história universal – mas, ainda assim, tem uma relação ambivalente com a poesia. Provavelmente o mais célebre diálogo de Platão é aquele em que acusa os poetas de serem perigosos deseducadores da juventude e considera que deveriam ser censurados, na medida em que devemos evitar que mitos perigosos sejam transmitidos aos jovens da cidade ideal pelo facto de deformarem as suas almas e minarem a sua educação filosófica.
Isto é no mínimo estranho para alguém que escrevia num grego sublime e cujo trabalho está repleto de poesia, metáfora e imagem não literal. O Professor Michael Sugrue dedicou uma das suas famosas aulas em Princeton a este assunto, na senda de resolver a aparente contradição.
Um poeta em negação?
A crítica de Platão não é na verdade tão dirigida à poesia como aos mitos que as obras líricas estudadas e apreciadas no seu tempo carregavam. Platão pensava que Homero tinha um efeito negativo na cultura grega, no sentido de que os jovens eram doutrinados pelas figuras homéricas, heróis da ira, heróis da paixão, homens de violência, em vez de homens de moralidade e virtude filosófica.
As grandes construções poéticas de Platão referem-se aos diálogos de Sócrates e Sócrates tem coisas muito interessantes para dizer sobre a poesia. Ele pode ser muito duro com os poetas, algumas das coisas que ele diz na República sugerem a censura e uma espécie de isolamento da sociedade à literatura em verso, mas vale a pena considerar que, pouco antes de sua morte, Sócrates escreveu poesia e isso é registado por Platão. No Fédon, Sócrates diz que teve um sonho e que no seu sonho lhe disseram que estudasse a prática da poesia e cultivasse as artes.
No pensamento platónico a poesia não traduz a verdade, mas só porque não é literalmente verdade não significa que não seja instrutivo e importante. Platão foi um dos grandes talentos poéticos da Grécia Antiga, apesar de o ser em negação. Sócrates tinha grandes dúvidas sobre a influência da tragédia e da narrativa épica na sociedade, mas o professor Michael Sugrue sugere que os diálogos platónicos respeitam, de certa forma, um movimento épico e uma estrutura trágica (a vida e morte de Sócrates tem todas as componentes da tragédia) que havia sido característica da alta cultura de Péricles em Atenas.
Na verdade, os diálogos são uma nova forma de arte que tenta remediar alguns dos defeitos que Sócrates apontou na tragédia como um todo. Por outras palavras, Platão foi um poeta tão profundo e talentoso que foi capaz de construir um novo tipo de poesia, ou um género poético chamado diálogo socrático, e desde então ninguém escreveu um diálogo realmente bom (o professor defende que talvez Hume tenha escrito alguns e o Contra acrescenta aqueles inclusos no novo Testamento). Mas também é verdade que os grandes poetas criam o seu próprio género, não precisam de copiar ninguém e cumprem esse género que criaram melhor do que qualquer outro poeta pode fazer.
Um novo herói.
A grande mudança que vemos quando transitamos da tragédia para o diálogo platónico é que em vez de um herói trágico que tem alguma falha fatal que levará inevitavelmente à sua queda, de forma a ser oferecida ao espectador uma catarse de medo e comiseração, temos um novo tipo de herói, um herói filosófico, ou por outras palavras, o próprio Sócrates, que, em vez de matar pessoas e ser um homem de paixão e violência como um personagem homérico, é um herói da razão, do discernimento e da lógica, que melhora os seus concidadãos em vez de prejudicá-los, que beneficia o mundo, em vez de destruí-lo, quem tem a obrigação de educar aqueles que o rodeiam, em vez de gratificar as suas próprias paixões e desejos individuais.
O argumento de obliteração da poesia que Platão fez na República foi criticado por muita gente e merece essa crítica. Como sabemos, há actualmente quem defende a censura e a “protecção” das massas contra a “desinformação”, mas também há quem, como o Contra e os seus prezados leitores, não queira viver numa sociedade fechada, na qual não podemos aceder livremente à literatura que nos apraz, ou dizer o que pensamos sem medo de castigo.
Mas por outro lado, vale a pena notar que o argumento que Platão levanta sobre os heróis homéricos e sobre os heróis trágicos que foram uma parte tão importante da vida cultural e, logo, psicológica da Grécia clássica é exactamente o mesmo argumento que os acusadores de Sócrates levantaram contra ele. Sócrates foi condenado à morte porque se dizia que tinha corrompido a juventude de Atenas ao fazer com que os jovens perdessem a fé nos deuses tradicionais, prejudicando as suas almas. Platão inverte a acusação na República, quando fala em censurar os poetas e limitar os mitos que os jovens aprendem como axiomas: os verdadeiros corruptores da juventude são esses poetas que talvez sejam divinamente inspirados, mas não percebem nada do que estão a fazer, já que são produto de uma espécie de loucura sagrada que os leva a gerar histórias e construções artísticas que eles próprios não compreendem e que podem ou não ser boas para as pessoas, sendo frequente que o dano que causam é irrevogável. Platão vira assim o feitiço contra o feiticeiro.
E, seja como for, quem de nós, defensores da liberdade de expressão, nunca pensou, para dentro ou para fora, que determinado fulano, de tão irritante ou néscio, devia ser silenciado?
Poesia e ontologia.
Platão tem uma concepção muito detalhada e complicada de ontologia, que é uma hierarquia de coisas e de seres e no topo dessa hierarquia encontramos a forma do bem, que é a fonte de todo o ser e a fonte de toda a realidade. Abaixo disso estão as formas, essências puras do indivíduo e das coisas que encontramos aqui no mundo do espaço e do tempo. Uma taça existe apenas em virtude de sua participação numa forma eterna da taça que está de fora do espaço e do tempo e de todas as taças que habitam a realidade. Bem abaixo disso chegamos ao nível dos objetos físicos que habitam o nosso quotidiano e abaixo disso, bem na base da hierarquia ontológica, reside o reino das sombras e da imitação, e sob o conceito de imitação Platão coloca todas as obras de arte, ou seja: esta taça só existe em virtude do facto de que participa da forma eterna de Taça que está em algum lugar etéreo arquivada, e uma pintura a óleo desta taça será algo ainda menos real do que isso, porque o que não passa de uma imitação da taça que é já de si uma representação da taça essencial, fora do espaço-tempo da materialidade física.
Temos assim três níveis de realidade: o reino platónico das formas, o mundo do espaço e do tempo, e o plano das representações. E se em vez de uma pintura da taça, alguém escrevesse um poema sobre a taça, isso também seria uma representação ou imitação e logo estaria bem no fundo dessa hierarquia ontológica. Platão desvaloriza assim a poesia: se o mundo de espaço e do tempo não é real, ainda menos real é o mundo das imitações e todo o mundo da arte é um mundo de imitações. Os artistas são, neste exigente contexto formal, meros criadores de imitações de uma realidade ilusória porque a realidade do espaço e do tempo é derivativa do reino das formas, onde reside a verdade do cosmos.
Poesia em Platão.
Como então encontramos tanta poesia em Platão? Seria de supor que alguém que gostava de matemática tanto quanto Sócrates e Platão parecem gostar e desaprova ou pelo menos desvaloriza a literatura lírica nos deixaria livros cheios de teoremas, como fez por exemplo Pitágoras, ou nos ofereceria estudos sobre geometria, como Euclides. Mas não. Platão conduz-nos pela dialética e pela poética à verdade seminal e ao conhecimento último sobre as formas. Esta é uma questão difícil de responder devido à complexidade dos escritos platónicos e dos mitos que tenta derrotar, mas vale a pena considerá-la porque nos pode levar a um certo grau de compreensão do projecto platónico sem a qual será complicado entender a estrutura e a substância filosófica dos diálogos. Em primeiro lugar, devemos observar o facto de que Platão reconhece o poder e o significado da poesia, embora seja potencialmente perigosa e deseducadora das pessoas, é pelo menos moderadamente útil porque o verdadeiro filósofo vai querer a poesia do seu lado, ele só quer que ela seja domesticada ou condicionada, para que não crie ruído sobre o seu sistema filosófico e, portanto, não prejudique a sua tentativa de educar as pessoas, porque o homem bom é sempre um educador e o filósofo sabe que tem a obrigação moral de fazer o que puder para melhorar o mundo, educando-o.
Mitos em Platão.
Existem diferentes funções desempenhadas pelos mitos em Platão. Uma função seria a de proteger as pessoas estúpidas de si mesmas, porque há uma série de contingências possíveis que levam um indivíduo a não ser terreno fértil para os ensinamentos platónicos e a verdadeira racionalidade. Se conversarmos com alguém que é retardado, ou com uma criança de seis anos (ou com um activista da Antifa, ou com um âncora da SIC Notícias, ou com um leitor assíduo do Expresso), não vamos conseguir dar-lhe acesso ao conhecimento e à realidade. A melhor coisa que lhes podemos oferecer é o que Platão chamaria de opinião verdadeira, que fará com que se comportem como se tivessem possibilidade de aceder ao conhecimento, mas tudo o que terão é a sombra, a aparência ou a imitação desse conhecimento – uma representação do conhecimento. E essa é uma das razões pelas quais Platão introduz os mitos nos seus diálogos: isolar o interlocutor fraco e protegê-lo de si mesmo. O diálogo de Mino, que é provavelmente o mais acessível, curto e conciso dos diálogos socráticos, é um bom exemplo deste método. Mino é o mais idiota dos interlocutores com quem Sócrates já conversou e é fácil convencê-lo seja do que for. No final da discussão, eles chegam à conclusão irónica de que a virtude vem dos deuses, porque não pode ser ensinada, ninguém sabe o que é, ninguém sabe de onde vem e por isso sem dúvida terá origem divina. A conclusão é irónica porque não é obviamente verdadeira para Platão, mas é uma mentira piedosa para que Mino perceba que deve ser virtuoso. Platão dá-se a esta liberdade poética porque a boa poesia, como os mitos platónicos, são mentiras que dizem a verdade, a verdade que contam é uma verdade moral, não uma verdade literal, e temos que ser capazes de ler nas entrelinhas para ir além do significado imediato. Mino continua estúpido. Mas agora, por mandato divino, será pelo menos virtuoso.
Pensamento sem preconceito.
Uma outra razão pela qual os mitos e a poesia são introduzidos nos diálogos é que Platão está muito consciente do facto de que o pensamento sem pressuposições não existe. Não podemos atingir a estratosfera onde as formas são mantidas sem fazer certas suposições, sem tomar certas coisas como axiomáticas. Platão tinha grande admiração pelas conquistas da geometria e da artimética como sendo um tipo de conhecimento de entidades matemáticas reais, mas qualquer pessoa que já estudou matemática sabe que certos axiomas não são provados, eles apenas são declarados como verdadeiros, seja x o conjunto de todos os números racionais ou seja y um plano, isso simplesmente tem que ser declarado dogmaticamente. Não podemos provar que os axiomas são anteriores à prova racional e isso não é verdade apenas sobre sistemas matemáticos, também é verdade sobre sistemas políticos, é verdade sobre sistemas morais, é verdade sobre sistemas epistemológicos e é verdade sobre sistemas ontológicos. Ao declarar os pressupostos ou axiomas fundamentais de sua filosofia, o que Platão faz em vez de simplesmente afirmar essas coisas dogmaticamente, é revesti-las de um mito encantador e propedêutico. Ele está a tentar levar-nos gentilmente na direcção da verdade.
Mas embora use alguns mitos, Platão nunca confunde mito com realidade. Como não pode fornecer argumentos conclusivos sobre os seus axiomas fundamentais, utiliza as narrativas míticas para que aqueles filosoficamente analfabetos compreendam a sua mensagem. Não é que ele esteja a tentar enganar o seu público, ele está apenas a ensinar os casos perdidos que nunca vão chegar à virtude de outra forma. A poesia mítica pode persuadir aqueles que a razão não é capaz de convencer.
Mitos na República
O professor Sugrue examina quatro mitos presentes no enredo da República. O primeiro é o mito de Giges e é encontrado no início do Livro II, onde Sócrates está à conversa com Glauco. O mito é muito curto, mas denso. Giges era pastor do rei e estava um dia no campo a cuidar das ovelhas quando se dá um terremoto. A terra abre-se e ele vê lá algo estranho lá em baixo, desce a fenda e encontra um cavalo oco de bronze e dentro do cavalo o corpo de um herói e na mão do herói um anel de ouro. Giges rouba o anel e sobe à superfície. Entretido com o anel, roda-o no dedo e torna-se assim invisível. Graças a esse poder, Giges teve relações sexuais com a mulher do rei, assassinou o monarca e ascendeu a rei da Lídia.
O mito de Giges: Ouro, bronze e o cavalo oco.
A história não parece muito sugestiva, mas na verdade cada palavra, cada ideia e cada imagem são escolhidas cuidadosamente. É por isso que não é possível entender a República se não a lermos quatro ou cinco vezes, porque nas primeiras leituras passamos por cima das múltiplas camadas de significado que lá foram cuidadosamente inseridas. Em primeiro lugar, temos dois tipos de metais mencionados neste mito: ouro e bronze. Sempre que encontramos ouro na República, isso significa visão filosófica e racionalidade, educação e conhecimento real. O bronze, ao contrário, relaciona-se com as aparências e com aquilo que é apenas representação da realidade. A descida de Giges à fenda onde encontra o cavalo oco (numa referência crítica ao homérico Cavalo de Troia) é a queda na ignorância e na deseducação, onde existe apenas o vácuo do corpo morto de um herói, mas não a realidade de um herói porque a realidade da vida humana é a alma, que é imortal. O corpo que se relaciona com o bronze não importa, e o anel de ouro roubado ao cadáver perde até as suas propriedades esclarecedoras e ganha um sentido oposto ao que deveria ter, promove a inversão da ordem normal das coisas e faz do nosso pastor um usurpador que mata o seu mestre, comete crimes e transgressões, assume o controle do estado e envolve-se em adultério. Esta é uma parábola cuidadosamente burilada e sintetizada sobre educação e deseducação.
O Mito das Medalhas.
O segundo mito da República, que encontramos no Livro III, é o Mito das Medalhas. Na nossa cidade ideal temos pessoas de ouro, de prata e de bronze em função da sua capacidade racional. As crianças de ouro vão ser os guardiões do futuro e auxiliar as pessoas comuns a perceberem que o processo de sua educação não era real, era como um sonho, era na verdade algo que não é consistente com a realidade. Platão quer ensinar a cada uma dessas pessoas que embora pensassem que estavam a ser educados, na verdade não estavam. O que realmente acontece é que mãe natureza colocou em cada uma das suas almas ouro, prata ou bronze e isso é que os adapta ao seu papel particular na perfeita sociedade platónica. As pessoas têm de facto aptidões para diferentes funções em sociedade, mas não queremos que a sociedade assuma a culpa ou carregue o fardo de criar essas desigualdades artificialmente, então, em vez disso, dizemos que a mãe natureza e os deuses colocaram esses metais nas suas almas e é por isso que estruturamos a sociedade de maneira que desigual. Não é o homem que é o tirano, mas a natureza.
Claro que não há como demonstrar que as almas são diferentes entre si, e é impossível até saber o que contaria como prova de tal coisa. Por isso, em vez de tentar dar uma demonstração que seria sempre falsa, se não impossível, Platão oferece um mito envolvente, como um embrulho que podemos abrir mais tarde quando entendermos os diálogos platónicos na sua plenitude semântica. No entretanto, mantemos a sociedade calma e estável, evitando que as pessoas se rebelem contra o estado e a sua estruturação hierárquica, recorrendo a um mito útil e apropriado que é bom para as pessoas individualmente e para a sociedade como um todo. E isto é o que Platão chamaria de boa poesia, uma mentira que diz a verdade. Podemos pensar hoje que é uma coisa muito má contar mentiras às pessoas, embora seja isso precisamente que as elites políticas, económicas e tecnocráticas fazem no século XXI, embora as suas aldrabices sejam, claramente, incapazes da arte poética.
É claro todos nós, pessoas de bem, temos a convicção de que os seres humanos têm um igual valor intrínseco, à partida, e subscrevemos a igualdade perante a lei e acreditamos na equivalência de oportunidades para todos, mas se disséssemos que as pessoas são iguais e não desiguais, assim sem nuances, estaríamos a dizer que elas são igualmente altas, igualmente virtuosas, igualmente cultas, ou igualmente justas, o que seria um disparate e não é por acaso que os redactores da Constituição americana escreveram que todos os homens são iguais perante Deus e não entre si (sendo que os algarismos 2 e 9, por exemplo, são iguais perante o infinito mas representam valores diferentes). Da mesma forma, o que Platão quer dizer é que as pessoas são iguais perante a lei e que o resto é mito. Escolhemos acreditar na igualdade porque pensamos que as consequências dessa crença são positivas, ou porque invejamos quem sucede melhor na vida do que nós, ou porque esse sistema de valores faz com que as pessoas se comportem melhor, ou porque pensamos que as consequências de acreditar na desigualdade conduz a fenómenos extremos como o nacional socialismo alemão, por exemplo. Mas Platão sabia que a humanidade apresenta invariavelmente variáveis diferentes de gerações, de observações, de experiências, e que acreditar na desigualdade humana tornaria a sociedade melhor e que acreditar na igualdade de forma absoluta não (como foi posteriormente demonstrado pelos regimes comunistas do século XX).
Mais a mais, os mitos são simbólica e moralmente úteis. Em certos países cristãos, as testemunhas em tribunal juram que vão dizer a verdade colocando a mão na bíblia. Isso não quer dizer que, se mentirem, o Deus judaico-cristão desça dos céus para as castigar. Mas as testemunhas estão a comprometer-se perante a presença de um quadro sagrado, transcendente, maior que elas próprias, que a sua singular consciência do que é certo ou errado, falso ou verdadeiro, será validada pelo criador. O Mito, neste sentido, é até capaz de transformar o que é subjectivo em matéria objectiva.
E enfim, o Mito da Caverna.
O mais importante e comovente e permanente dos mitos da República é o da Caverna, pelo qual Platão argumenta que os seres humanos, no estado não filosófico, estão presos numa gruta escura e acorrentados pelo pescoço e pelas pernas para não tirarem os olhos de uma tela na parede onde são reflectidas imagens parciais e aleatórias e distorcidas da realidade, e assim miseráveis e ignorantes, acreditam que essas sombras são a realidade e como resultado são manipulados por quem “edita” as imagens no exterior da caverna, mas também pelos seus companheiros residentes na caverna. Estas pessoas que estão presas e que acreditam que os reflexos são a realidade constituem para Platão o cidadão médio de Atenas, as pessoas que editam as imagens são os demagogos, os políticos e os poetas que estão no reino das trevas, que realmente não entendem a verdadeira realidade filosófica e, ainda assim, são de alguma forma manipuladores dessa escuridão.
Platão diz que a actividade filosófica, que objectiva o conhecimento da realidade, pretende quebrar essas correntes da ilusão e, gradualmente, usando a dialética, sair da caverna para o reino da luz, já que o sol é análogo à forma do bem que gera todo o nosso conhecimento e todo o nosso ser e toda a realidade. Platão sugere que, muitas vezes, não acreditamos nos primeiros resultados das nossas investigações filosóficas, porque parecem estranhos e exercem uma pressão muito grande sobre o nosso entendimento. Um homem que viveu na caverna a vida toda, quando sai para o sol é ferido pela luz e pela verdade. Tem que cerrar os olhos para se proteger da luminosidade inédita e leva algum tempo para se acostumar, mas depois de começar a ambientar-se à luz do que é verdadeiro, nunca trocaria o reino da realidade, da liberdade, da visão filosófica e da luz pelas trevas e as sombras e o jugo das correntes. Não importa quantas pessoas estejam lá em baixo, não importa quantas pessoas lhe digam que está errado, não importa quantas pessoas digam que as suas descobertas são um absurdo. Quando começamos a pensar por nós mesmos, porque finalmente vimos a luz, nada pode substituir essa revelação.
A forma do bem.
Uma consequência do mito da Caverna é aquela que diz respeito à difícil formulação – em abstracto – de uma ideia de bem. Sendo a fonte de toda a realidade e a fonte de todo o conhecimento e da virtude, o bem é sobretudo axiomático- apreendemos imediatamente o conceito perante a luz filosófica, mas é complicado falar sobre o assunto de forma sensata e é por isso que os teólogos que tentam articular sobre a ideia de Deus acabam quase invariavelmente embrulhados num discurso esotérico. Platão diz que sem vermos o sol e experimentarmos a sua luz é difícil explicar o que é isso do sol e que género de clarão liberta, tanto mais que nós sabemos que a estrela ilumina o mundo mas não conseguimos olhá-la directamente à vista desarmada. Podemos apreender uma ideia de bem e sabemos que o bem existe e que gera a realidade de todas as outras coisas sobre as quais detemos conhecimento, mas o facto é que não podemos explorar directamente a sua forma porque é algo que transcende as nossas capacidades. O mito serve assim para nos transportar para a realidade e deixa de ter uso quando a apreendemos.
Esta ideia de Platão é parecida com o que Witgenstein diz sobre a filosofia da linguagem: subimos por um escadote para chegar ao telhado, mas uma vez lá, não precisamos do escadote. É para isso que Platão quer que os seus mitos sejam usados, para subir para fora da caverna, e uma vez lá fora, já não precisamos deles.
A vida após a morte.
Há um mito final muito interessante no décimo livro da República, que faz parte de todas ou quase todas as religiões mundiais e que é o mito da vida após a morte. Em muitos aspectos até políticos e sociais é útil acreditar que depois de morrermos vamos para um sítio onde somos recompensados ou penalizados pelo que fizemos em vida. Em Platão, depois dessa recompensa ou dessa penalização, que dura um tempo indeterminado, a alma imortal é forçada a voltar a uma nova experiência da existência material, reencarnando em vidas que podem ser seleccionadas por cada uma das almas. As almas más poderão escolher o percurso de um tirano ou de um insecto repelente, porque acham que isso é bom e é claro que são miseráveis agora e serão miseráveis nessa reencarnação e isso é simplesmente o que elas merecem. As almas boas escolhem a vida de pessoas virtuosas ou de animais nobres como o leão. Mas não o fazem sem antes mergulharem no rio do esquecimento das vidas anteriores. Neste caso, o mito de Platão serve para nos responsabilizar, e não aos deuses, pelo nosso destino. E serve também para um fim pedagógico que, como já se viu, é o objectivo último a que o filósofo grego submete a mitologia: até o mais estúpido dos estúpidos, até o mais malvado dos malvados, compreende que esta história é assustadora e que este é um lugar de recompensas e punições eternas e que somos nós que escolhemos essas bênçãos e essas maldições.
Se somos, agora, um verme ou uma águia, a culpa é sempre nossa. Não são os deuses, não é o destino, somos nós que, inconscientes dos nossos actos anteriores nos condenamos, ou nos salvamos, perpetuamente. E esta não é só uma forma de fazer com que o mito proteja os indivíduos de si próprios e a sociedade de más acções. É também, e mais uma vez, um método para chegar à verdade. Porque a poesia mítica em Platão, será afinal a segunda melhor maneira de aceder ao conhecimento e resgatar a verdade ao mistério da existência.
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