De vez em quando, sabe bem ter um partido populista – ou aparentemente populista, porque quanto mais votos soma, menos populista é – na Assembleia da República.

E a iniciativa de Chega de decorar a fachada da AR com umas faixas que contestam a aprovação de aumentos salariais com que os deputados decidiram presentear-se foi, como era previsível, recebida pelo estabelecimento da Terceira República com um misto de indignação, nojo e fúria, que na verdade só valorizaram os pendões e a iniciativa.

Os senhores deputados acham que ninguém pode por em causa aquilo que decidem ganhar e que os contribuintes não são chamados à conversa dos seus salários. Isto apesar do dinheiro sair precisamente dos bolsos dos contribuintes.

Aquilo que o Estado faz com o dinheiro tributado ao povo não deve ser submetido ao critério do povo. E muito menos quando se trata da remuneração dos deputados. Não faltava mais nada.

O senhor José Pedro Aguiar-Branco ficou tão ofendido que até disse que a iniciativa do Chega se enquadrava no âmbito da “vandalização política”. Portanto, para o Presidente da Assembleia da República, segunda figura do Estado, qualquer pessoa que faça uma análise crítica aos aumentos salariais dos deputados é um quase-terrorista.

Até a rapaziada das redacções da imprensa corporativa, que ganha vinte euros à peça mas que está sempre pronta a socorrer os poderes instituídos, concorda completamente que os rendimentos dos deputados da República devem ser inescrutáveis, já que, bem entendido, são seres excepcionais, abençoados por Deus e privilegiados pela natureza.

E o Chega é assim maltratado (ou valorizado) pelos dignatários do regime, tanto como pelos seus escribas, pelo crime capital de mencionar o assunto.

Há que dizer que aquilo que os deputados ganham, como aquilo que ganha um ministro ou o Presidente da República é, no contexto dos problemas deste país, irrelevante. Há até que admitir que os políticos em Portugal ganham mal, como toda gente ganha mal, talvez com excepção do Mamadou Ba e de um ou outro banqueiro mais atrevido.

É claro que ganhar mal não é a mesma coisa para toda a gente. Mesmo auferindo um salário modesto para chefe de estado, Marcelo Rebelo de Sousa será sempre remunerado acima do que merece, por exemplo. E considerando só o universo dos deputados da AR, há aqueles que nos fazem rir, que deviam ganhar mais, aqueles que nos fazem chorar, que deviam ganhar menos, e aqueles que nem sequer têm a oportunidade da comédia ou a hipótese do drama, que se limitam ao estatuto de NPC’s e que por isso não deviam receber o salário de actor, mas o de figurante.

Se a Assembleia da República funcionasse segundo um critério meritocrático, produziria seguramente alguns deputados milionários, mas no computo geral a actividade parasitária do hemiciclo sairia mais barata ao erário público porque dos 230 deputados que lá estão, 200 seriam pagos como tarefeiros.

Seja como for e injustiças salariais à parte, a reacção do sistema às faixas dissidentes do Chega só reforçou a razão da contestação. E o que podia ter sido uma circunstância política de rodapé, passou a fenómeno de parangona. A indignação dos estabelecidos, tão alienados que nem percebem que a sua fúria pública é apenas contraproducente, contribuiu assim para a pertinência da decoração de fachada que os alegados populistas decidiram compor. E, muito provavelmente, trouxe mais eleitores para o partido de André Ventura, que deve estar agora a pensar que terá que oferecer um presente de Natal bem escolhido e bem embrulhado ao Presidente da Assembleia da República. Por tantos votos que Aguiar-Branco decidiu oferecer ao Chega, alguma gratidão merece o infeliz.

Afinal, uma ideia de produção tão baratinha que custou apenas a impressão de uns quantos pendões, acabou por ser publicitada junto de milhões de portugueses, de borla, pelos cromos do estabelecimento e através da imprensa corporativa.

A ironia não podia ser mais incisiva. E a campanha dificilmente poderia ter corrido melhor.

 

 

AFONSO BELISÁRIO
Oficial fuzileiro (RD) . Polemista . Português de Sagres

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As opiniões do autor não reflectem necessariamente a posição do ContraCultura.