A imprensa corporativa não gosta nada deste assunto, claro, mas a utopia da nação arco-íris que se seguiria aos horrores do apartheid transformou-se rapidamente numa distopia subsariana e a África do Sul sonhada por Mandela e prometida pelo New York Times nunca chegou a ser.

O país contemporâneo está muito perto de deixar de ser um país: corrupção generalizada, explosão e normalização da actividade criminosa, falência técnica das infraestruturas, instituições inoperantes, moeda desvalorizada até à irrelevância, regresso à lógica tribal. Uma definição de estado falhado.

No último ano, os sul africanos têm convivido todos os dias com cortes de electricidade que duram 4 a 6 horas. Como é que se gere um negócio, como é que se desenvolve administração pública, com blackouts desta natureza?

Quando não se dedicam ao linchamento, por processos bárbaros como o “necklace”, de quem tiver a infelicidade de cair em desgraça pública, turbas populares incendeiam fábricas, perseguem e expropriam agricultores, destroem colheitas, entram por centros comerciais a dentro e roubam tudo o que lá existe, num exercício de banditismo que pode durar horas mas é realizado impunemente e sem aparente presença policial. Certas ondas de violência e vandalismo deste género varrem pequenas cidades, pilhando todos os bens e alimentos, sem que seja detidas por qualquer iniciativa das autoridades. E isto numa fase já degradada do que consideramos civilização, na medida em que até os alimentos escasseiam, mesmo os essenciais, como leite e ovos.

A reacção à selvajaria das multidões também não indicia nada de bom: as milícias armadas estão em crescimento exponencial. A polícia não protege, o governo não governa, a justiça não procura, a lei é a da selva. Cada um defende-se como pode.

As grandes metrópoles, como Joanesburgo ou a Cidade do Cabo, são hoje cenários dantescos, que estão na lista das urbes mais perigosas do mundo.

Num país riquíssimo em recursos naturais e que herdou do domínio branco estruturas industriais que já foram de referência mundial, metade dos sul africanos vive abaixo do limiar de pobreza. O produto per capita (96º no ranking global) é inferior ao da Albânia, do Gabão e da Guiné Equatorial, por exemplo.

As instituições da república são inoperantes, corruptas e anedóticas. Os líderes políticos são chefes tribais, ou pior, simples bandidos.

Para todos os efeitos técnicos, a República deixou de existir. E na ausência da ordem republicana, o instinto tribal, profunda e visceralmente racista, triunfa:

 

 

Lembro-me bem, desde a infância, durante a adolescência e em crescendo até à libertação de Mandela e à sua subida ao poder, da frequência com que a imprensa denunciava as misérias deste país martirizado e as injustiças do regime branco, sublinhando a heroicidade daqueles que contra esse jugo lutavam. Mas a partir do momento em que o poder foi entregue ao ANC, o olho crítico dos jornalistas ocidentais cegou.

Estruturar uma sociedade com base na etnia ou na cor de pele de cada um é uma terrível ideia e o apartheid era uma forma aberrante de governar os sul africanos, sim, completamente. Mas o silêncio da comunicação social convencional sobre o que se passa hoje na África do Sul, um verdadeiro inferno na Terra, é simplesmente vergonhoso e eloquente sobre o comprometimento ideológico, valor acima de todos, da imprensa contemporânea.

Mas ao oitavo dia, Deus (com a colaboração de Tim Berners-Lee) criou a web, e é assim possível recolher testemunhos fidedignos sobre o que está realmente a acontecer no terreno. O Contra deixa aqui, para aqueles mais interessados em aprofundar o conhecimento sobre a actualidade sul africana, dois clips de longo formato de Winston Sterzel, um sul-africano escapado para a China, que tem conhecimento de causa e muitas fontes no país.

Foram publicados com um ano de diferença e ilustram assim esplendidamente o que se passou na África do Sul nos últimos tempos.