No dia 18 de Janeiro, o Parlamento Europeu (PE) aprovou uma resolução que alarga a lista de crimes de dicurso na União europeia, de modo a incluir todas as formas de “crimes de ódio” e de “discurso de ódio”.
Este processo foi desencadeado em 2020, quando a Presidente da Comissão europeia, Ursula von der Leyen, anunciou, no seu discurso sobre o Estado da União e na carta de intenções que o acompanhava, uma nova iniciativa para
“alargar a lista de crimes da UE a todas as formas de crimes de ódio e discurso de ódio – seja por causa da raça, religião, género ou sexualidade”.
A mudança que esta lei exige é impressionante. Embora todos os Estados-Membros criminalizem actualmente o discurso de ódio com base na raça, cor, religião, descendência, origem nacional ou étnica, apenas 20 deles incluem explicitamente a orientação sexual na legislação relativa ao discurso de ódio, enquanto 12 incluem a identidade de género e apenas dois abrangem as características sexuais.
À primeira vista, pode parecer benigna uma proposta que visa policiar e sancionar mais eficazmente o “discurso de ódio”. Afinal de contas, quem é que quer defender o ódio? Certamente, como a própria Presidente von der Leyen disse: “Ódio é ódio e ninguém deve ter de lidar com ele.”
A lógica, de estilo soviético, é análoga àquela que fundamentou a nomenclatura do movimento “Black Lives Matter”, porque em princípio ninguém vai afirmar que as vidas dos negros não interessam. A mesma ideia está por trás do discurso dos histéricos do clima, porque ninguém se atreve a contrariar a sua missão de “salvar o planeta”. O mesmo podemos aliás dizer sobre as elites políticas que nos tiranizam para “salvar a democracia”.
Mas mesmo que confundamos tais chavões tautológicos com sabedoria genuína, não se segue necessariamente que o ódio percebido seja sempre ódio real. Para quem se preocupa com a protecção da liberdade de pensamento e de expressão, parte do problema desta resolução é que uma variedade de diferentes subcategorias de expressão são muitas vezes desajeitada, ou cinicamente, classificadas como “discurso de ódio”.
É necessário sublinhar que estamos a lidar com um conceito que existe num espectro de nuances.
Numa extremidade desse espectro estão as formas de expressão que incitam à violência ou à hostilidade contra outras pessoas e grupos, e que são, por isso, proibidas por todos os principais tratados internacionais e regionais de direitos humanos.
No outro extremo do espectro, o termo “discurso de ódio” torna-se uma espécie de designação jurídica incorrecta, uma vez que o que está a ser referido são formas de expressão que algumas pessoas ou grupos podem, de facto, afirmar que consideram insultuosas, perturbadoras ou ofensivas, mas que, no entanto, recebem e merecem protecção legal.
Por exemplo: se eu disser que os homens não podem engravidar, vou estar a ofender uma quantidade de retardados. Mas isso não quer dizer que:
– Os homens possam engravidar de facto;
– Que eu odeie os retardados ou os homens que pensam que podem engravidar e que também são retardados;
– Que existe de facto uma ofensa, porque se considerarmos que a verdade dos factos é substância ofensiva transformamos o mundo num imenso Júlio de Matos;
– Que dizer a verdade é um veículo de disseminação de ódio, pelas mesmas razões.
A introdução deste elemento de subjectividade no policiamento do discurso de ódio – o contínuo alongamento do espectro na sua extremidade mais suave, por assim dizer – não foi de todo inadvertida, já que permite que os burocratas não eleitos da Comissão Europeia (CE) redefinam o que se qualifica como “ódio” de acordo com os seus próprios interesses políticos, alargando assim a rede de aplicabilidade a vários indivíduos e grupos cujas opiniões divergentes sobre as alterações climáticas, a imigração em massa e as questões LGBTQ+ são ideologicamente inconvenientes.
Entendida neste contexto, é evidente que a proposta da Presidente von der Leyen faz parte de uma tendência a longo prazo dos três órgãos de governação da UE no sentido de baixar o limiar de criminalidade para o discurso punível e, assim, tornar grande parte do lado mais suave do espectro um assunto de polícia.
Na documentação associada à proposta da CE, por exemplo, encontramos vários acenos de aprovação à definição de “discurso de ódio” articulada pelo Comité das Nações Unidas para a Eliminação da Discriminação Racial (CERD):
“Uma forma de discurso dirigido ao outro que rejeita o princípio fundamental dos direitos humanos, da dignidade humana e da igualdade e que procura degradar a posição de indivíduos e grupos na estima da sociedade.”
Note-se que, ao contrário de todas as outras definições internacionais do fenómeno – incluindo a própria definição da Comissão Europeia – a definição do CERD rompe a ligação entre o “discurso de ódio” e o incitamento à violência.
Num relatório que apoia a Comunicação da CE, a Comissão das Liberdades Cívicas do Parlamento Europeu não só cita a CERD, como também afirma que “o direito fundamental que é protegido na luta contra o discurso de ódio e os crimes de ódio é a dignidade humana”, que “a futura legislação da UE para abranger o discurso de ódio e os crimes de ódio deve proteger a dignidade humana” e que a UE deve “oferecer uma protecção que não exclua novas motivações sociais para o ódio, uma vez que é a dignidade das vítimas que deve ser protegida”.
Mas o que é que isso significa na prática? Será que carregar um cartaz com a frase “As mulheres trans não são mulheres” viola a dignidade humana de alguém com as características protegidas relevantes? Será que os cristãos que vão para as redes sociais partilhar as suas opiniões sobre o casamento e a sexualidade violam a dignidade humana das pessoas que reivindicam uma identidade de género excêntrica para si próprias ou que têm uma orientação sexual específica? E o que dizer de situações, como na Irlanda, após os motins de Dublin, em que os utilizadores das redes sociais identificaram a nacionalidade de um suspeito de homicídio, será isso considerado uma violação da dignidade humana de outras pessoas que partilham características nacionais, étnicas ou raciais semelhantes?
De facto, não precisamos de especular com base em exemplos hipotéticos.
A recente provação legal de quatro anos da política finlandesa Paivi Rasanen, que foi acusada ao abrigo das leis de discurso de ódio recentemente implementadas no país por ter tweetado um versículo da Bíblia enquanto desafiava a igreja local pela sua decisão de patrocinar um evento do Orgulho em Helsínquia é um exemplo claro de como pode degenerar esta resolução da UE. Mas há mais:
A actriz norueguesa Tonje Gjevjon enfrenta até 3 anos de prisão por dizer que os homens não podem ser lésbicas.
O Parlamento Europeu abriu um inquérito contra um eurodeputado nacionalista flamengo por “discurso de ódio”, depois de este se ter referido à política de asilo da UE como uma forma de “substituição demográfica organizada” num debate plenário.
Estes três exemplos, entre muito outros, fornecem um vislumbre preocupante do admirável mundo novo a que Bruxelas nos quer submeter.
Além disso, embora a maioria das organizações de direitos humanos, instituições de caridade e ONGs que trabalham com e ao lado da UE sejam bastante tímidas quando se trata de fornecer exemplos reais de que se enquadrem no âmbito da lei, escondido no recente estudo do Conselho da Europa sobre a “prevenção e combate ao discurso de ódio em tempos de crise” está uma subsecção intitulada “Discurso de ódio e a guerra de agressão da Federação Russa contra a Ucrânia” que contém a seguinte passagem:
A nível local [na Alemanha], especialmente em pequenas cidades ou aldeias onde os refugiados da Ucrânia foram e são acolhidos, surgiram tensões e as autoridades policiais foram alertadas em caso de discurso de ódio. De acordo com a Sociedade para os Direitos Civis, o discurso de ódio começou a visar os refugiados da Ucrânia, também como reacção a uma recente “crise de habitação” na Alemanha. De facto, as pessoas começaram a queixar-se de que “os refugiados têm melhores acomodações do que os nossos sem-abrigo, do que os nossos pobres”.
Será que se trata de um discurso de ódio que viola a dignidade humana dos ucranianos, ou simplesmente a expressão de uma opinião política perfeitamente legítima sobre a abordagem do Estado alemão às fronteiras territoriais, à imigração e à protecção social?
É claro que a motivação para baixar o limiar da criminalidade é, em boa parte, ideológica. De acordo com a Rede Europeia de Organismos para a Igualdade (Equinet), o facto de os Estados-Membros insistirem em manter um limiar objectivo, relacionado com a ordem pública, para que o discurso se torne passível de ser processado é também indicativo da “incapacidade da legislação para reflectir a experiência vivida pelos grupos vulneráveis afectados pelo discurso de ódio”. A invocação desse artigo incontestável da fé woke, a “experiência vivida”, segundo o qual a subjectividade e o solipsismo prevalecem sobre a objectividade e a realidade externa, sugere que é a motivação política que está por trás da obliteração da liberdade de expressão
Noutra parte, porém, a motivação parece derivar de um esforço da UE para classificar como patológicos certos tipos de discurso.
O “discurso de ódio”, como refere a CE na sua comunicação inicial,
“pode conduzir não só a conflitos, mas também a crimes de ódio. As evidências apontam para uma ‘pirâmide de ódio’, começando por actos de preconceito (por exemplo, bullying, ridicularização, desumanização) e discriminação (por exemplo, económica, política), subindo até à violência motivada por preconceitos, como assassinatos, violações, agressões, terrorismo, extremismo violento e até genocídio”.
Esta referência a uma “pirâmide do ódio” é retirada da “Escala de Preconceito” do psicólogo social americano Gordon Allport, desenvolvida pela primeira vez em 1954. O modelo de Allport inclui cinco fases de escalada comportamental de um indivíduo, começando com a “antilocução” (falar mal, estereotipar, mexericos rancorosos), passando por outras fases de “recusa”, “discriminação” e “ataque” (danos criminais, agressão física) e culminando no “extermínio” (genocídio, limpeza étnica).
O próprio Allport, que era um psicólogo da Gestalt, advertiu contra o tratamento deste modelo específico como uma forma de prever deterministicamente a acção humana. Em The Nature of Prejudice (1954), escreveu:
“Muitas pessoas nunca passariam da antilocução para a recusa; ou da recusa para a discriminação activa, ou para um nível superior na escala”.
No entanto, é precisamente esta leitura comportamentalista do seu trabalho que parece fascinar as elites políticas europeias: a capacidade de um indivíduo para se envolver em actos de antilocução não controlados actua como um estímulo positivo que reforça o comportamento, que ao longo do tempo aumenta de frequência e acaba por se transformar em discriminação; a capacidade desse mesmo indivíduo para se envolver em actos de discriminação não controlados reforça então positivamente o comportamento, que ao longo do tempo aumenta, e assim sucessivamente.
A lógica subjacente já não é democrática, mas epidemiológica. Os cidadãos são transformados em “vectores” e certas formas de discurso que outrora teriam sido consideradas vitais para uma esfera pública pluralista, como o humor, a sátira ou a legítima dissidência sobre as narrativas da ortodoxia prevalecente, são reconfiguradas como “factores de risco” que marcam os indivíduos que estão no caminho da radicalização e da subsequente transformação do ódio em violência no mundo real.
Para os investigadores, decisores políticos e agências europeias encarregados de identificar os factores de risco linguístico e de desenvolver intervenções atempadas destinadas a interromper o alegado processo de radicalização, as consequências desta forma de pensar são evidentes na documentação que rodeia a iniciativa da CE.
Há, por exemplo, uma tendência notável que relaciona o envolvimento político e a dissidência com factores sociais e psicológicos que contribuem para a aquisição de uma “mentalidade de ódio”.
Talvez sem surpresa, grande parte da literatura de apoio inclui referências distópicas à necessidade de desenvolver medidas “preventivas” capazes de quebrar o mecanismo de reforço comportamental positivo que perpetua estes estados de espírito, por assim dizer, doentios.
De acordo com a recomendação do Comité de Ministros do Conselho da Europa (CECM) sobre o combate ao discurso de ódio,
“as autoridades estatais, as instituições nacionais de direitos humanos, os organismos para a igualdade, as organizações da sociedade civil, os meios de comunicação social, os intermediários da Internet e outras partes interessadas relevantes devem não só cooperar em iniciativas específicas, mas também partilhar dados e boas práticas e, através de planos de acção coordenados a médio prazo, trabalhar mais profundamente na prevenção”.
Por “prevenção”, o CECM entende, obviamente, a “censura profiláctica”.
Uma das “partes interessadas” a que o CECM se refere neste documento é o Laboratório Europeu do Ódio Online (EOHL), financiado pela UE, que está actualmente a tentar “aumentar o conhecimento dos ecossistemas de ódio online e a capacidade de resposta”. A frase-chave é “ecossistemas de ódio”.
Ao classificar certas formas de discurso como “linguagem tóxica” (ou seja, “um comentário rude, desrespeitoso ou despropositado que provavelmente fará com que se abandone uma discussão”) e “linguagem ofensiva” (ou seja, “qualquer forma de linguagem profana ou uma ofensa direccionada, que pode ser velada ou directa”), o EOHL está efectivamente a reposicionar o “discurso legal” como algo que constitui a periferia de um novo e notavelmente expansivo “ecossistema de ódio”.
Por outras palavras, o discurso que a maioria de nós consideraria robusto, mas também lícito e, portanto, parte integrante do que significa viver numa democracia liberal pluralista, está a ser transformado no equivalente linguístico de uma “droga de entrada”.
Mais uma vez, o potencial para que esta forma de pensar seja transformada em arma pelas elites políticas da UE como um meio de “perseguir” quaisquer formas de discurso que, por razões ideológicas, não lhes agradem, é evidente. Porque é claro que demonizar certos tipos de discurso político é preparar o caminho para a sua subsequente criminalização.
É provável que isto se revele problemático para a UE, enquanto sistema político que reivindica a “democracia representativa” como um dos seus seis valores fundamentais. Uma das principais características da democracia representativa é o pluralismo, ou seja, a liberdade de partilhar, discutir ideias, ouvir outras pessoas e grupos com os quais discordamos, e fazê-lo num espírito de tolerância, abertura de espírito e boa fé. No entanto, é precisamente esta liberdade que o actual fascínio da UE em patologizar – e criminalizar – certos tipos de discurso inconveniente, dissidente e céptico está a tentar erradicar.
Cabe-nos contrariar a tentativa, resistir e persistir na dissidência. Para que o génio humano, neste artigo ilustrado pelo prodigioso Bob Moran, faça luz sobre as trevas.
Relacionados
21 Nov 24
Joe Biden: Esclerose, manipulação ou cálculo?
Não é preciso muito esforço para concluir que Joe Biden está a ser evidentemente manipulado pelo deep state. E que o seu objectivo último é deixar a Donald Trump o legado de um mundo em guerra. Uma crónica de Walter Biancardine.
20 Nov 24
O pessimismo continua a ser o melhor conselheiro.
Nesta altura do campeonato, qualquer europeu que acredite viver em democracia, é retardado. E qualquer americano que deposite na administração Trump a fé de que a América vai voltar a ser a terra dos livres e a casa dos bravos sofre de dioptrias no cerebelo.
19 Nov 24
A 60 dias do fim do seu mandato, Joe Biden decidiu-se pelo apocalipse.
No crepúsculo da sua presidência, Joe Biden acabou de cometer um dos actos presidenciais mais irresponsáveis da história dos EUA, ao autorizar Zelensky a usar mísseis americanos para atingir alvos no interior da Rússia. Só nos resta agora rezar pela paz.
19 Nov 24
Os ventos podem estar mudando.
O “efeito Trump”, que já é perfeitamente perceptível, e o sucesso de Javier Milei na Argentina justificam algum otimismo, quanto a um futuro menos distópico. Uma crónica de Walter Biancardine.
18 Nov 24
O erro de Pelosi.
Nancy Pelosi disse ao New York Times que se Joe Biden tivesse desistido da campanha presidencial mais cedo, poderiam ter surgido outros candidatos com melhores hipóteses de bater Trump na corrida presidencial. Como é seu costume, está equivocada.
17 Nov 24
Paris decretou o fim da cultura woke.
Por ter ido para além dos limites da ignomínia, a abominação da cerimónia de abertura dos Jogos Olímpicos de Paris pode ter marcado o princípio do fim da cultura Woke. Uma crónica de Walter Biancardine.