Venho de um tempo em que o Sol não era teu inimigo e em que
as alterações climáticas se dividiam, sob a batuta de Vivaldi,
em quatro cíclicas estações.
Sou de tal forma antigo que durante a infância me diziam que a gordura
era formosura,
mas às capas das revistas só compareciam gajas
magrinhas.
Tenho 57 anos a multiplicar por dez porque na duração da minha vida
foram seguramente adicionadas
mais de 500 cambalhotas
à história universal.
Quando nasci e inúmeros anos depois de ter nascido,
a Ponte Sobre o Tejo era uma cena
de ficção científica.
Sou dessa era remota em que as coisas
levavam
o seu
tempo
a serem
modificadas.
Sou desse paleolítico inferior em que as pessoas
hesitavam quando era preciso alterar a gramática ou
inverter o significado dos substantivos.
O transformismo, quando eu era criança,
limitava-se à mini-saia.
A imprensa mentia, já,
mas tinha vergonha disso.
Os políticos eram aldrabões profissionais, como sempre,
mas falsificavam com rigor ético
e receios de castigo divino.
Sou oriundo de uma época em que seria pretensioso considerar
que uma marca de detergente
é capaz de salvar o planeta.
E nessa remota cronografia
não havia quem viajasse de jacto privado
para vender moinhos de vento.
Minha é a idade da inocência de tal forma inocente que até os bolcheviques
comeram como factual
aquele filme delirante que a NASA encomendou
ao Stanley Kubrick.
Ainda assim, no momento em que fui acabado de ser parido
ninguém tinha dúvidas que só as mulheres
eram de parir capazes.
Ninguém deixava cair reticências sobre as certezas que todos devemos usar:
se tenho um útero, sou mulher, se pendurados vejo
os testículos,
não sou.
Há meio século atrás toda a gente sabia a diferença entre o inocente ou o culpado,
o herói ou
o filho da puta.
Nessa idade de trevas, eras de Maomé ou de Cristo,
de Buda ou de coisa nenhuma.
E ninguém fazia omeletes públicas por causa
disso.
Lembro-me, por exemplo,
que a cor da pele de cada um significava
nadinha.
E as igrejas, quando eu era pequenino,
mesmo se não fossem para além de capelas,
eram maiores que a ‘catedral’ da Luz, até por causa
da consolação.
Venho de uma altura do campeonato mundial da pirataria
em que gravávamos cassetes quando o radialista
se calava.
O Brian Adams saltava alegre e repentinamente do refrão
Para o solo eléctrico e ninguém
sentia necessidade do Spotify.
Quando eu ainda não sabia bem onde é que as meninas
tinham o pi-pi;
Quando eu nem sonhava que o pirilau servia para mais
do que o xi-xi;
Já raparigas crescidas iam para a rua queimar apoios de mamas, mas
os homens desse parque jurássico
desconfiavam delas.
Na minha infância não existiam homens feministas porque isso,
para além da óbvia idiotia,
era coisa própria
de maricas.
Ou de desgraçados muito feios.
E lembro-me bem que um Fiat 127, ou um Renault 5,
já davam sinais flagrantes
de prosperidade.
A minha velhice, que me faz jovem,
remonta às alturas em que discavas, literalmente, números de telefone,
e em que te deixava meio assombrado
a tecnologia do cinescópio
(a televisão a preto e branco era um triunfo da inteligência artificial).
Vivi aquele momento da história universal em que o pong
era mais um fenómeno místico do que um jogo de vídeo.
Às vezes penso que tenho 157 anos quando observo
o desleixo com que saem à rua
os humanos de agora.
Às vezes morro de saudades do quotidiano complicado e sadio,
que implicava laços e gravatas e rendas e saiotes e
paletós e protocolos.
Esse momento de civilização em que os barbeiros dispensavam
o design gráfico,
as cabeleireiras não lavavam o dinheiro da droga e,
talvez por isso,
as pessoas passeavam-se muito melhor penteadas pelas avenidas.
Às vezes fico horas a sonhar com um futuro que já foi.
Um amanhã que aconteceu ontem.
Uma utopia pretérita.
Um desespero esperançado, que reside na memória.
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