Desde 2020, quando Pogacar arrancou a vitória a Roglic, na célebre crono-escalada que perfazia a penúltima etapa dessa edição do Tour, que estamos a assistir a uma era do ciclismo que vai permanecer na memória colectiva durante gerações sobre gerações.

O calibre atlético e mental de Tadej Pogacar e Jonas Vingegaard é difícil de igualar, são ciclistas de eleição, cujo surgimento é sempre de grande improbabilidade estatística; mas ainda assim devemos ponderar na equação do ciclismo contemporâneo outros atletas olímpicos, no sentido helenístico do termo, como Remco Evenepoel, Wout van Aert, Mathieu Van Der Poel, Primoz Roglic e Tom Pidcock. É muita gente de muita qualidade.

Esta é, de facto, uma boa altura para gostar de ciclismo e a prova disso mesmo foi a edição de 2023, da qual fica aqui a merecida crónica.

 

Semana 1: O Tour ao contrário.

Ao invés do que costuma acontecer, os primeiros dias da edição deste ano do Tour de France não foram propriamente aborrecidos. Das nove etapas da primeira semana, só a quarta foi um pouco menos intensa, embora os seus últimos 20 a 30 quilómetros, pejados de peripécias, pedalados a velocidades alucinantes e disputados como um combate de luta livre no Circo Romano, tenham valido bem a atenção que qualquer adepto de ciclismo lhes possa ter dedicado.

Nas duas primeiras etapas, corridas no acidentado e belo País Basco, o pelotão parecia enfurecido pela febre que ataca os ciclistas em clássicas e monumentos, provas de um dia em que se dá tudo o que se tem nas cinco ou seis horas de competição, mas que não costuma infectar os concorrentes de grandes voltas, que duram 3 semanas e que são disputadas pelos melhores atletas do planeta e que integram percursos desenhados por sádicos profissionais.

Depois de Pogacar, aqui e ali, ter conseguido ganhar uns magros 11 segundos a Vingegaard, naquele que seria previsivelmente o grande duelo para a vitória em Paris deste edição do Tour, a primeira etapa de alta montanha, com subidas ao Col du Soudet (15,2 kms a 7,2% de inclinação) e ao Col de Marie Blanque (7,7 kms a 8,6%) sofreram um terramoto na lógica.

Logo aos 30 ou 40 primeiros quilómetros da etapa, um bando de 36 malucos destacou-se do pelotão. O problema era que o australiano Jay Hindley, que foi só o vencedor do Giro de Itália em 2022, estava nessa ensandecida e populosa fuga, para além de um conjunto impressionante de outras estrelas do circuito internacional como Alaphilippe, van Aert, Haig, Ciccone, Buchmann, Uran e Chavez. Logo que a fuga ganhou um minuto, e apesar do que faltava correr, que era quase tudo, toda a gente conseguia adivinhar que o vencedor da etapa sairia deste qualificadíssimo grupo de candidatos a super-homem.

Tanto mais que, lá atrás no pelotão, a única equipa a trabalhar era a UAE de Pogacar. Isto embora não se tenha percebido bem como é que a Jumbo, numa etapa com este grau de dificuldade, deixou Wout van Aert ir na fuga, só para fazer uma figura parva: o belga não estava na forma que mostrou o ano passado e, esquecendo que tinha um candidato à vitória na prova para proteger, Vingegaard, fartou-se de atacar na frente, para atingir resultado nenhum, a não ser ajudar a colocar Jay Hindley à frente do seu colega de equipa na classificação geral. Quando finalmente desistiu da fuga e desceu ao pelotão, van Aert não conseguiu trabalhar pela equipa por mais de um quilómetro ou dois.

Ainda assim, a sorte protegeu os incompetentes, e o desgaste que a equipa de Pogacar sofreu ao perseguir a fuga durante horas intermináveis foi acusado no momento fundamental da última subida. A dois ou três quilómetros do fim, Vingegaard atacou para deixar Pogacar a falar sozinho, quebrado e exausto. O dinamarquês cortou o risco com um minuto e tal de avanço sobre o esloveno, numa demonstração de superioridade que já dava que pensar em relação à capacidade de reacção de Pogacar para os episódios hercúleos que a competição guardava. E um deles era logo no dia seguinte.

Jay Hindley, na primeira vez que correu a Volta à França, venceu a etapa e vestiu a camisola amarela, capitalizando nesse momento 47 segundos de vantagem sobre Vingeggard, que era segundo, e um minuto e quarenta sobre Pogacar que era, surpreendentemente, apenas sexto na classificação geral.

Até aqui, estava a acontecer tudo ao contrário do que era esperado. E do que tinha acontecido no ano passado. Perfeito.

 

 

Na sexta etapa, com 3 subidas muito difíceis aos Pirenéus, o guião daquilo que era expectável foi de novo virado ao contrário.

Depois de Pogacar ter perdido mais de um minuto para Vingegaard; depois de estarmos todos à espera que cedesse ainda mais tempo numa etapa ainda mais complicada e com uma Jumbo Visma ainda mais focada em quebrar o esloveno à primeira manifestação de fragilidade… Pogacar puxou do seu talento extraterrestre e venceu no cumo do Cambasque, roubando vinte segundos à desvantagem que trazia sobre o dinamarquês.

É verdade que Vingeggaard era agora camisola amarela, continuava com uma vantagem de 26 segundos na classificação sobre o seu rival, e teve a coragem, também de origem não humana, de atacar a cinquenta quilómetros do fim, no monstruoso Tourmalet e ainda com a subida toda do Cambasque por cumprir. Mas a sensação de que o líder da Jumbo podia decidir o Tour logo na primeira semana era, depois do que Pogacar fez nos últimos quilómetros desta duríssima etapa, não mais que uma ideia tonta.

Desta feita, Jay Hindley não se aguentou de todo ao ritmo dos homens da frente, tenho chegado a mais de dois minutos do vencedor e descendo a terceiro da geral. A camisola amarela não lhe tinha caído lá muito bem nos ombros.

Um parágrafo para Wout van Aert: enquanto Vingegaard e Pogacar partilham de facto um planeta à parte, o belga habita sozinho um mundo que é só dele. Van Aert fez seguramente uns bons cem quilómetros (numa etapa de 145) sempre ao ataque, sempre à frente, e sempre a um ritmo demolidor. Sinceramente, às vezes parece que este fantástico atleta, se não estivesse na Jumbo e se perdesse um quilo ou dois, podia perfeitamente lutar pela vitória em grandes voltas. E para quem, como o Contra, o acusou de egocentrismo na etapa anterior, van Aert dava uma lição de humildade e sacrifício absolutamente eloquente, trabalhando todo o dia, com afinco alucinado, em favor do seu líder.

Seja como for, esta primeira semana do Tour foi mesmo muito gira. E o que estava para vir prometia mais rábulas do género homérico.

 

 

Semana 2: a guerra aberta entre a Jumbo e a UAE culmina em duelos épicos pelas montanhas acima.

A semana intermédia da Volta à França chegou ao fim num impasse: Vingegaard e Pogacar estavam separados por 10 segundos e ninguém, nem eles, conseguia naquele momento imaginar como é que o nó da corda que os unia podia ser desatado. Até porque era até difícil saber quem é que tinha vantagem, mesmo que teórica, no contra-relógio que se ia disputar logo depois do dia de descanso.

Ricas em emoção e duelos épicos entre os dois favoritos, que correm numa classe à parte, exclusiva para os imortais da modalidade ciclística, as etapas 14 e 15 vão ficar para a história do Tour, com ataques alternados da Jumbo Visma e da UAE, que culminaram em duelos absolutamente extraordinários entre Vingegaard e Pogacar.

No correr da semana, o esloveno tinha ganho uns segundos ao camisola amarela, conseguindo no final de duas etapas ganhar uns poucos metros ao rival e capitalizar as bonificações que o risco de meta guardava.

Na etapa de Sábado, que contava 3 subidas de primeira categoria e uma de categoria especial, Pogacar quis atacar, mas as motas da imprensa e as multidões ensandecidas que fechavam a estrada impossibilitaram a iniciativa. Vingegaard aproveitou a frustração e a desconcentração do adversário e atacou a cem metros do fim da última montanha para ganhar uns segundinhos, mas como a etapa não acabava lá em cima, Pogacar conseguiu compensar esse lapso mental chegando à meta em segundo lugar, logo seguido do rival dinamarquês.

 


 

No Domingo, as coisas não foram muito diferentes, até porque a etapa também foi marcada por um acontecimento extra-desportivo: mais uma vez no Tour, o público influiu no desenlace da prova, já que um parvalhão qualquer que estava à beira da estrada logo nos primeiros quilómetros da corrida provocou a queda de dezenas de ciclistas, entre os quais dois da Jumbo Visma, que ficaram bastante magoados, influindo decisivamente na estratégia que a equipa tinha desenhado para esse dia, já de si muito difícil, que integrava 7 subidas (!), duas que nem sequer eram categorizadas (para que o sadismo não desse muito nas vistas) e 3 de primeira categoria.

Como no Sábado, a decisão ficou para os últimos quilómetros mas o resultado foi um empate técnico: como foi um ciclista que integrou a fuga que acabou por vencer e houve muitos dos elementos dessa escapada que chegaram antes dos dois candidatos à vitória na classificação geral, não houve bonificações no risco final do Mont-Blanc para Pogacar e Vingegaard, que chegaram coladinhos e continuaram assim com os mesmos dez segundos de diferença com que tinham partido nesse dia.

 


 

No que diz respeito aos simples mortais, o destaque ia inteirinho para Carlos Rodriguez, que era agora terceiro, depois de ter ganho a etapa de sábado com uma pinta desgraçada e de se ter aguentado muito bem na jornada de domingo. O espanhol estava já a mais de cinco minutos do duo de prodígios que disputava a vitória em Paris, mas contribuía deveras para que a INEOS consiguisse fingir que estava a fazer uma prova decente. Considerando o orçamento da equipa britânica, não estava. E considerando os resultados finais, não fez.

Vale a pena elogiar também a performance de Adam Yates, da UAE, e de Sepp Kuss, da Jumbo Visma, que conseguiam ser quarto e sexto, respectivamente, apesar de terem de trabalhar constante e afincadamente para os seus líderes.

 

 

Semana 3: Jonas Vingegaard faz vigorar lei do mais forte.

Logo depois do merecido descanso, o dinamarquês da Jumbo Visma fez o contra-relógio de uma vida e deu um banho a Tadej Pogacar, materializado num ganho de mais de minuto e meio sobre o seu rival. Vingegaard estava agora com uma vantagem na geral de 1’48” e muito dificilmente o esloveno, que apesar de ter feito segundo na etapa parecia bastante desgastado, poderia dar a volta ao desastre, mesmo considerando o muito que ainda havia para subir.

Todos sabemos que Pogacar, de vez em quando, é capaz de feitos mágicos, mas a hipótese de acontecer algo de sobrenatural era agora muito improvável. Tudo indicava que Jonas Vingegaard iria repetir o título de 2022.

A luta pelo terceiro lugar continuava, no entanto, em aberto, já que entre Yates, Rodriguez e Hindley não se contavam mais de 2 minutos de divergência.

 

Estas impressões confirmaram-se na etapa rainha do Tour, a 17ª, com 4 difíceis escaladas, a última de categoria especial com mais de 20 quilómetros de extensão. A Jumbo Visma decidiu-se a resolver as coisas de uma vez por todas e colocou um ritmo devastador na corrida. Na última subida, a 14 quilómetros do fim, Pogacar claudicou e disse isto, por rádio, ao seu director de corrida:

“Já fui. Estou morto.”

Nunca se tinha visto no esloveno uma quebra assim e mais à frente discutiremos as razões por trás deste colapso, porque existem. No entretanto, o líder da UAE ficava a mais de 7 minutos de Vingeggard e esteve quase para perder o segundo lugar para o seu companheiro de equipa Adam Yates.

A disputa pelo primeiro lugar da classificação geral da edição 2023 do Tour tinha acabado ali, na infernal subida para o cume do la Loze.

 

 

Ainda assim e apenas três dias depois do desfalecimento, Pogacar  conseguiu ainda reunir forças para atacar a 20ª etapa – e vencê-la. Não contente com o feito e para espanto geral, quis ainda tentar ganhar a última etapa em Paris, que é geralmente guardada para os sprinters ou para um ou outro fugitivo que tenha ainda pernas para a difícil aventura. Pogacar perdia o Tour, mas não saia de cabeça baixa. Nem pouco mais ou menos.

 

 

De facto, o esloveno fez tudo o que podia, num contexto difícil: o rapaz é um romântico da bicicleta. Quer ganhar tudo, quer afirmar-se como atleta completo, que vence desafios de um dia com a mesma ferocidade que triunfa em provas de três semanas e, por isso, sobrecarrega a época com as clássicas dos países baixos, logo na Primavera, tendo ganho este ano, entre outras provas, a Volta à Flandres, a Amstel Gold Race e a Flèche Wallonne. Pogacar, com apenas 24 anos, soma 45 vitórias no seu inacreditável palmarés, incluindo 11 etapas e dois títulos absolutos na volta à França.

A magnitude precoce e assustadora deste currículo deixa marcas e implica a assumpção de riscos. Quando corria a Liège-Bastogne-Liège deste ano, o esloveno caiu e partiu o pulso, comprometendo a preparação para o Tour. E isso notou-se, nas duas etapas que marcavam o início da terceira semana da competição, perante um Vingeggard na sua melhor forma de sempre e preparado de forma muito cuidadosa para ganhar o Tour.

A opinião do Contra, que vale o que vale, é a de que Pogacar é ligeiramente melhor ciclista que Vingegaard e, por certo, um atleta mais completo e espectacular. Mas o futuro poderá provar disparatada esta ideia, porque o dinamarquês é também um prodígio e está a acontecer no ciclismo aquilo que no futebol aconteceu com Messi e Ronaldo: dois monstros de raro talento disputam a glória e combatem pela eternidade, face a face e em directo para delícia da audiência global.

A edição deste ano foi emocionante e intensa como poucas, talvez não tão bela como a anterior, mas certamente digna de preencher algumas das páginas douradas do grande livro do Tour de France. Momentos houve de épica disputa entre Pogacar e Vingeggaard que dificilmente serão esquecidos pelos amantes do ciclismo.

 

 

Para além dos dois protagonistas do costume, os destaque finais vão para os irmãos Yates: Adam, que apesar de ser o operário de Luxo de Pogacar terminou no pódio e Simon, que graças a uma primeira semana de génio e a uma terceira semana de resiliência e determinação conseguiu fazer quarto na geral.

A performance de Carlos Rodriguez caiu na terceira semana, o que se traduziu numa descida de dois degraus na classificação geral, de terceiro para quinto, mas ainda assim e dada a sua juventude, ficou a promessa de dias felizes para o espanhol que a INEOS, inacreditavelmente, vai deixar sair para a Movistar, já na próxima época.

Uma palavra também para a despedida, que na 20ª etapa do Tour foi realmente comovedora, de Thibaut Pinot, o francês que é famoso pelos títulos que nunca ganhou, mas que, pela sua candura, humildade e elegância é amado pelos franceses e admirado pelos fãs da modalidade, um pouco por toda a parte.

Fiel ao seu estilo inconfundível, embora talvez ineficaz, Pinot subiu à penúltima montanha desse dia isolado na frente da corrida para saudar uma multidão em júbilo de incondicionais seguidores que lá o aguardava, só para terminar, trinta quilómetros mais à frente e de forma muito característica, em sexto na etapa. Não sendo a sua última prestação como profissional, este Tour foi o seu último, já que com 33 anos, o ciclista da Groupama-FDJ decidiu retirar-se no fim desta época.

 

 

Vale a pena sublinhar ainda o título de Rei da Montanha conseguido pelo heróico Giulio Ciccone (só lhe falta agora garantir a camisola de melhor escalador na Vuelta para coleccionar a tripla coroa dos montanhistas), e o triunfo de Jasper Philipsen na classificação por pontos, que somou às 4 vitórias em etapas, confirmando que é sem grandes dúvidas o melhor sprinter da actualidade.

E assim se correu mais uma edição da prova primeira do ciclismo mundial, este ano especialmente bem desenhada pela organização, que nos ofereceu etapas quase sempre animadas e renhidamente disputadas, mesmo aquelas que, por serem mais planas e destinadas aos sprinters, costumam decorrer de forma um pouco mais aborrecida e previsível. Não houve mais que uma ou duas etapas desse género neste Tour.

Para o ano, Pogacar e Vingegaard, que têm agora duas vitórias cada, desempatam a disputa. Mal podemos esperar.

 

Epílogo: a mais pungente, sincera e fascinante entrevista que um atleta profissional pode conceder.

Este texto vai já longo, mas tem que terminar assim: o vencedor da etapa 19 da Volta à França, Matej Mohoric, da Bahrain Victorious, enuncia a crueldade, a brutalidade, a lealdade, a humildade, a determinação e a glória do ciclismo de elite contemporâneo, naquela que é – como sublinha Patrick Broe, o Youtuber do canal Lanterne Rouge – a melhor entrevista que um atleta profissional pode conceder a um jornalista.

Importa informar que a Bahrain sofreu há poucas semanas atrás uma dolorosa e irrecuperável baixa: Gino Mader perdeu a vida num acidente na Volta à Suíça. O ciclismo é um desporto muito perigoso, talvez o mais perigoso dos desportos de grandes audiências, mesmo comparado com o automobilismo. Mas, muito para além da emoção e da dor, Mohoric explica com magistral eloquência e com a objectividade possível, os desafios físicos e mentais do Tour de France, num desabafo inesquecível.

Não importa aqui se se gosta ou não de ciclismo. Há que ouvir este homem. E aprender com ele qualquer coisa sobre sofrimento. Qualquer coisa sobre transcendência.