Esta é uma rubrica muito pessoal, que introduz a banda sonora de uma vida. Não há grandes regras a não ser a de escolher não mais que um disco por banda ou autor e inserir não mais que um videoclipe por álbum, para que a coisa mantenha um tom adequadamente telegráfico. Tento dar um sentido cronológico à recolha, mas poderei falhar nessa escala aqui e ali, no correr dos posts. Não sei quanto tempo vai demorar a chegar ao presente do indicativo, sinceramente. Mas desde que faça isto com prazer, a coisa vale, mesmo que exaustiva, mesmo que incompleta (todas as playlists são incompletas), mesmo que desregrada. A recolha é dedicada apenas ao pop e ao rock. Outros géneros musicais merecerão outras abordagens.

Boa sorte e boa viagem (para mim e para ti gentil audiente).

Paulo Hasse Paixão

 

Rocket to Russia . Ramones

1977. No contexto da Guerra Fria que se vivia no tempo (e que hoje seria motivo para vários lockdowns por ano e sucessivas crises existenciais das flores de estufa que poluem o ambiente emocional do planeta), os Ramones decidem gozar o prato: antes de ser um manifesto punk, Rocket To Russia é um corrosivo exercício de humor. Os 14 curtos e grossos temas que habitam este disco são parcimoniosos em acordes e avarentos com os versos (“I Don’t Care” tem 3 acordes e 3 versos) mas não deixam por isso de ter enorme capacidade retórica. O Disco Sound é ridicularizado. A religião é ridicularizada. A família é ridicularizada. O apocalipse nuclear é ridicularizado. E de ridículo em ridículo, os Ramones edificam a sua posteridade, à velocidade de 78 rotações por minuto.

Esta pérola mudou muita coisa dentro da minha sensibilidade de criança e no fundo do meu cerebelo imberbe. Fiquei a saber que a economia é uma virtude melódica. Que as calças de ganga devem ter buracos para os joelhos respirarem. Que homens muito feios podem ser símbolos sexuais. Que o punk é dançável e que a ironia é uma arma superior à bomba de hidrogénio. Fiquei a saber imensas coisas, através de um disco que na verdade não pretende ensinar nada a ninguém. Rocket To Russia é um monumento à dissidência e só quer ser isso e é isso que faz dele uma obra prima. Sheena is a punk rocker. Sheena is a punk rocker. Sheena is a punk rocker, now.

(Mais sobre este disco no ContraCultura)

 

As it Happens . Dr. Feelgood

Este é segundo Long Play da minha vida. Muito pouca gente saberá do que estou a falar quando falo dos Dr. Feelgood e de As It Happens, mas é uma pena porque a banda de Convey Island, que praticava um tipo apuncalhado de rythm’n blues ferroviário a que na altura chamavam “pub rock” é a mais genuína, crua, nua, pura, curta e grossa agremiação de malucos que o mundo já viu. Bebiam leite com álcool e rejeitavam a medicina. Usavam botas de tacão e óculos degradé, patilhas felpudas e penteados fora de moda. Cuspiam no palco e peidavam-se em público. O mau gosto e o mau aspecto eram um espectáculo dentro do próprio espectáculo.

Lee Brilleaux, o vocalista intrépido e fantasma de tasca que também soprava uma gaita como se fosse uma corneta do fim dos tempos, era uma espécie de anti-John Lennon. Wilco Johnson tirava acordes da guitarra como quem monta estruturas de arame farpado e a banda toda e por inteiro não podia ser mais bruta, mais vulgar, mais suburbana e mais difícil de mastigar.

Adoro os Dr. Feelgood. Adoro-os. E, para sublinhar a minha paixão, deixo este tema maravilhoso e abominável ao mesmo tempo, embora os rapazes mereçam mais atenção, mais espaço e mais posteridade. Oh yeah.

 

Remote Control . The Tubes

Março, 1979. Na ressaca de uma digressão super atribulada e altamente polémica, a banda mais subvalorizada de sempre edita a sua opera magna: Remote Control. Este disquinho dos The Tubes, que incluo com fanática convicção numa lista dos dez mais notáveis desta agora inaugurada discoteca da minha vida, é sagrado para mim. Acompanha-me desde os 12 anos, iniciou-me no rock independente e formatou-me os tímpanos para todo o sempre.

Ao longo dos seus 11 prodigiosos temas dá-se uma sublime convergência entre punk electrónico e pop desalinhado, num embrulho futurista de sintetizadores analógicos e raiva de músicos fora-da-lei, que anunciam o apocalipse do rock clássico dos anos 70 e introduzem o caleidoscópio sensorial que vai acontecer na década que se segue. Praticamente ignorados em Portugal e hoje já esquecidos em todo o lado, os Tubes sempre foram pioneiros em tudo. Uma banda à frente no tempo. E este Remote Control, que hoje se ouve tão bem como no ano paleolítico em que foi lançado, é uma coisa eterna. E intensa como o raio.

(Mais sobre este disco no ContraCultura)