A 109ª Edição do Tour de France foi uma das mais rápidas de sempre, no que se refere ao registo das suas médias horárias. Foi também uma das mais renhidas e espectaculares corridas da renhida e espectacular história da competição. O duelo épico com que Vingegaard e Pogačar serviram, nas duas últimas semanas, à audiência global, não tem paralelo no Século XXI, seguramente.

Mas, se calhar, estas afirmações não são as mais significativas que podemos fazer sobre esta edição do Tour. Se calhar, a ilacção mais pertinente a retirar do que aconteceu nas estradas francesas foi esta: as próximas edições da prova têm tudo para serem tão espectaculares como foi esta.

Mas vamos por partes.

 

No empedrado, o caos.

À partida, aqueles que acreditavam que Tadej Pogačar não ia chegar, com alguma facilidade e a descontracção que nele é uma imagem de marca, vitorioso a Paris, deviam contar-se pelos dedos da mão mais castigada de um indisciplinado membro da Yakuza. E a primeira semana só confirmou essa certeza, porque o esloveno aproveitou um contra-relógio muito curtinho, o caos da etapa em pavé e as bonificações por ter vencido uma outra etapa que não estava destinado a conquistar, para conseguir uma vantagem de mais de 30 segundos sobre a concorrência directa, que na altura incluía, para além de Jonas Vingegaard, Primož Roglič e Geraint Thomas.

A primeira etapa a doer do Tour deste ano não foi a subir. Foi até bem plana, embora corrida num percurso com 11 estreitos e irregulares troços de em piso empedrado. Quedas, problemas mecânicos, paredes de poeira e equívocos tácticos disseminaram o caos entre o pelotão. E se a Jumbo Visma apostava neste dia muitas das suas chances de desgastar ou mesmo ganhar tempo a Tadej Pogačar, que corria practicamente sozinho, as coisas acabaram por suceder precisamente ao contrário.

Isto porque Wout van Aert, excepcionalmente e talvez desgastado não só pela magnífica vitória que tinha inventado no dia anterior, como por uma queda no primeiro terço da etapa, esteve, durante muito do seu percurso, em serviços mínimos. Para piorar as coisas, Jonas Vingegaard entrou em pânico por se ter soltado a corrente da bicicleta e, como uma barata tonta, em vez de corrigir a posição da corrente, perdeu imenso tempo a saltar para cima de velocípedes alheios; e Primož Roglič, conforme é seu hábito na Volta à França, espalhou-se no asfalto com tal violência que teve que se sentar num banquinho à beira da estrada e voltar a colocar, com toda a calma do mundo, o ombro deslocado no seu devido lugar anatómico.

Ainda por cima, a Jumbo deixou Roglič a sós com a sua desgraça durante imenso tempo e quando tomou uma decisão, optou pela pior, dividindo o bloco entre o apoio aos dois líderes (que iam separados apenas por 30 a 40 segundos) em vez de esperar um pouco pelo ciclista mais atrasado e depois atacar a frente da corrida com a sua formação integral, que é muito, mas mesmo muito forte.

Com isto tudo, Pogačar, que apesar dos seus 23 anos correu como uma raposa velha e andou sempre à cabeça do pelotão, acabou até por ganhar 13 segundos a Vingegaard (e aos rivais da Ineos) e mais de dois minutos a Roglič, que hipotecou aqui as suas hipóteses de lutar pela vitória.

 

 

Uma etapa verdadeiramente infernal. E ainda nem tínhamos chegado aos Alpes.

 

O Tour em toda a sua glória.

Uma semana depois, no decorrer de duas etapas tortuosas que somavam juntas cerca de nove mil metros de verticalidade, o Tour de Fance exibiu todo o potencial épico que historicamente encerra. Foi preciso chegar aos Alpes, mas valeu a pena esperar.

Na décima primeira etapa, sucedeu o que apenas alguns, muito poucos, pensavam possível quando percebemos que afinal Pogačar não estava condenado à coroa de louros em Paris. Acossado pela Jumbo Visma durante os acidentados 147 primeiros quilómetros, em que os ciclistas subiram ao Telegraph e ao Galibier com uma intensidade danada, o prodígio esloveno cedeu nos últimos 4, distância suficiente para que Vingegaard arrancasse para a camisola amarela. Pogačar sucumbiu completamente, terminando a infernal subida ao Col du Granon em sétimo, com quase três minutos de atraso em relação ao dinamarquês.

Há que dizer que esta subida, que só tinha sido feita uma vez na Volta à França, em 1986, passou nesse dia a deter o estatuto de trajecto mítico da competição, porque se desta vez aconteceu isto, já tinha sucedido algo de muito semelhante na subida de há 36 anos atrás: Bernard Hinault, que tinha saído para essa etapa com a camisola amarela, perdeu-a para Greg LeMond, com a mesma diferença no cronómetro que agora foi registada entre os dois favoritos à conquista da prova. Cerca de 3 minutos.

 

 

Na etapa 12, que incluía 3 subidas de categoria especial, sendo a última delas o incontornável Alpe D’Huez, Tadej Pogačar atacou nessa última ascensão, por várias vezes, mas Jonas Vingegaard não cedeu um milímetro, deixando o desenlace deste Tour para os Pirenéus, que seriam subidos na última semana da prova.

Esta etapa teve ainda o encanto de projectar Chris Froome para a atenção das audiências globais, já que, pela primeira vez desde o gravíssimo acidente que sofreu em 2019, o grande campeão e um dos melhores ciclistas de sempre foi protagonista numa competição de primeiro nível, fazendo toda a etapa no grupo da frente e terminando em terceiro lugar.

 

 

A última semana do Tour prometia espectáculo. E foi espectáculo que ofereceu.

 

Nos Pirenéus, um duelo para os anais.

A verdade é que depois do desfalecimento na etapa 11 e de ter perdido a camisola amarela para o dinamarquês da Jumbo Visma, Pogačar fez com que a corrida ganhasse uma dimensão absolutamente olímpica. Primeiro porque é um atleta corajoso, extremamente auto-confiante e fiel até à insanidade a uma filosofia de ataque que, até aqui, tinha dado resultados fabulosos (a última vez que Tadej não ganhou uma prova profissional em que tivesse participado foi em 2019). Depois porque Vingegaard, que já tinha sido segundo no Tour do ano passado, revelou quem é: um ciclista de eleição, que está completamente à altura do talento exuberante do esloveno, apesar de ter um estilo muito diferente e bem mais discreto.

Da etapa 12 até à etapa 19, Pogačar atacou todos os dias. Todos. A subir, a descer, em plano, ao sprint, de repelão e em endurance, sozinho ou com o apoio da equipa, que apesar de estar reduzida a metade, fez todos os possíveis para que o seu líder voltasse a vestir a camisola amarela. Debalde. A dada altura, Vingegaard parecia que tinha uma corda atada ao selim do adversário, porque de cada vez que o chefe de fila da EAU acelerava, o dinamarquês colava-se à sua roda traseira e não saia dali nem por nada deste mundo.

 

 

Mais a mais, os ataques não eram desencadeados, como é costume entre os favoritos à vitória no Tour, nos últimos quilómetros das etapas montanhosas. Começavam a 40 quilómetros do fim. E em etapas nem por isso tão montanhosas assim. A dois dias do fim da prova e depois de tentar tudo, sem sucesso, nas montanhas dos Pirenéus, Pogačar chegou ao ponto de tentar descolar de Vingegaard numa etapa destinada a sprinters, cujo desafio consistia em duas pequenas subidas de quarta categoria…

Ficava por cumprir o contra-relógio de 40 quilómetros da penúltima etapa, mas o esloveno da EAU, já com mais de dois minutos e meio de atraso, estava física e psicologicamente esgotado e não fez melhor que terceiro, sendo que Jonas Vingegaard, para surpresa geral (apesar de se defender bem nos contra-relógios, não é um especialista), fez segundo.

Tadeja Pogačar é um atleta mais completo e o melhor ciclista da actualidade, mas falhou num momento decisivo, nos Alpes. O dinamarquês não falhou de todo e a sua vitória, revestida pela platina da glória depois de uma batalha incessante de dez dias, é inteiramente merecida.

Voltando à introdução deste texto, o Tour deste ano deixa nos adeptos do ciclismo uma doce expectativa para o futuro: as próximas edições da Volta à França prometem, porque os dois rivais são muito jovens e enquanto Pogačar tiver um adversário ao seu nível, o espectáculo é garantido.

Além disso, à jovialidade de espírito e generosidade atlética do esloveno acresce a nobreza de carácter do dinamarquês que, na magnífica 18ª etapa, mostrou possuir a classe de um campeão, ao esperar por Pogačar numa descida, depois deste ter caído à saída de uma curva apertada.

 

 

O jovem leão e o sábio veterano.

Para finalizar, as menções honrosas: um dos ciclistas que mais contribuiu para o contexto épico deste Tour foi Wout van Aert. Envergou a camisola amarela durante 4 dias, ganhou a classificação por pontos (camisola verde) e três etapas. Lutou até ao risco da meta por outras tantas. Sprintou como um louco, entrou em mais fugas do que aquelas que o bom senso aconselharia, subiu e desceu os Alpes e os Pirenéus como um trepador nato (que em teoria, não é), destacou-se como contra-relogista (1º na 20ª etapa), ajudou o seu líder Vingegaard em muitas situações, sendo que na etapa 18 essa assistência foi decisiva. É um ciclista enorme, com um coração de leão, baterias que parecem nunca encontrar um fim e pernas de monstro sagrado. Se não estivesse na Jumbo Visma, e se perdesse um quilinho ou dois, se calhar era candidato a lutar pela vitória já no Tour de 2023. É certo que enquanto tiver Vingegaard como companheiro de equipa, a ambição ficará difícil de cumprir. Ainda assim, mais tarde ou mais cedo e de uma maneira ou de outra, essa candidatura haverá de acontecer.

Desde 1997 que uma equipa não ganhava, em simultâneo, as camisolas amarela e verde e a Jumbo Visma venceu 6 das 21 etapas. Muito se devem ao belga voador estas façanhas da sua equipa, neste Tour. Quem gosta de ciclismo tem que adorar Wout van Aert. Não há outra hipótese.

O terceiro lugar de Geraint Thomas só pode parecer um resultado modesto a quem não tem seguido seu percurso. Apesar de ter ganho o Tour em 2018, o ciclista galês da Ineos tem andado arredado de vitórias e protagonismos nos últimos anos. Não obstante, conseguiu agora um honroso lugar no pódio, afirmando-se como o melhor voltista entre o pelotão de meros mortais, porque Pogačar e Vingegaard já têm um lugar reservado no panteão da posteridade. Geraint foi consistente e inteligente durante as 3 semanas, capitalizando a experiência dos seus 36 anos de idade que pesam já, sim, mas que também são vantajosos, quando os sabemos usar.

Seja como for, o Tour de France de 2022 vai ficar para a história. Isso é certo.