“A palavra ‘coragem’ deve ser reservada para caracterizar quem recusa o santuário infantil da mente das massas.”
Sam Keen, Fire in the Belly
No íntimo das nossas mentes, muitos de nós discordam das ideologias, das agendas políticas e dos mandatos governamentais dos nossos dias, mas em público obedecemos. Fazemos o que nos mandam, cumprimso com o que é politicamente correcto e justificamos a nossa hipocrisia dizendo a nós próprios que somos impotentes para mudar a sociedade e, por isso, mais vale o conformismo às tendências da multidão. Este texto procura explicar porque é que o facto de nos conformarmos publicamente com aquilo de que discordamos em privado nos torna cúmplices da tirania e porque é que cada um de nós tem muito mais poder para influenciar a sociedade do que fomos levados a acreditar.
Nos anos 50, o psicólogo social Solomon Asch realizou uma experiência que demonstrou até que ponto os indivíduos rejeitam o que pensam ser verdade para se conformarem com a maioria. Na experiência, Asch mostrou dois cartões a um sujeito de teste. No primeiro cartão havia uma única linha, e no segundo cartão havia três linhas, A, B e C, sendo que apenas a linha C tinha o mesmo comprimento que a linha do primeiro cartão. Asch instruiu o sujeito do teste a dizer qual das linhas do segundo cartão tinha o mesmo comprimento que a linha do primeiro cartão. No entanto, antes do sujeito do teste dar uma resposta, testemunhou a participação na experiência de 7 outros indivíduos, que na verdade faziam parte da equipa de Asch e que estavam lá para para afirmar que a linha B tinha o mesmo comprimento que a linha do primeiro cartão, o que era falso. Em vez de afirmarem a verdade óbvia, os sujeitos da experiência deram a mesma resposta errada, que tinha sido dada por esses indivíduos, 37% das vezes, e entre os 123 sujeitos que participaram neste estudo, dois terços alinharam com o grupo pelo menos uma vez.
A experiência de Asch confirma o que os filósofos têm vindo a reiterar há milhares de anos: para a maioria dos seres humanos, a conformidade com o que os outros dizem e fazem – por mais objectivamente falso ou absurdo que seja – tem precedência sobre a adaptação à realidade e a descoberta da verdade. Ao reflectir sobre a experiência de Asch, o psicólogo Todd Rose explica:
“Preocupamo-nos em estar na maioria numérica mesmo quando não nos preocupamos necessariamente com o grupo e mesmo quando a opinião do grupo é apenas uma ilusão. Agindo por instinto, em situações sociais os nossos cérebros não se dão ao trabalho de fazer a distinção entre aparência e realidade. Mesmo na ausência de pressão ou incentivos intencionais, gostamos de seguir o que pensamos ser o consenso porque, muito simplesmente, estamos biologicamente programados para o fazer.”
Todd Rose, Collective Illusions
A nossa inclinação para seguir o que pensamos ser o consenso torna-nos vulneráveis à propaganda e facilmente manipuláveis. Porque uma das principais formas de prestidigitação utilizadas pelos governos, pelas empresas e pelas instituições globalistas para influenciarem a opinião pública e moldarem o comportamento das massas é precisamente a de fabricar ilusões de consenso, aproveitando o poder dos principais meios de comunicação social e das redes sociais com o objectivo expresso de fazer parecer que a maioria apoia determinadas agendas, ideologias e mandatos. Narrativas tendenciosas, relatórios falseados, retórica que apela à emoção, “verificações de factos” enganosas, mentiras descaradas, sondagens de opinião duvidosas e bots que criam massa crítica de opinião nas redes sociais são algumas das armas utilizadas nesta forma de guerra psicológica. Todd Rose dirige uma organização que investiga as ideias erradas que as pessoas têm sobre o que é o consenso em questões sociais e políticas, e como ele explica:
“Pense em algo que seja verdadeiramente importante para si e aposto que isso não é verdadeiramente importante para pelo menos metade das outras pessoas.”
Todd Rose, Collective Illusions
Estas ilusões de consenso levam muitos de nós a censurar as nossas verdadeiras opiniões e a cumprir agendas e ideologias socialmente destrutivas. Todd Rose faz referência a um estudo realizado em julho de 2020 que revelou que quase dois terços dos americanos não se sentem à vontade para expressar as suas opiniões políticas em público. Mas para piorar a situação, quando os outros nos observam conformados em público, assumem que concordamos com aquilo a que nos estamos a conformar, o que aumenta a tendência para o seguidismo e abre a porta à formação de ilusões colectivas que se espalham por toda a sociedade. Ou, como explica Todd Rose:
“As ilusões colectivas são mentiras sociais. Ocorrem em situações em que a maioria dos indivíduos de um grupo rejeita em privado uma determinada opinião, mas aceita-a porque assume (incorretamente) que a maioria das outras pessoas a aceita. O resultado é uma profecia perniciosa e auto-replicável. Ao fazermos suposições cegas e, em última análise, falsas sobre as opiniões dos que nos rodeiam e ao preocuparmo-nos com o facto de estarmos em minoria, tornamo-nos mais propensos a perpetuar os pontos de vista que nós e os outros não defendemos. Pior ainda, porque as mesmas pessoas que discordam do status quo são as que o impõem, torna-se praticamente impossível desmantelar a ilusão.”
Todd Rose, Collective Illusions
As ilusões colectivas desempenham um papel fundamental na ascensão e solidificação da tirania. Para ilustrar a forma como esta dinâmica se desenrola e como pode ser travada, podemos recorrer ao que Vaclav Havel escreve em The Power of the Powerless.
Na Checoslováquia comunista, havia um homem que vendia fruta e legumes numa loja de esquina. Todas as manhãs, pendurava na montra um cartaz aprovado pelo governo onde se lia “Trabalhadores do Mundo, Uni-vos!”. O lojista não acreditava na mensagem do cartaz – para ele, não passava de um cliché de propaganda. Após décadas de dura opressão política, era claro para ele que a alegada preocupação do governo com os trabalhadores do mundo era uma fachada ideológica para esconder a sua sede de poder. No entanto, mesmo sabendo que o letreiro era propaganda, todas as manhãs pendurava-o na mesma, porque era o que toda a gente fazia. Os cartazes com o apoio do Governo estavam pendurados nas montras de todas as lojas; faziam parte daquilo a que Vaclav Havel chamou “o panorama da vida quotidiana”, que ajudava a criar e a manter a ilusão colectiva de que a maioria apoiava o Governo. E foi esta ilusão colectiva de consenso, mais do que qualquer outro factor, que garantiu a adesão das massas. Ou, como Timothy Snyder explica na introdução de The Power of the Powerless:
“O lojista pendura o seu cartaz não porque recebe uma ordem, mas porque vê que os outros fazem o mesmo. Os outros, por sua vez, seguem o seu exemplo. O sistema é totalitário não porque um indivíduo tem poder total, mas porque o poder é partilhado em condições de total irresponsabilidade.”
Timothy Snyder, Introdução a The Power of the Powerless
Ou como Havel explicou:
“Sem o slogan do lojista, o slogan do empregado de escritório não poderia existir, e vice-versa. Ao exibirem os seus slogans, cada um obriga o outro a aceitar as regras do jogo e a confirmar, assim, o poder que exige os slogans em primeiro lugar. Muito simplesmente, cada um ajuda o outro a ser obediente. No sistema totalitário, cada um, à sua maneira, é simultaneamente vítima e apoiante do sistema.”
Václav Havel, The Power of the Powerless
Um dia, o lojista decidiu que estava farto de apoiar um governo autoritário e deixou de pendurar o cartaz na sua montra. Além disso, deixou de votar naquilo que considerava serem eleições fraudulentas, deixou de regurgitar a propaganda do governo e começou a expressar publicamente as suas verdadeiras opiniões. Estes actos aparentemente simples iniciaram um efeito de onda notável, pois, como escreve Todd Rose
“Surpreendentemente, com uma rapidez espantosa, o lojista começou a ganhar apoio pela simples razão de que toda a gente na cidade sentia exactamente o mesmo que ele. Cansados de viver sob opressão, o alfaiate, o padeiro e o empregado de escritório seguiram-lhe o exemplo. No momento em que um cidadão deixou de cooperar, enviou um sinal a todos os outros de que podiam fazer o mesmo.”
Todd Rose, Collective Illusions
Este vendedor de frescos é uma alegoria de personificação; ele representa todos os indivíduos da Checoslováquia comunista cujas acções não conformes ajudaram a destruir a ilusão colectiva de apoio consensual sobre a qual foi construído todo o edifício da tirania. A destruição desta ilusão colectiva culminou na Revolução de Veludo, uma das rara ocorrências históricas de um levantamento civil pacífico que derrubou um regime opressivo. A forma como esta revolução surgiu, e como conseguiu uma mudança política tão profunda em apenas 11 dias, intriga alguns historiadores. No entanto, o que é muitas vezes ignorado é o facto das sementes dessa rebelião terem sido plantadas nos anos anteriores por todos os heróis desconhecidos da Checoslováquia, cujo comportamento seguia o padrão do homem que vendia alfaces. Ou, como explicou Vaclav Havel:
“Ao quebrar as regras do jogo [da tirania], o lojista perturbou-o e expôs a sua natureza. Disse que o rei vai nu. E porque o rei ia de facto nu, aconteceu algo extremamente perigoso: com a sua acção,permitiu a todos espreitar por detrás da cortina. Mostrou a toda a gente que é possível viver dentro da verdade.”
Václav Havel, The Power of the Powerless
Como seres altamente sociais, o que dizemos e fazemos influencia as pessoas com quem nos cruzamos, e mesmo pequenas manifestações de incumprimento e inconformismo têm o poder de se propagar e iniciar um ‘efeito borboleta’ que muda a sociedade de forma dramática. Daí que Aleksandr Solzhenitsyn tenha afirmado que um único indivíduo a dizer a verdade pode derrubar uma tirania, ou como Henry Melvill observou:
“As nossas vidas estão ligadas por mil fios invisíveis e, ao longo destas fibras simpáticas, as nossas acções correm como causas e regressam a nós como resultados.”
Henry Melvill
Alguns de nós, no entanto, enfrentam repercussões económicas, sociais ou físicas por serem demasiado sinceros nas suas crenças. Se as consequências de viver plenamente na verdade forem demasiado severas, Rose recomenda a estratégia de semear a dúvida na mente dos outros, ou como ele explica:
“Por exemplo, pode dizer algo como: ‘Ainda não me decidi’ ou ‘Por um lado, consigo ver o valor de x, mas por outro…’ Também pode sugerir outras opções, dizendo coisas como ‘Tenho um amigo que…’ ou ‘Li algures que…’ Isto dá-lhe uma negação plausível, mantendo o controlo. Também oferece uma escapatória para outros que têm medo de falar. Muitas vezes, basta uma única faísca de ambivalência ou de opinião contraditória. Quando se abre a porta, outros podem ganhar coragem para a seguir.”
Todd Rose, Collective Illusions
Se, por outro lado, adoptarmos a hipocrisia como um modo de vida e cumprirmos integralmente agendas políticas, ideologias e mandatos com os quais não concordamos, então não seremos apenas uma vítima da tirania crescente que está a sufocar a nossa sociedade, mas também um apoiante activo.
Referindo-se às mentiras endossadas pelo governo, que a maioria dos cidadãos da Checoslováquia comunista acatava, Vaclav Havel escreveu:
“Os indivíduos não precisam de acreditar em todas estas mistificações, mas têm de se comportar como se acreditassem ou, pelo menos, têm de as tolerar em silêncio. Por esta razão, no entanto, têm de viver dentro de uma mentira. Não precisam de aceitar a mentira. Basta que tenham aceitado a sua vida com ela e nela. Porque, por esse mesmo facto, os indivíduos confirmam o sistema, cumprem o sistema, fazem o sistema, são o sistema.”
Václav Havel, The Power of the Powerless
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