Este é o primeiro artigo da série “Variações do Contra” onde vão ser publicadas algumas traduções livres da poesia anglo-saxónica, que são da inteira responsabilidade do ContraCultura. Este artigo que se apresente como primeiro, é porém posterior à publicação de um Variação do Contra sobre um poema de Li Bai, o eterno bardo chinês, que não conta para este totobola porque a poesia chinesa é um monstro completamente diferente.

Transcreve-se a a este propósito aquilo que aqui se escreveu em 2022 sobre a arte da tradução:

Traduzir poesia é um ofício de impossibilidades. Cada poema encerra infinitas abordagens de translação, multiplicadas por centenas de línguas, mortas ou vivas, dialectos e regionalismos, por sua vez multiplicadas pela sensibilidade e subjectividade e universo léxico do tradutor e depois multiplicadas ainda pelos modelos culturais de cada era e consequentes dissonâncias cognitivas.

Vista desta forma, a poesia é um labirinto borgiano onde a sintaxe e a semântica se perdem em incontáveis variações, na infinitude das estantes da biblioteca de Deus.

Apesar das dissonâncias e dos desvios, na forma e – muitas vezes – no significado, os problemas decorrentes da tradução do objecto lírico não são necessariamente um mal. Podemos até projectar essas dificuldades como uma forma da literatura criar ramificações, quase de forma automática. Um poema sujeito a milhares de traduções, vive milhares de vezes. Ressuscita todos os dias. É escrito de outra maneira, lido de outra forma, pela posteridade a dentro.

Em cada poema vertido para uma língua que lhe é alienígena, há um outro poema que nasce, duas vozes que se somam – a do poeta e a do tradutor – dois tempos que se interseccionam, duas culturas que chocam sem se anularem, numa cópula de alto risco que é prenhe de tentativas e erros, de inovação e arcaísmo, num perpétuo movimento lírico que projecta a alma humana para fora do tempo e do espaço: o palco sagrado da inventiva artística.

 

 

Pôr o Tigre a falar Português.

Uma das mais eminentes figuras do romântico, poeta, tipógrafo, ilustrador e autodidata, William Blake (1757 – 1827) é uma figura sem paralelo na cultura britânica e ocidental.

Este é, talvez, o mais célebre poema do autor londrino, síntese literária do seu multidimensional e fragmentado génio e espécie de perseguição lírica sobre a identidade do Criador.

 

Original

THE TYGER

Tyger! Tyger! burning bright
In the forests of the night,
What immortal hand or eye
Could frame thy fearful symmetry?

In what distant deeps or skies
Burnt the fire of thine eyes?
On what wings dare he aspire?
What the hand dare sieze the fire?

And what shoulder, & what art,
Could twist the sinews of thy heart?
And when thy heart began to beat,
What dread hand? & what dread feet?

What the hammer? what the chain?
In what furnace was thy brain?
What the anvil? what dread grasp
Dare its deadly terrors clasp?

When the stars threw down their spears,
And watered heaven with their tears,
Did he smile his work to see?
Did he who made the Lamb make thee?

Tyger! Tyger! burning bright
In the forests of the night,
What immortal hand or eye
Dare frame thy fearful symmetry?

 

Versão do Contra

O TIGRE

Tigre! tigre! Brilhas na furna
Da escura floresta nocturna,
Que gesto, que olhar imperecível
talhou essa simetria temível?

Em que abismo de céu sem lugar
Arde a chama do teu olhar?
Em que asas lançar-se ousou
A mão que esse fogo cercou?

Que ombros, que artes vão
muscular o teu coração?
E quando começa a bater
Que mãos e pés vêm a ser?

Que martelo, que corrente,
Que fornalha fundiu tua mente?
Em que bigorna foram batidos
Os terrores que guardas cingidos?

Quando as estrelas lançam o manto
E lavam os céus com esse pranto,
Perante sua criação é Ele que sorri?
Quem criou o cordeiro, criou-te a ti?

Tigre! tigre! Brilhas na furna
Da escura floresta nocturna,
Que gesto, que olhar imperecível
talhou essa simetria temível?

 

 

Lord Byron já não faz caminhadas nocturnas.

George Gordon Byron (1788 – 1824), 6º Barão Byron, é considerado unanimemente um dos maiores poetas ingleses e expoente do romântico. Caído em desgraça por infidelidade matrimonial e dívidas monumentais, foi obrigado a viver no exílio os últimos oito anos da sua breve e conturbada existência.

O poema seleccionado poderá ter sido inspirado nesse facto, já que evoca caminhadas nocturnas que o poeta aparentemente fazia com a sua amada, rotina que no momento em que escreve os versos parece impossibilitado de cumprir.

 

Original

SO WE’LL GO NO MORE A-ROVING

So we’ll go no more a-roving
So late into the night,
Though the heart still be as loving,
And the moon still be as bright.

For the sword outwears its sheath,
And the soul outwears the breast,
And the heart must pause to breathe,
And love itself have rest.

Though the night was made for loving,
And the day returns too soon,
Yet we’ll go no more a-roving
By the light of the moon.

 

Versão do Contra

POR ESTE CAMINHO NÃO IREMOS ADIANTE

Por este caminho não iremos adiante
nem por dentro da noite tardia.
Mesmo que o coração se quede amante,
E que a lua brilhe de dia.

Porque a espada a sua bainha supera,
E a alma o peito transcende,
E o coração p’ra respirar faz espera,
E o amor do descanso depende.

Ainda que a noite seja do amante
e que o dia chegue cedo demais
por este caminho não iremos adiante
à luz da lua nunca mais.